Desde o filme anterior de Samuel Fuller, CASA DE BAMBU (1955), que comecei a perceber com mais atenção sua sensibilidade para com as mulheres, para o cruel destino que a elas é concedido em suas histórias, especialmente as mais realistas. Tanto que vendo NO UMBRAL DA CHINA (1957) até percebi algumas relações com o que Fritz Lang havia trabalhado em duas obras suas, também da década de 1950, SÓ A MULHER PECA e A GARDÊNIA AZUL. São, claro, filmes de estilos muito distintos, mas essa interseção me chamou a atenção.
NO UMBRAL DA CHINA é também a continuação da jornada de Fuller em busca de compreender e de se aproximar do drama dos países asiáticos no período pós-Segunda Guerra Mundial. Como bom jornalista que era, gostava de abordar também a história mais contemporânea, uma história às vezes ainda acontecendo. Mostrou a Guerra da Coreia em BAIONETAS CALADAS (1951), depois a situação do Japão sob domínio americano no já citado CASA DE BAMBU e desta vez faz o primeiro filme sobre a Guerra do Vietnã, ainda no tempo que o lugar se chamava Indochina e havia passado por domínio francês (e sofrido com a invasão dos japoneses na Segunda Guerra).
A história é simples, pelo menos na aparência, um filme sobre homens numa missão. Ainda que o mais importante dos homens seja uma mulher, a eurasiana vivida por Angie Dickinson. A propósito, para quem conheceu inicialmente Dickinson na faixa dos 50 anos como eu, em VESTIDA PARA MATAR, de Brian De Palma, é bonito ver a atriz jovem aqui, e representando a parte mais corajosa e ao mesmo tempo mais sensível da história.
Dickinson é conhecida como Lucky Legs (“pernas de sorte”, numa tradução livre, mas também numa intenção de chamar a atenção paras suas pernas) e é uma mulher que recebe a missão de agir como uma espécie de agente dupla, a fim de conversar com os homens que haviam aderido ao comunismo de Hồ Chí Minh, para que os mercenários conseguissem explodir o quartel-general deles, onde ficavam as armas. Ela topa, pois deseja que o seu filho de cinco anos, nascido com os olhos puxados e por isso rejeitado pelo pai americano, vá embora para os Estados Unidos, onde sofrerá bem menos.
Gene Barry (o pai da criança), saído da Guerra da Coreia e agora mercenário em ambiente de guerra noutro país, é o líder do grupo que irá dinamitar o lugar. E Fuller faz aqui um de seus filmes mais cruéis, mais amargos. A princípio, não foi um dos que mais me agradou do realizador (até por pintar os franceses como heróis), e parece até um pouco mais simplista no modo como encara os comunistas, mas ao mesmo tempo, percebe-se mais uma vez o quanto ele toca na ferida do racismo e percebe a complexidade da situação do país. Há cenas, por exemplo, em que os homens se veem perdidos naquela condição de mercenários, enquanto os próprios vietnamitas não vinculados mais fortemente à política,
passam fome e moram em destroços, às vezes se contentando com comida entregue por aviões norte-americanos.
Mas acredito que a força do filme está mesmo na história trágica de Lucky Legs, no seu amor ainda existente pelo homem com quem se casou, que a abandonou por causa de um filho que nasceu com aparência chinesa, e que, mesmo quando faz as pazes com ela, não tem de verdade a intenção de formar família nos Estados Unidos com a mulher e o filho. E o que temos aqui é uma mulher que se fortalece em ter que se virar dentro das possibilidades que lhe eram possíveis, como a prostituição ou mesmo o furto. Vejo o carinho com que Fuller dá para essa personagem semelhante ao que vimos na Mariko de Shirley Yamaguchi, de CASA DE BAMBU, outra personagem feminina que parece saída de um romance trágico.
Mas acredito que a força do filme está mesmo na história trágica de Lucky Legs, no seu amor ainda existente pelo homem com quem se casou, que a abandonou por causa de um filho que nasceu com aparência chinesa, e que, mesmo quando faz as pazes com ela, não tem de verdade a intenção de formar família nos Estados Unidos com a mulher e o filho. E o que temos aqui é uma mulher que se fortalece em ter que se virar dentro das possibilidades que lhe eram possíveis, como a prostituição ou mesmo o furto. Vejo o carinho com que Fuller dá para essa personagem semelhante ao que vimos na Mariko de Shirley Yamaguchi, de CASA DE BAMBU, outra personagem feminina que parece saída de um romance trágico.
1957 foi um ano de ouro para Fuller: além deste filme, ele lançaria os westerns RENEGANDO MEU SANGUE e DRAGÕES DA VIOLÊNCIA. Chegarei nesses celebrados trabalhos do realizador em breve.
+ TRÊS FILMES
SOLDADOS DA BORRACHA
Wolney Oliveira tem se tornado um dos melhores documentaristas do Brasil. Percebi tardiamente este ano, vendo LAMPIÃO, GOVERNADOR DO SERTÃO (2024), e agora essa percepção se confirma quando vejo SOLDADOS DA BORRACHA (2019). Um dos méritos do diretor está nesta vontade admirável em ir atrás de histórias fascinantes, e muitas delas, se percebe, levam tempo para serem concluídas, finalizadas. Este filme trata de figuras esquecidas até dos livros de história, eu diria, já que se fala bastante dos soldados que foram lutar na Europa na Segunda Guerra Mundial, mas se esquece das centenas de homens, muitos deles do interior do Ceará, fugindo da seca, que se alistaram como soldados da borracha, indo parar na Amazônia num tempo em que o território era de mais difícil adaptação. Muitos morreram, passaram fome, sentiam saudade da família, sofriam com o trabalho semelhante à escravidão, inclusive com histórias sobre homens que foram literalmente amarrados para não fugir. Wolney sabe escolher as melhores pessoas e a montar as melhores histórias para que a narrativa seja bem contada, até chegar a dias mais próximos, como 2012, quando se tentou indenizar essas pessoas no congresso federal.
GRANDE SERTÃO
Guel Arraes leva o sotaque nordestino de sertão genérico da Globo para esta adaptação da obra-prima de Guimarães Rosa. GRANDE SERTÃO (2023) é uma adaptação com pinta de MAD MAX com fotografia quase monocromática, meio situado ao mesmo tempo em presente, passado e futuro distópico, em que o grupo de jagunços da obra literária se transforma em grupo de foras-da-lei de uma periferia que também é chamada por eles de sertão, como que para fazer ainda mais referência ao romance, mais ou menos como fez Baz Luhrmann em seu ROMEU + JULIETA. Incomodou-me o sotaque, que muito faz lembrar O AUTO DA COMPADECIDA (2000) do mesmo Arraes, fazendo com que o que deveria ser um drama trágico lembre ruidosamente uma comédia. Inclusive, por mais que o personagem de Eduardo Sterblitch esteja quase irreconhecível e malvado, sua maldade não é o bastante para que seu Hermógenes seja de fato temido. Nada é temido no filme, na verdade. O "viver é muito perigoso" do romancista acaba não reverberando como poderia ou deveria. Mesmo assim, ainda gosto da energia sexual de Riobaldo (Caio Blat) e Diadorim (Luisa Arraes), que defendem muito bem seus personagens. Principalmente Blat, que chega a emocionar na parte final, conseguindo contornar os problemas de ritmo ou até de indiferença de nossa parte para chamar a atenção para a paixão de ambos. E isso é mérito do ator (que já fez um trabalho brilhante em BATISMO DE SANGUE, é sempre bom lembrar), mas também do texto poderoso de Rosa. Quanto a Luisa Arraes, com seu talento e beleza, herda bem o desempenho lendário de Bruna Lombardi na minissérie da Globo de 1985 (GRANDE SERTÃO: VEREDAS), que eu assistia com entusiasmo em minha época de colegial e nunca mais revi.
PRISÃO NOS ANDES (Penal Cordillera)
A ditadura militar chilena, a julgar pelo que vemos nos filmes, talvez tenha sido ainda mais traumática que a brasileira ou a argentina. Tanto que boa parte das produções chilenas que chegam a nosso circuito tratam dessa ferida, desse horror. PRISÃO NOS ANDES (2023), de Felipe Carmona, é um surpreendente longa-metragem de estreia conduzido com uma mão segura e atores veteranos que incorporam as figuras de velhos generais torturadores tão bem que a gente tem medo deles. A história se passa quase que inteiramente numa espécie de presídio luxuoso cercado por uma bela floresta dedicado a esses generais do regime do Pinochet que tinham uma patente mais alta. Eles exalam o mal e contaminam o ambiente com esse mal. Há uma fotografia em scope lindona e algumas escolhas visuais que fogem aos padrões mais convencionais. Com frequência, lembra um filme de horror.
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