segunda-feira, janeiro 06, 2025

GAROTO



Na manhã seguinte ao Globo de Ouro de melhor atriz dramática para Fernanda Torres por sua impecável interpretação em AINDA ESTOU AQUI, paro um instantinho para escrever para o blog pela primeira vez neste ano. Em outras circunstâncias estaria escrevendo sobre a festa, que não via desde a edição de 2020, que consagrou os filmes 2017, de Sam Mendes, e ERA UMA VEZ EM...HOLLYWOOD, de Quentin Tarantino. Depois disso o prêmio foi “cancelado” por uma série de situações problemáticas, que depois foram contornados e hoje é um prêmio mais democrático, mais inclusivo e que voltou a ser transmitido por uma rede de televisão. Como não estava com a cabeça muito boa ontem, e não vi a premiação com muita atenção, achei melhor não escrever a respeito da cerimônia ou dar outros pitacos. Na verdade, só não parei de ver para dar play num filme ou ler um livro para dormir pois estava esperando o resultado do prêmio que a Fernanda estava concorrendo.

Por isso, comecemos o ano falando do primeiro filme que vi em 2025, GAROTO (2015), de Julio Bressane. Curiosamente, também se trata de um filme com a presença de uma grande atriz, Marjorie Estiano, provavelmente a maior de sua geração.

Como os filmes de Bressane são um pouco mais herméticos e por isso mesmo adoro ter a oportunidade de vê-los no cinema para ter uma experiência mais imersiva e saborosa, entendendo ou não as referências – só vi cinco de seus filmes no cinema, sendo o primeiro CLEÓPATRA (2007) e o último CAPITU E O CAPÍTULO (2021). Mas em casa pude fazer anotações de cenas que me chamavam a atenção e isso foi muito rico, ajudou ainda mais, tanto na compreensão quanto no prazer de pensar o filme.

"O mistério do amor é maior que o mistério da morte". Essa é uma das várias frases citadas pela personagem de Estiano ao longo do filme. Procurei na internet o autor da frase, achando se tratar de Borges, mas parece que é de Oscar Wilde. Essa frase me agrada muito e tem tudo a ver com o destino de seus personagens, numa história inspirada (mas não creditada) num conto do grande Jorge Luis Borges, chamado “O Assassino Desinteressado Bill Harrigan”, presente no livro História Universal da Infâmia (1935). Aliás, soube, enquanto procurava informações sobre GAROTO, que Bressane conversava com Borges por telefone na década de 1980. Já há muito tempo que o cineasta tinha interesse em adaptar este conto.

Pois bem. Começo o ano com um filme da fase mais recente do maior cineasta brasileiro vivo. Um filme curtinho, de apenas 76 min, com uma Marjorie Estiano no início da fama e um Gabriel Leone recém-saído da série adolescente MALHAÇÃO – só conheci Leone vendo EDUARDO E MÔNICA. Em GAROTO, Leone faz um jovem inseguro e mudo; Estiano é uma moça que não para de falar e filosofa sobre a vida, além de ser ela que orienta os rumos de quase tudo para os dois.

E ela tem um viço que mexe com o rapaz. Algo que o diretor faz questão de transformar em tensão sexual. E quando o sexo surge, surge de maneira inusitada, a partir do uso de uma câmera subjetiva. Marjorie aproxima-se para a câmera a fim de beijar o rapaz, o que me remeteu a uma das cenas mais sensuais da história do cinema: a de Grace Kelly se aproximando para beijar James Stewart em JANELA INDISCRETA, de Alfred Hitchcock.

Logo em seguida, pela mesma câmera subjetiva, o sexo oral é ocultado, mas o leite espesso não. Antes disso, somos convidados a partilhar do desejo dos personagens, a partir dos closes dos ombros dela, das mãos, da nuca, e das imagens de aproximação de seus corpos. Em determinado momento, a personagem feminina segura um cipó enorme, que parece seguir até os céus, segundo o posicionamento da câmera de baixo para cima, como se estivesse segurando, com muita segurança e poder feminino. O cipó parece um falo gigante, ou divino.

A trama é dividida em duas partes, uma em que predomina o verde e outra no sertão da Paraíba, o mesmo lugar onde Bressane filmou SÃO JERÔNIMO (1999). No sertão, o filme muda de tom. Sai o viço, entra o companheirismo em tempos difíceis, o desconforto, a fome, o cansaço, a falta de teto, imagens que lembram às vezes VIDAS SECAS, de Nelson Pereira dos Santos. Senti falta nesta segunda parte das falas filosóficas da primeira. Mas aqui é um momento em que os dois, apesar de tudo, parecem se unir no silêncio.

O trabalho de som é um destaque, assim como a ênfase à passagem do tempo através da natureza, do céu, das árvores, das misteriosas cenas finais. Bressane faz filmes artesanais ímpares, com uma marca sua. Quem dera todos os seus trabalhos fossem exibidos em nosso circuito. Vê-los na tela grande é sempre glorioso. Mas também é uma alegria termos hoje uma oportunidade de conseguir com mais facilidade grande parte de seus mais de 40 filmes, entre longas, curtas e segmentos.

+ TRÊS FILMES

ESTRANHO CAMINHO

Ainda se costuma falar de Guto Parente como um dos melhores cineastas do Ceará, mas isso já deve nem ser mais dito. É dos melhores do Brasil e do mundo. O modo como ele narra esta história trazendo leveza e doçura para um momento tão delicado, como foi a pandemia, é admirável. Além do mais, a trama de um jovem cineasta que se vê perdido frente ao fato de que seu filme não passará mais num festival por causa do lockdown e das mudanças que transformaram o Brasil e o mundo num filme de apocalipse é tão carregada de humor que imagino que foi sábio da parte do cineasta (ou do tempo ou das conjunções astrais) que este filme não entrasse em cartaz em 2021, quando ainda se era muito delicado tratar com um pouco de humor desse cenário. Mas Parente está longe de tratar seus personagens e as situações por que eles passam sem a devida solidariedade. O rapaz, David (Lucas Limeira, ótimo), procura por seu pai em Fortaleza, um pai que ele não vê há muito tempo. Aparentemente, ele guarda alguma lembrança ou situação triste envolvendo o pai. Geraldo, seu pai, é vivido por Carlos Francisco (definitivamente, um dos maiores atores brasileiros vivos). Todas as cenas de David no apartamento do pai, enquanto este está no computador são impagáveis. Trazem um humor que combina com as estranhezas que logo tomarão corpo ao longo da obra. De Lynch a Bresson, ESTRANHO CAMINHO (2023) é uma declaração de amor ao cinema. Mas também, e principalmente, um gesto delicado para quem amamos.

SAUDOSA MALOCA

Achando interessante a carreira do diretor Pedro Serrano e sua forte relação com Adoniran Barbosa. Primeiro foi com o curta DÁ LICENÇA DE CONTAR (2015), depois com o documentário ADONIRAN – MEU NOME É JOÃO RUBINATO (2018) e agora com SAUDOSA MALOCA (2023), um longa de ficção que nada na contramão das cinebiografias mais convencionais, optando por uma história menos centrada na vida do celebrado sambista paulista e mais nas letras de suas canções. Sendo assim, pouco importa se Joca (Gustavo Machado) e Mato-Grosso (Gero Camilo) realmente existiram (ao que parece, sim), mas eles estão na letra da canção-título do filme e aqui desempenham papéis tão importantes quanto o vivido por Paulo Miklos. Há também Iracema (Leilah Moreno), que ganhou uma triste canção com seu nome por Adoniran e que é uma das poucas personagens femininas importantes de um filme que se destaca por um elenco basicamente masculino. Gosto das cenas de samba no bar e gostaria que houvesse mais. Além do mais, o filme nem sempre se apresenta muito atraente, por mais que o trio de atores principais esteja ótimo e o diretor às vezes opte por ângulos muito bonitos e pouco usuais.

VERMELHO MONET

Um filme sobre um falsificador em busca de inspiração e de duas mulheres que se sentem atraídas uma pela outra e roubam um pouco de cada uma para benefício próprio. No meio de tudo, citações a grandes pinturas e a Florbela Espanca – o famoso poema musicado por Fagner surge como um fado em determinado momento. As primeiras imagens de VERMELHO MONET (2022), a primeira incursão de Halder Gomes num cinema por assim dizer mais sério até que trazem uma boa impressão, até porque são valorizadas pela bonita fotografia em cores nítidas. Imagens em super close-up dos olhos de Maria Fernanda Cândido em scope, imagens em preto e branco que depois veríamos ser da visão sendo perdida do personagem de Chico Diaz, imagens de uma Lisboa cheia de charme, cenas que valorizam o vermelho se destacando das demais cores. Aliás, é como se a ideia do filme surgisse justamente desse destaque do vermelho (com o azul, principalmente) para depois ser criada uma história e um roteiro infelizmente bem problemáticos e que acabam por prejudicar também a performance do trio principal de atores. A jovem estreante Samantha Müller funciona bem como símbolo do amor passado do pintor. As cenas mais bonitas do filme são as mais desprendidas da trama. Por isso talvez o diretor tivesse mais sucesso num filme mais experimental.

Nenhum comentário: