domingo, março 10, 2024

MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA (Mandingo)



"Mandingo is racist trash, obscene in its manipulation of human beings and feelings (...)”
Roger Ebert


No ano passado, uma das três obras-primas incontornáveis que eu vi em casa foi OS NOVOS CENTURIÕES (1972). Neste ano, certamente, terei uma outra obra-prima de Richard Fleischer que guardarei com muito carinho no coração, MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA (1975). É uma pena que eu tenha demorado tanto a escrever sobre o filme e não tenha aproveitado o impacto emocional próximo dos dias que o vi, cerca de um mês atrás. Tento remediar isso agora, meio que esnobando a temporada do Oscar, para falar de um filme de décadas atrás. Aliás, neste ano meio que desisti de tentar ver tudo o que é possível dentre os indicados ao prêmio da academia, principalmente quando não estão disponíveis nos cinemas. Não tenho mais tempo hábil para tal, já que o trabalho, o cansaço e demais atividades consomem o tempo. Além do mais, os filmes de outras épocas me são muito mais atraentes atualmente.

Quanto a MANDINGO, que filme incrível! E corajoso também por mostrar um tipo de sociedade que o próprio cinema parece querer esquecer. Afinal, mostra a vergonha que é/foi o modelo de sistema escravocrata, adotado principalmente no sul dos Estados Unidos e muito conhecido do brasileiro também. E Fleischer parece querer confundir certas audiências ao mostrar às vezes uma trilha sonora que remete à calma e à tranquilidade dos antigos westerns (a trilha é de Maurice Jarre), como se quisesse mesmo botar o dedo na ferida da questão da colonização e dizer: vejam o que era romantizado nos filmes da Hollywood clássica. 

O próprio cartaz lembra o de ...E O VENTO LEVOU, inclusive. O jeito que o filme é vendido parece, em alguns momentos, denotar algo de exploitation, mas o diretor faz um trabalho tão poderoso que cada detalhe da trama e cada fala e ação dos personagens faz perceber uma obra de grande sofisticação. E a violência, no caso, é essencial, eu diria, e não apelativa. Quando muitas pessoas criticam o uso da violência nos filmes, eu penso em A Ilíada, de Homero, cuja descrição detalhada das cenas de batalha e o impacto nos corpos dos homens de ambos os exércitos tornou a obra mais verdadeira para mim. É assim que vejo também no cinema, por mais que entenda que o grafismo na imagem em movimento seja muito mais difícil para pessoas mais sensíveis.

Na época de seu lançamento, boa parte da crítica caiu de pau em cima de MANDINGO, acusando-o de racista, obsceno, manipulador, explorador, como foi o caso de Roger Ebert, que ainda destaca a personagem de Susan George como excessivamente sensual, quando na verdade ela está fazendo o papel de uma mulher com necessidade de carinho e afeto, que era abusada sexualmente no seio familiar, que por não se casar virgem é odiada pelo marido e lhe é dito que não age da maneira que uma moça branca deveria agir e que tem um final trágico e muito triste, por ter feito algo que pode ser visto como uma abominação pela sociedade americana (tanto a do século XIX quanto a do XX): o sexo interracial. Além do mais, as cenas de sexo com ela não são exatamente confortáveis e sensuais; todas lidam com um mal estar presente na situação em que se encontra.

Felizmente, existem alguns ótimos defensores do filme, aqueles que, parece, compreenderam melhor as intenções de Fleischer. É o caso de Robin Wood, renomado crítico britânico que escreveu um belo texto chamado “’Mandingo’: The Vindication of an Abused Masterpiece”. Wood destaca o quanto essas pessoas que odiaram o filme são predominantemente formadas por homens brancos, e possivelmente  podiam temer que nos Estados Unidos da década de 1970 o filme poderia incitar uma espécie de revolução por parte da população negra, que começava a se impor de maneira mais forte na sociedade.

MANDINGO se passa nos anos 1840 e, na trama, um proprietário de escravos (Perry King) treina um homem negro recém-adquirido (Ken Norton) para lutar com outros homens escravizados usados para competir em embates apostados, como cães ou galos de briga, podendo, inclusive, nessas lutas, matar ou morrer. Antes disso, o filme nos deixa a par do funcionamento daquele sistema escravocrata, em que o patriarca (James Mason) usa uma criança negra para ficar debaixo de seus pés a fim de passar para o menino sua doença – eles acreditavam (será?) que aquilo poderia curar a doença do velho.

Naquela sociedade também era comum os homens brancos terem suas escravas de estimação para o sexo mais livre, por assim dizer. Hammond, o personagem de Perry King, tem um carinho especial por Ellen (Brenda Sykes) e diz a ela que se casará com uma mulher branca (Susan George), mas que nunca deixará de ter seus encontros com ela. Ellen, em determinado momento, quando engravida de Hammond, implora a ele que o filho da relação dos dois nasça livre. Essa é uma das inúmeras cenas incômodas e tristes do filme. Outras tantas virão, e o final... o final é algo tão forte que acho preferível não destacar aqui, deixar para aqueles que querem dar uma chance ao filme e darem de cara com uma das obras mais fortes e cruéis já feitas em Hollywood.

Richard Fleischer é um cineasta que começou fazendo filmes baratos na década de 1940, ora dramas familiares, ora comédias, e depois entrou entre os grandes nomes do filme noir, com títulos como ALMA EM SOMBRAS (1949) e IMPÉRIO DO TERROR (1950), e que se adequou incrivelmente ao clima de pessimismo e crueza do cinema da Nova Hollywood na década de 1970.

Filme visto no excelente box A Arte de Richard Fleischer.

+ DOIS FILMES

FICÇÃO AMERICANA (American Fiction)

Em vários momentos, FICÇÃO AMERICANA (2023), de Cord Jefferson, parece o piloto de alguma série que pode melhorar com o tempo, mas que não promete ser muita coisa em suas duas horas de apresentação. Em outros momentos, me parece materializar o tédio do personagem de Jeffrey Wright no próprio andamento narrativo, por mais que coisas emocionantes não faltem em sua vida, como a questão da doença da mãe, de uma morte em família, do sentimento de rejeição do irmão e um namoro. E em outros momentos, tem aquela coisa meio engraçadinha de certos filmes que lidam com o bloqueio criativo. De todo modo, é um filme que procura trazer à tona aquilo que é muito comum de se ver em obras que trazem o drama de personagens negros, que acabam descambando num clichê. Felizmente os personagens do filme não têm esse problema, creio eu. Não que isso ajude muito.

A COR PÚRPURA (The Color Purple)

Nunca vi a versão de Steven Spielberg (só alguns trechos na televisão), mas é fácil entender quando dizem que esta versão musical da história traz mais leveza ao drama dos personagens. Apesar de não ser nada fã das cenas musicais, fiquei bastante envolvido com a história de Celie, uma jovem que (depois de ser obrigada a dar seus dois bebês) é vendida a um homem que a usa como escrava, enquanto lhe nega contato com a irmã. A história de A COR PÚRPURA (2023), de Blitz Bazawule, vai ficando melhor quando surge em cena a personagem da cantora de blues, vivida por Taraji P. Henson, e na relação de amor que se constrói entre as duas. As cenas de virada da protagonista são muito boas e reacendem o interesse pela história. A última cena é bem bonita e emotiva.

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