sábado, junho 04, 2022

IRMA VEP



Antes de mais nada, queria deixar registrado o meu agradecimento a Olivier Assayas e ao filme IRMA VEP (1996), em particular, por ter conseguido me manter ligado e tranquilo do início ao fim. Pode parecer bobagem dizer isso, levando em consideração que o filme não tem nem 100 minutos, mas ultimamente ando exausto, suspeitando que estou com esgotamento físico, burnout, ou talvez até sintoma da chamada Covid prolongada. Ou talvez apenas seja consequência do cansaço físico e mental que o retorno às aulas presenciais, em particular em uma das escolas, me provocou. Ou talvez o problema não seja necessariamente da escola, mas do momento, do pós-pandemia. Aliás, nem é pós-pandemia, pois o vírus anda circulando e matando ainda. Enfim, deixando a culpa de lado, o fato é que revi IRMA VEP com uma sensação muito agradável de estar bem e feliz diante desta pequena obra-prima.

O filme foi a primeira obra de Assayas que vi, graças ao meu amigo Renato Doho, que o gravou em uma fita VHS no início dos anos 2000. Até é possível ler um pequeno comentário meu escrito no blog em 2003. Esse período, o início do milênio foi muito importante pra mim, como um momento de descoberta e de compreensão de que o mundo do cinema era muito maior, empolgante e inesgotável do que eu imaginava.

O primeiro filme de Assayas a ser exibido em circuito local foi CLEAN (2004), para se ter uma ideia – posso estar enganado e algum anterior ter sido exibido discretamente, mas acho bem pouco provável. Certos títulos dos anos 2000 do cineasta, só pude vê-los em seus lançamentos em DVD, como ESPIONAGEM NA REDE (2002) e TRAIÇÃO EM HONG KONG (2007). Ou seja, apesar de Assayas ser um diretor cultuado, demorou a ser um cineasta com forte presença nas telonas da minha cidade.

Com IRMA VEP, Assayas constrói um filme tão saboroso que dá vontade de viver dentro dele. Destaco principalmente a cena do jantar, com a câmera passeando por diversos lugares da casa (adoro também a personagem de Nathalie Richard), mas também aquela cena fantástica do sonho (?), que começa ao som de Sonic Youth, e depois vemos Maggie Cheung na tentativa de roubar um colar – uma prova de que Assayas também dominaria um filme de gênero tranquilamente, como faria posteriormente com PERSONAL SHOPPER (2016).

E há aquela cena de Maggie dando uma entrevista para um repórter fã de John Woo, que desperta ao mesmo tempo riso e raiva do tal sujeito – mais adiante, com ACIMA DAS NUVENS (2014), veríamos uma discussão acalorada sobre a questão cinema americano comercial vs. cinema francês de autor. Outro acerto de Assayas é escalar uma atriz e nos deixar tão apaixonados por ela quanto o próprio diretor. O filme brilha com a beleza de Maggie Cheung e seu jeito, ao mesmo tempo tranquila e tímida, diante daquele mundo novo. E quando achamos que o filme não nos surpreenderia, vêm aquelas imagens finais fantásticas e que hoje, com o digital imperando, parecem ser ainda mais tributárias do cinema, como uma arte quase palpável na era analógica.

Assayas tem como uma de suas marcas esse abraçar a cultura pop, o rock, o cinema americano, embora deixe bem claro que o tipo de cinema que realiza é mais aproximado mesmo do cinema francês, embora com um viés mais moderno, por assim dizer. Daí essas discussões, essas piscadelas, esses atritos, acontecerem com certa frequência. No caso de IRMA VEP, há uma ligação forte com o seriado para cinema OS VAMPIROS (1915). É desse seriado que vem a personagem título, que no clássico de Louis Feuillade é interpretado pela lendária Musidora, atriz extremamente carismática e expressiva que também se aventuraria pela direção.

O diretor de IRMA VEP, René Vidal, vivido por outro ator lendário, Jean-Pierre Léaud, mais conhecido por suas colaborações com François Truffaut (mas não apenas), traz Maggie Cheung, vivendo “a si mesma”, saindo de Hong Kong para Paris para ser a nova Irma Vep nesse projeto de um diretor com pinta de gênio. Vidal havia visto Cheung em algumas fitas de ação, como HEROIC TRIO, de Johnnie To, e não consegue tirar da cabeça que ela seria a Irma Vep perfeita. A atriz aceita, com muita simpatia e generosidade, ser a protagonista do filme. O problema é que as filmagens já começam de maneira muito tumultuada, com o cineasta entrando em uma espécie de colapso nervoso. Enquanto isso, Maggie fica sabendo que é desejada pela assistente Zoé (Nathalie Richard). É Zoé quem adequa o figurino de látex ao corpo de Maggie. Um tipo de figurino, aliás, muito próximo de uma fantasia de sadomasoquismo, algo que parece ser uma obsessão de Assayas, vide ESPIONAGEM NA REDE.

O crítico Franck Le Gac, em texto para a coluna "Great Directors", do site Senses of Cinema, diz sobre Assayas:

Seu foco tende a ser mais nos momentos íntimos, aparentemente insignificantes e banais da vida cotidiana, sua fisicalidade e materialidade humildes – e como muitas vezes elas dão visibilidade a dilemas morais e sentimentos equívocos de modo melhor do que os diálogos ou, obviamente, do que os códigos de atuação. (tradução minha)

Ou seja, quando vemos uma cena como a de Maggie e Zoé no táxi, a caminho de uma rave, e depois a conversa das duas, ou a já citada sequência do jantar, percebemos o quanto esses momentos aparentemente insignificantes se tornam grandes e extremamente importantes dentro do filme. E também vemos o quanto de herança Assayas recebeu dos vários cineastas da Nouvelle Vague. E o quanto ele amplia a influência do globalismo na sociedade francesa – isso, inclusive, é tema de outros de seus trabalhos posteriores, seja como debate, seja como parte orgânica da narrativa.

+ DOIS FILMES

A IGUALDADE É BRANCA (Trois Couleurs: Blanc)

É interessante ver um Krzysztof Kieslowski mais leve, fazendo uma comédia no meio de dois filmes bem dramáticos da trilogia das cores. A IGUALDADE É BRANCA (1994) é geralmente o menos querido dos três, e eu diria o mesmo, mas é uma obra que merece mais carinho. É uma espécie de versão leve da história do homem que tenta algo muito louco para recuperar a mulher amada, algo visto em tom mais sombrio na obra-prima NÃO AMARÁS (1988). É também um filme que respira muito bem, especialmente quando o protagonista retorna à Polônia, local da maior parte da narrativa. Há também uma bonita história de amizade no meio de tudo.

A FRATERNIDADE É VERMELHA (Trois Couleurs: Rouge)

É ser muito afortunado poder ver no cinema, em um espaço de dois dias (isso foi em 2020), duas obras-primas de Krzysztof Kieslowski estreladas pela lindíssima Irène Jacob – o outro foi A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE (1991). Em A FRATERNIDADE É VERMELHA (1994), a atriz traz uma carga de sensibilidade, de bondade e de fragilidade tão fortes que, a cada vez que ela é confrontada com a figura do velho amargurado vivido por Trintignant, é como se estivéssemos prestes a ver um copo de cristal se quebrar. No entanto, ela fica e tenta entender aquele homem, os seus atos. Mais uma vez, o cineasta lida com o cruzamento de destinos e também com um tipo de amor universal de uma maneira mais leve do que em A LIBERDADE É AZUL (1993). Além do mais, em vez de um choro em meio a uma conclusão quase feliz, o que temos é um sorriso após uma tragédia.

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