sexta-feira, janeiro 10, 2020

RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (Portrait de la Jeune Fille en Feu)

A relação que temos com alguns filmes é semelhante ao tempo de uma história de amor vivida: queremos que o filme fique um pouco mais com a gente, que aqueles sentimentos experienciados durante a sessão permaneçam não só na memória afetiva, mas também em nosso próprio corpo.

RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (2019), de Céline Sciamma, narra de maneira lenta e gradual a história de amor de duas jovens mulheres. Uma delas, Marianne (Noémie Merlant), é a pintora e chega a uma ilha afastada para pintar o retrato de uma mulher que está prometida a um homem italiano. A mulher, a que dá título ao filme, é Héloïse (Adèle Haenel), e, a princípio, o sentimento que mais passa no olhar e nos gestos dessa jovem é de raiva. Casar com um homem que sequer viu na vida não lhe parece algo muito agradável.

A missão de Marianne é acompanhar Héloïse em caminhadas e, a partir do olhar, ir formando a memória do rosto e do corpo de seu objeto de estudo. O olhar de Marianne, porém, acaba se confundindo com um olhar de desejo. Como o filme não deixa claro os pensamentos de cada uma (a voice-over é usada apenas para introduzir e encerrar a história), muito do que captamos estão nos gestos. E é curioso como esses gestos são verbalizados pelas duas protagonistas em determinada cena, quando elas já se conhecem um pouco.

Essa verbalização também é um ponto crucial para a criação de uma das cenas mais lindas do filme: aquela em que as duas falam da memória de sua história de amor vivida. Compartilhar essas experiências vividas é um privilégio que poucos casais têm. E eis o motivo de tal cena, tão impregnada de melancolia, ser também um momento de alegria.

Um detalhe importante neste trabalho de Céline Sciamma é que praticamente não há homens na narrativa. Mesmo o sujeito que engravida a empregada não aparece. Aquele espaço é das mulheres, e por isso há tantas cenas em que elas compartilham tanto a alegria (jogando cartas, ouvindo um coral ao redor de uma fogueira etc) quanto a dor, como na cena do aborto. Aliás, a tal cena foi construída de tal maneira que a dor sentida fosse muito além da dor física. A diretora de fotografia, Claire Maton, que contribui muito para a criação de texturas belíssimas, semelhantes a pinturas, é a mesma de UM ESTRANHO NO LAGO e ATLANTIQUE, para citar dois filmes consagrados pela crítica.

Quanto ao envolvimento afetivo das duas mulheres, cada plano é de fundamental importância, por mais que as duas, lá no final, digam que perderam tempo, ao se demorarem na aproximação. Essa verbalização serve mais para deixar claro o sentimento mencionado no primeiro parágrafo: o de querer permanecer mais tempo ao lado da pessoa amada.

Como um filme escrito e dirigido por uma mulher e também como um exemplar deste momento de conscientização mais clara de que o papel da mulher na história da sociedade foi apagado ou sabotado pelos homens, RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS é uma das obras mais importantes do cinema recente, conseguindo ser tanto uma história de amor impossível (e por isso tão bela quanto as mais belas tragédias clássicas) quanto um gesto político.

+ TRÊS FILMES

ADAM

Um filme que cresce muito mais quando se apresenta como um filme sobre a maternidade do que quando passa boa parte de sua metragem tratando da amizade entre as duas mulheres. Não que não funcione, mas ADAM cresce muito quando passa a tratar do drama pós-gravidez da mulher que chega sem ter onde ficar em uma região muito tradicional do Marrocos. Há o peso de ela estar carregando um "filho sem pai", algo que pesa naquele lugar, naquela época. Não sei o quanto o filme vai cativar as plateias de hoje, principalmente as dos países ocidentais, que vivem uma nova realidade. No mais, eu não lembro de nenhum outro filme que tenha mostrado de maneira tão focada as primeiras horas/dias após o parto. Por isso foi tão importante ter sido dirigido e roteirizado por uma mulher. Direção: Maryam Touzani. Ano: 2019.

AS GOLPISTAS (Hustlers)

Difícil entender o hype que esse filme vem provocando, a não ser por uma campanha de marketing forte e também pela questão da sororidade, e o filme quase mostrar isso de forma comovente. É como se houvesse dois filmes em um: aquele em que temos mulheres golpistas e impiedosas prontas para tirar até o último centavo dos homens; e o que as apresenta como uma espécie de família e procura mostrar o aspecto mais frágil das personagens. Falha principalmente no segundo aspecto. E há também a intenção de vender o filme como uma dessas fitas com times de criminosos com tipos característicos diferentes. Acontece que, além de Constance Wu e Jennifer Lopez, apenas a loirinha que vomita ganha alguma visibilidade. Mesmo com esses poréns, é um filme bem conduzido e gostoso de ver. Direção: Lorene Scafaria. Ano: 2019.

PAPICHA

Custei um pouco a me envolver com o drama das personagens (talvez por causa do envolvimento com moda, não sei), mas sei sim que é um filme importante dentro deste momento em que o mundo parece estar cada vez mais tentando voltar à Idade Média. O que eu não me conformava, vendo o filme, era com o fato de a protagonista não querer sair daquele país, mesmo presenciando mortes e barbaridades cada vez mais intensas. O filme é bom em provocar um desconforto com alguns ângulos de câmera fora do comum. Direção: Mounia Meddour. Ano: 2019.

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