domingo, janeiro 19, 2020

18 CURTAS E DOIS MÉDIAS BRASILEIROS



THINYA

O que mais me impressiona neste filme é o quanto ele é capaz de causar medo lá perto do final, simplesmente usando fotos de gente normal, uma música ao fundo e a narração de uma indígena. Todo o filme são fotos e narração de uma índia. Ao final, se diz de onde é que aquilo é tirado, mas ao longo de todo o filme fica o desconforto sobre as pessoas apresentadas e a narração. Mas isso é positivo e o filme é uma experiência única. Principalmente em seus minutos finais. Acredito que a nossa consciência do quanto o homem branco foi capaz de matar/roubar/estuprar para obter o que obteve faz toda a diferença. Quem são os selvagens? Direção: Lia Letícia. Ano: 2019.

TEORIA SOBRE UM PLANETA ESTRANHO

Que filme lindo! Já me ganhou com a primeira cena, com o casal de protagonistas saindo entusiasmados para tomar banho de chuva em lugar paradisíaco do interior mineiro. Acontece algo abrupto e depois somos levados para o que parece ser o passado recente, imagens que parecem saídas de um filme do Malick, inclusive com um bocado de experimentação no uso das câmeras, das imagens, mais uma vez valorizando a beleza da natureza, mas também a beleza do rosto e dos sorrisos dos namorados/noivos. O detalhe da deficiência auditiva da personagem feminina é outro acerto e joga poesia também em algumas cenas, brincando com o áudio, o ir e vir. Considero um dos trabalhos de curta-metragem mais bonitos dos últimos anos. Direção: Marco Antônio Pereira. Ano: 2019.

JODERISMO

Continuação de MAMATA (2017), filme anterior de Marcus Curvelo, este aqui consegue ser mais perturbador ainda, já que retrata este momento de desesperança que estamos vivendo, passando agora do primeiro ano de um governo de extrema direita. Claro que o retrato que é pintado no Brasil é ainda mais doentio, mas é também um reflexo do estado emocional do protagonista, solitário e sentindo-se abandonado pela namorada, fugindo para uma deserta Brasília, pois é onde os imóveis são mais baratos e porque todos os seus amigos se suicidaram. Há uma dramaticidade intensa, mas há também um senso de humor muito próprio. Muito engraçada a cena em que o protagonista liga para os pais. E o que é a cena da música do Lula, hein?! Ano: 2019.

AINDA ONTEM

Retrato bonito de uma juventude que procura encontrar seu rumo em uma cidade/país que não oferece muitas opções para pessoas menos favorecidas da sociedade. É um filme que se destaca pelo carinho com que os personagens são tratados, mesmo que tenhamos apenas 20 minutos para conhecê-los. Especialmente o protagonista. O namoro com o mundo do hip-hop se mostra como uma maneira de abraçar o sentimento de deslocamento desses jovens frente à parcela rica dos curitibanos, algo que se explicita na cena da festa. Direção: Jessica Candal. Ano: 2019.

FARTURA

Um estudo sobre a importância da comida nas festas em famílias negras, em especial em famílias que adotam religiões de matriz africana. O que mais me chamou a atenção foi a questão foi a minha maneira de me comportar geralmente em festas e de como me sinto desconfortável na grande maioria delas. Mas esse é um problema meu. Nos aspectos estéticos, a escolha por apresentar apenas fotos e imagens de arquivo (a maioria de VHS) foi acertada, assim como os depoimentos em voice-over. Também gostei de ver a questão da família oferecendo comida para todos, de portas abertas, algo muito mais comum de ver em famílias pobres. Nas famílias ricas, come-se de portas fechadas. E a comida não falta. Direção: Yasmin Thayná. Ano: 2019.

GUARÁ

Um filme de lobisomem em que em vez de um lobo temos um guará e a ação acontecendo dentro do espaço de Goiânia. O espaço geográfico faz toda a diferença, tanto no sentido visual quanto nas falas dos personagens, algumas delas se demorando bastante, como a cena dos dois policiais dentro da viatura. O visual do monstro é interessante. Como é claramente uma produção de baixo orçamento, as escolhas estéticas para representar as mortes são muito felizes, como a cena em que vemos o sangue descendo em cima do distintivo de um soldado. O último plano-sequência também é muito bom. Ao final, um simbolismo que traz ao filme uma carga política que havia sido esquecida logo no início, quando vemos informações sobre a quantidade imensa de estupros cometidos no Brasil. Direção: Fabrício Cordeiro e Luciano Evangelista. Ano: 2019.

TUDO QUE É APERTADO RASGA

A questão do papel do negro na sociedade brasileira e nas artes ainda vai durar muito tempo para se esgotar. Se é que um dia vai. Inclusive, com um governo retrógrado desses. Este curta traz imagens de filmes brasileiros protagonizados por negros e dá especial destaque, em entrevistas de arquivo, para dois grandes da dramaturgia, Grande Otelo e Zezé Motta. Há também Ruth de Souza, mas aparece bem menos. A estrutura do filme parece prometer algo maior, mas as imagens e as palavras daquelas pessoas são tão fortes que já são suficientes para que vejamos este filme. Direção: Fabio Rodrigues Filho. Ano: 2019.

ESPECIAL DE NATAL - PORTA DOS FUNDOS: A PRIMEIRA TENTAÇÃO DE CRISTO

Assisti em duas partes este filminho cujo única qualidade é usar sua liberdade para transgredir, brincar. Pena que o pessoal do Porta dos Fundos não consegue fazer algo bom fora do território das esquetes, que é de onde eles têm obtido mais sucesso, ainda que de maneira irregular. De todo modo, o sucesso deste aqui é de popularidade (ou de falta de) devido ao modo como brinca com os personagens do Novo Testamento. O roteiro é preguiçoso e não há timing. Talvez a piada que melhor funcione seja a de Deus se aproximando de Maria. Ainda assim, nada que faça rir. Direção: Rodrigo Van Der Put. Ano: 2019.

O BANDO SAGRADO

Outro trabalho corajoso de Breno Baptista. Já tinha visto MONSTRO (2015), que também trata das relações homoafetivas e do impulso intenso do desejo, e também utilizando imagens de impacto. Aqui há cenas de felação e outras situações de intimidade entre dois homens, o que é interessante para que esse tipo de cena se naturalize. Por mais que seja um trabalho que seja visto por um número pequeno de espectadores, ser um filme LGBT e ser o nome de Baptista cada vez mais forte nos festivais ajuda a aumentar esse número. Aqui há o interessante paralelo entre um sonho relativo a um grupo de guerreiros homossexuais do passado e o desejo e o encontro de Breno com um rapaz. Ano: 2019.

REVOADA

Outro filme LGBT de cujo realizador eu já havia visto um filme em 2015 (De Terça pra Quarta). Este tem um lirismo muito bonito, com uma narração em voice-over do protagonista lembrando de tanajuras na infância, ao mesmo tempo em que passeia por Fortaleza com o seu paquera. A geografia é explorada, assim como as conversas simples e as entrelinhas que eventualmente ficam entre os diálogos dos dois. O preconceito dos transeuntes não passa batido, mas isso não parece perturbar muito os personagens, que seguem cuidando daquilo que lhes interessa mais. E seguem felizes. Direção: Victor Costa Lopes. Ano: 2019.

ONDE A NOITE NÃO ADORMECE

Certos filmes são importantes serem vistos principalmente para entendermos nossa ignorância em se tratando de alguns assuntos. No caso, a minha ignorância quando o assunto é religiões afrobrasileiras. Neste curta temos a presença de três personagens que passam a noite executando rituais e/ou oferendas a entidades do candomblé, creio eu. Falta em mim a capacidade de perceber a beleza nessa cultura, principalmente pela minha formação religiosa. Aí acabo vendo com algum distanciamento e às vezes até com certo desconforto. Mas antes essa sensação era muito mais acentuada. Direção: Paolla Martins e Rodrigo Ferreira. Ano: 2018.

NEGRUM3

Um filme que tem força tanto estética quanto como um lugar de fala dos negros, em especial dos negros LGBT, de sua reivindicação por direitos iguais, pelo respeito aos seus corpos. Quanto à parte técnica, chegam a impressionar os enquadramentos, os movimentos de câmera, a direção de arte, as cores, a valorização da melanina diante das cores escolhidas. Direção: Diego Paulino. Ano: 2018.

CAETANA

Bela realização paraibana sobre a morte não dita, mas percebida, de alguém, e a reunião de pessoas em torno de seu velório. Flagra as conversas paralelas das pessoas na casa, sempre tentando evitar a fala sobre o morto ou a morta, mas o sentimento/a sensação fica ali no ar. Uma maneira de trazer, ao mesmo tempo, um sentimento de respeito e de mostrar que a vida continua. Pequenos detalhes são importantes, como o uso dos celulares (ou a hora em que eles são impróprios), a brincadeira no ônibus etc. Direção: Caio Bernardo. Ano: 2019.

CARNE

Acho incrível como ideias aparentemente simples podem render obras tão maravilhosas. É o caso deste Carne, curta de animação realizado em São Paulo, sobre o corpo da mulher. Em sua maioria, o corpo que sofre algum tipo de preconceito ou rejeição. Seja o corpo da mulher gorda, ou da transexual negra, ou da mulher idosa (a exceção talvez seja da moça que acabou de menstruar). E tudo contado apenas com os áudios dessas mulheres e diferentes tipos de animação (lindas) passando pela tela para ajudar a contar essas histórias, esses depoimentos. Adorei! Direção: Camila Kater. Ano: 2019.

APNEIA

A animação brasileira chegou a um estágio em que não fica nada a dever a nenhum outro país. Pena que pouca gente entre em contato, já que as melhores produções ainda são no formato de curta-metragem, em geral acessado principalmente pelos frequentadores dos festivais. E são animações adultas. Apneia, produzido no Paraná, segue uma pegada existencial e por um caminho de se perder no próprio ser. A protagonista é uma menina que nasceu sob o signo de peixes e o filme é lotado de água (o mar é onipresente) e dos elementos próximos (a casa dela fica ao redor de um aquário). Muita coisa achei confusa, mas acho coerente com uma proposta pisciana de se perder no oceano de sentimentos. Aqui há literalmente alguém se perdendo, sentindo-se confusa, mas talvez também se sentindo um tanto especial. "Mãe, quem é de Peixes veio mesmo do mar?". Direção: Carol Sakura e Walkir Fernandes. Ano: 2019.

DEUSA OLÍMPICA

Belo documentário que tenta resgatar a vida e a obra de uma artista plástica trans que tinha uma atração muito forte pela Igreja, pelos seus simbolismos, seus sacramentos e sua história. O filme já começa com imagens de pinturas em uma igreja, depois temos os diretores entrevistam a mãe da artista, assim como padres. Há uma curiosa entrevista que a artista deu no programa do Lúcio Brasileiro. O que fica é a impressão de que, mesmo nos dias de hoje, ela ainda seria maltrada como foi até sua morte, em 1998. Direção: Emília Schramm, Jéssika SOuza, Pedro Luis Viana e Rafael Brasileiro. Ano: 2018.

SETE ANOS EM MAIO

Quem se apaixonou por ARÁBIA (2017) e pelo ator de si mesmo Rafael dos Santos certamente vai ficar feliz em ver este SETE ANOS EM MAIO. Feliz talvez não seja a palavra certa, já que o filme se mostra basicamente como um monólogo de Rafael, contando do quanto sofreu depois de ter sido torturado por policiais e ter fugido para não morrer. A história é sofrida e talvez algo no meio do processo tenha sido mudado pela direção de Affonso Uchôa ou pelo próprio Rafael, mas a essência está ali, toda sua dor, sua raiva, sua tristeza. E o desejo de se vingar dos donos do poder, como no final de Arábia. Ano: 2019. (foto)

A MULHER QUE SOU

Belo filme sobre recomeços. Muito envolvente, com personagens que encantam no ato. Tanto a mãe e a filha quanto o vendedor, vivido por Renato Novaes, conhecido de quem acompanha os filmes de Contagem-MG. A cena das carícias dos personagens é bem criativa, tem um trabalho de experimentação que combina tanto com o jazz que ouvimos quanto com a cor de suas peles. Dá uma sensação de que poderia render mais, que fica algo no ar, mas isso acaba sendo positivo também. Sinal de que é um filme gostoso de ver. Direção: Nathália Tereza. Ano: 2019.

OCEANO

Adorei a simplicidade e a maestria narrativa deste curta. Às vezes não precisa inventar muita coisa para fazer uma bela obra. E as duas diretoras sabem o que fazem com a câmera em mãos e uma sensibilidade muito aguçada para transformar a ideia em imagens e sons. Temos a história de uma moça que pega um ônibus na rodoviária de Fortaleza para uma cidade do interior e acaba tendo que arranjar outros meios para chegar a seu destino. Lindo tudo: a representação do lugar longe de tudo, os personagens, e especialmente o final. Direção: Amanda Pontes e Michelline Helena. Ano: 2019.

SANGRO

Bela animação que narra a dor de quem se descobre soropositivo. Apesar de haver medicações que fazem com que o vírus não seja mais uma ameaça de morte, ainda há a questão do preconceito, que segue forte, até porque há um silenciamento entre as pessoas. Aqui temos um depoimento real, mas a animação, o modo como são dispostas as imagens, como num oceano de emoções, fazem toda a diferença. Uma belezura. Direção: Tiago Minamisawa, Bruno H Castro e Guto BR. Ano: 2019.

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