sexta-feira, agosto 25, 2017

BINGO - O REI DAS MANHÃS

Daniel Rezende é pé quente. Seu primeiro filme como montador foi CIDADE DE DEUS (2002). Já chegou com muita força, recebendo até indicação ao Oscar e um reconhecimento internacional que o levou a trabalhar com Terrence Malick, em A ÁRVORE DA VIDA (2011). Sem falar em colaborações memoráveis em outros filmes marcantes de diretores brasileiros como Walter Salles, José Padilha, Laís Bodansky e novamente com Fernando Meirelles.

Ser um editor de filmes de sucesso de público deve ter lhe dado uma sábia compreensão do que se deve fazer para que um filme flua bem. Em BINGO - O REI DAS MANHÃS (2017), sua estreia na direção de longas-metragens, não parece haver nenhuma gordura. Tudo no filme está ali muito bem amarradinho. Difícil perder o interesse em algum momento. E não só porque é uma obra que fala de assuntos que interessam a quem viveu os anos 1980 e assistia o programa do Bozo, embora tenha um sabor especial para aqueles que testemunharam aqueles anos de exageros.

Provavelmente vão dizer que BINGO é pouco "brasileiro", mas, puxa, que baita filme. Sem falar que há sim muita coisa de brasileiro nele. Se não na estrutura, que é mais clássica e que lembra bastante o cinema americano, mas na história em si, que é toda nossa, na incrível adaptação do palhaço gringo Bozo em terras tupiniquins. E por mais que tenham mudado o nome do palhaço para Bingo por problemas com direitos, foi muito positivo o diretor Daniel Rezende ter mudado o nome do palhaço e também o do ator que o interpreta, que aqui não se chama Arlindo Barreto, mas Augusto Mendes, e é vivido de maneira inspirada por Vladimir Brichta, de modo que possa estar mais livre para construir uma obra de ficção sem obrigações com a verdade.

O fato de BINGO trafegar por caminhos sombrios é outro aspecto atraente. Até dá pra entender o fato de ter sido a Warner a distribuidora do filme aqui, já que é uma empresa que tem raízes nos filmes de gângster e nunca se desvencilhou totalmente dessa linha mais dark. Como o palhaço é uma figura que também desperta medo em algumas pessoas, há pelo menos um momento em que é explorada essa questão com intensidade. E é uma cena tão forte que é fácil questionar se aquilo aconteceu de verdade com o Arlindo no SBT.

Na trama, Augusto Mendes é um ator de pornochanchada que está separado da esposa e que tem uma relação muito próxima com o filho. Logo no começo do filme, o menino até chega a flagrar um pouco o trabalho do pai dentro daquele universo em que o cinema brasileiro parecia uma versão nua, crua e desbocada do que era representado de forma mais limpa nas telenovelas da Globo. Inclusive, era possível ver algumas das atrizes globais nuas em determinados filmes. Isso fazia parte da graça da época e é representado no filme na figura da ex-esposa de Augusto.

As coisas ficam mais interessantes para o protagonista quando ele, depois de se sentir humilhado com uma ponta em uma novela da Rede Globo (no filme, Mundial), vai parar, sem querer, no teste para ser o palhaço Bingo, em uma das mais caras apostas do SBT, que aqui aparece com outro nome também. E é com sua inteligência e astúcia que ele consegue não só tirar sarro do produtor gringo, como mostrar, à sua maneira, que era preciso adaptar as piadas para o Brasil, se quisesse arrancar o riso e conquistar as crianças.

Mas o que mais encanta no filme é o quanto esse universo de programa infantil é tratado como sendo mais uma fachada para a vida louca de Augusto, que bebia e cheirava muito nos bastidores, além de se envolver em orgias e desfrutar das loucuras que o dinheiro podia comprar. Talvez o ponto fraco do filme seja ter quase que uma obrigação de fazer um arco dramático para redimir o personagem, embora isso seja perfeitamente coerente com um tipo de cinema mais comercial - sem querer colocar nenhuma carga pejorativa no termo.

Outras coisas que divertem e emocionam são as inúmeras referências pop dos anos 1980. Não apenas a televisão, mas o comportamento e as canções escolhidas, com muita new wave brasileira, mas também duas lindas faixas do Echo and the Bunnymen. O que não quer dizer que também não haja uma trilha sonora original ótima, que se destaca principalmente nos momentos mais dramáticos e sombrios do filme. Claro que é possível encontrar alguns problemas nas interpretações e no roteiro, mas são coisas que podem ser relevadas diante de um todo brilhante.

Embora o maior mérito seja de Rezende, o cineasta está rodeado de técnicos ilustres: Lula Carvalho como diretor de fotografia, Luiz Bolognesi como roteirista, Marcio Hashimoto como montador, Cassio Amarante na direção de arte, além de um elenco de apoio muito bom - como esquecer de uma cena do Brichta com a Leandra Leal em um restaurante? Aliás, como esquecer tantas cenas memoráveis de BINGO? É o tipo de filme que merece ser revisto, até para prestarmos mais atenção nos detalhes que em uma primeira vez pode passar.

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