sexta-feira, junho 17, 2005

PAPRIKA

 

Tinto Brass é talvez o único cineasta da atualidade que faz cinema erótico - e com praticamente um pé na pornografia - que trafega com respeitabilidade dentro do circuito dos filmes de arte. É um feito e tanto, já que é costume acreditar que os filmes eróticos são inferiores aos outros. O que é até normal, já que o desejo sexual aproxima o homem do animal, enquanto que o pensar nos diferencia dos outros animais. Por isso que é difícil haver filmes que excitam e, ao mesmo tempo, provocam reflexão. Talvez porque, com o estímulo sexual, o coração bombeia o sangue para a região do sexo. Assim, o pensar se torna algo mais turvo, perde-se a clareza das idéias - é mais fácil fazer loucuras inconseqüentes quando se está com tesão. Tentar fazer filmes com tramas mais complexas e contendo cenas tórridas de sexo parece uma mistura um pouco indigesta. O espectador corre o risco de se desinteressar pelas partes do filme não relacionadas diretamente ao sexo. Um exemplo que primeiro me vem à cabeça é de DOG WALKER, de John Leslie, filme de sexo hardcore, mas com vários momentos de conversa e uma trama um pouco mais complicada pra quem não tem muito sangue sendo bombeado para o cérebro. 

Tinto Brass não cai nessa armadilha. Em geral, o sexo permeia toda a sua obra. Há uma história bem desenvolvida, mas sem complicações narrativas. E o sexo está no ar o tempo todo. Mesmo assim, acho que o ideal antes de ver um filme de Tinto Brass é não ir com muita sede ao pote, no sentido de se querer ver apenas uma sacanagem estimulante. Seus filmes não são feitos para fins meramente masturbatórios. Lembro que quando aluguei a fita de TODAS AS MULHERES FAZEM eu me preparei para ver um filme convencional, não um filme pornô. Resultado: é o filme de Tinto Brass que mais mexeu com minha libido até hoje. 

PAPRIKA (1991) é Tinto Brass em grande forma. O filme mergulha no submundo dos antigos bordéis italianos, antes deles serem fechados pelo governo. Quem viu ROMA, de Fellini, tem uma idéia de como eram esses lugares. Mas Tinto Brass vai mais a fundo, ao contar a história de Paprika, nome de guerra de uma jovem de 18 anos que pretende passar apenas duas semanas trabalhando de prostituta num bordel para conseguir dinheiro para ajudar o necessitado noivo. Por uma série de eventos, as duas semanas se prolongam bem mais do que ela esperava. 

Como se trata de um filme de Tinto Brass, o trabalho não é nenhum sacrifício para a jovem fogosa. Ao chegar no bordel, ela é encaminhada ao médico, para que seja verificado se ela tem alguma doença venérea. Ela gosta tanto do toque do médico que quer logo que ele seja o seu primeiro cliente. Também não faltam experiências com o mesmo sexo para Paprika. 

Brass faz um verdadeiro elogio aos bordéis e suas prostitutas nesse filme. Sem moralismos. Até os padres freqüentam os tais lugares. A seqüência que mostra Paprika indo a um médico clandestino para fazer um aborto - o médico é o próprio Tinto Brass, com cara de safado e fazendo questão de pegar nos peitos da paciente -, é seguida de uma cena de pura felicidade. Não há lugar para a culpa cristã em PAPRIKA. Se fosse outro filme, provavelmente a moça teria tido uma hemorragia ou uma infecção hospitalar. 

Debora Caprioglio, a Paprika, era namorada de Klaus Kinski - a última, pois foi mais ou menos na época do filme que ele morreu de ataque cardíaco. Diz a lenda que Brass estava procurando uma intérprete ideal para o seu novo filme, quando viu Debora assistindo a uma partida de tênis e teve certeza que era ela a Paprika. Conseguiu o telefone da casa da moça e quando a mãe dela soube que a filha iria ser convidada para trabalhar com o mestre do erotismo, em vez de proibir, ficou felicíssima. Debora não tem a beleza plástica de maravilhas como Katarina Vasilissa, de O VOYEUR (1994), Yuliya Mayarchuk, de A PERVERTIDA (2000), Claudia Koll, de TODAS AS MULHERES FAZEM (1992) ou de Stefania Sandrelli, de A CHAVE (1983). As mulheres com certeza encontrariam defeitos no corpo da moça, mas ela tem uma cara de quem gosta muito de sexo, e isso ajuda muito. Ela conquista o espectador, com seu jeito adolescente e sem-vergonha. 

PAPRIKA foi realizado na virada dos anos 80 para os 90, época em que a AIDS era uma doença ainda mais mórbida do que é nos dias de hoje. Por isso, há em todo o filme um clima de saudosismo, a começar pelos créditos de abertura, com uma bela música reaproveitada de A CHAVE, um dos mais celebrados filmes de Brass. O diretor dá a entender que eram mais felizes aqueles que viveram nos tempos dos bordéis, um tempo em que era possível curtir os prazeres da vida sexual sem uma preocupação maior. 

Agradecimentos ao Carlão Reichenbach, que gentilmente me presenteou com uma preciosa cópia em DVD do filme.

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