É até vergonhoso dizer, mas PEÕES e ENTREATOS (ambos de 2004) são os dois primeiros filmes brasileiros que eu vejo no cinema em 2005. Vergonhoso pra mim, como cinéfilo, mas ainda mais para os distribuidores dos filmes nacionais. Fora as comédias românticas com cara de produção da Globo e que não me despertaram o menor interesse, como O CASAMENTO DE ROMEU E JULIETA e MAIS UMA VEZ AMOR, e uma exibição relâmpago de SEPARAÇÕES, de Domingos de Oliveira, dá pra se contar nos dedos de uma só mão a quantidade de filmes brasileiros lançados por aqui este ano. Espero que isso mude.
Os documentários de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles são peças importantíssimas desse atual momento que a cinematografia brasileira está passando. Os dois filmes inspiram discussões acerca da própria natureza do documentário, esse gênero que tem crescido cada vez mais e está ficando cada vez mais popular não só no Brasil, como no mundo inteiro, vide a bilheteria recorde para o gênero de FAHRENHEIT 11 DE SETEMBRO, de Michael Moore.
Os dois filmes apresentam o nosso atual Presidente da República em momentos distintos de sua vida e carreira política. Gostando-se ou não do Lula ou de política, PEÕES e ENTREATOS são indispensáveis. Chegaram bem atrasados em Fortaleza, em comparação com o lançamento em São Paulo e Rio de Janeiro há cinco meses, mas pelo menos chegaram.
PEÕES
Contrariando a crítica, que em geral tem preferido o filme de Coutinho ao do João, eu acabei gostando mais de ENTREATOS. Acho que um dos principais problemas de PEÕES é que Coutinho dá mais a cara pra bater, especialmente quando ele se aproveita da emoção dos entrevistados. Inclusive, duas dessas cenas são realmente tocantes. A primeira, que mostra um velho senhor, antigo operário da Volkswagem como os demais entrevistados, relembrando de quando conheceu a sua atual esposa e ficando com a voz embargada de emoção; a outra flagra um outro senhor, viúvo e que chora ao ver a fita dos anos 80 onde sua mulher aparece. Mas no final, com aquele silêncio e a câmera esperando o entrevistado chorar e ele meio que recusando, é que sentimos um certo incômodo. O que difere esse filme de outros dois do Coutinho que vi - SANTO FORTE (1999) e EDIFÍCIO MASTER (2002) - são as inserções de momentos históricos retirados de três documentários importantes: ABC DA GREVE, LINHA DE MONTAGEM e GREVE. Esses filmes mostravam Lula como um ativista político e grande articulador de greves dos metalúrgicos do ABC paulista.
PEÕES mostra Lula quase como um mito, respeitado e adorado pelos ex-metalúrgicos, que o viam como um pai na época das greves, e em 2002, nas vésperas das eleições presidenciais, vêem-no como uma espécie de salvação para o país, além de legítimo representante da classe operária. Lula aparece com trajes mais casuais, fumando e sorrindo pouco, levando a sério sua missão de fazer valer os direitos da classe trabalhadora e incentivando os trabalhadores a resistirem, mesmo que sejam presos ou apanhem da polícia.
Outro trecho interessante de PEÕES é o momento do making of, quando Coutinho inicia suas pesquisas, primeiro procurando, através de fotos, as pessoas que fizeram parte daqueles movimentos. Para os cearenses, o filme ainda traz a curiosidade de mostrar a cidade de Várzea Alegre, terra natal de dois dos entrevistados.
ENTREATOS
Agora, divertido mesmo é o filme de João Moreira Salles. Acho que esse foi o filme que eu mais ouvi risos da platéia esse ano. E pensar que eu quase desistia do filme e ia pra casa, logo depois do filme do Coutinho. Ainda bem que resisti bravamente às cadeiras desconfortáveis do Espaço Unibanco e o tempo foi muito mais generoso e agradável comigo durante ENTREATOS, que até tem uma duração maior que PEÕES.
Isso aconteceu não apenas porque o assunto desse filme é mais interessante pra mim, mas porque, do jeito que ficou editado, o filme adquire um ar de quase ficção, de história contada, com início, meio e fim. Algumas cenas são poéticas de tão belas, como aquela que mostra Lula no avião, confessando o medo que ele tinha de ser eleito e ser dominado pelo sistema, de ter que seguir as regras já impostas pela máquina - e parece que infelizmente foi isso que aconteceu. Os silêncios entre as conversas contribuem para a reflexão e apreciação do filme, dando tempo para respirar, pensar e sentir.
Lindo o momento que mostra Lula, sentado no chão com sua esposa Marisa, esperando a apuração final dos votos no segundo turno. Como também, o momento da comemoração, com todo aquele entusiasmo em clima de "Agora é Lula!". Mas o Lula de ENTREATOS, em comparação com aquele líder jovem das greves de PEÕES, parece mais passivo, aceitando tranqüilamente todas as orientações do marqueteiro Duda Mendonça, homem forte da publicidade que soube fazer uma imagem do Lula aceitável até para as pessoas mais conservadoras. Sem falar das propagandas eleitorais, que eram um espetáculo. Fiquei fascinado com a organização por trás dos debates dos presidenciáveis na Rede Globo. Coisa de cinema.
Se PEÕES contribui para a discussão do documentário enquanto gênero neutro e isento de posicionamento, ENTREATOS se assemelha a DEZ, de Abbas Kiarostami, no sentido de que o diretor do filme, nem sempre está presente e com a câmera na mão, mas ainda assim o trabalho fica coeso e consistente, autoral até. A cena de Lula recebendo a confirmação de que foi eleito Presidente do Brasil foi filmada por Mariana, filha do Aloísio Mercadante, a pedido de João, que não estava com autorização para filmar naquele dia. Imagina se essa cena não entrasse. O filme iria ficar menos brilhante.
João Moreira Salles já tinha feito um documentário excelente sobre uma celebridade menos popular um ano antes. Lembro que quando fui ver NELSON FREIRE (2003) fiquei impressionado com a leveza do filme, com os vários cortes e takes curtos divididos em capítulos, além da própria vida do excêntrico pianista. Se com NELSON FREIRE, João conseguiu atrair a atenção e agradar a audiência, imagina com um filme que cobre o momento pré-posse de Lula. Não tem como ficar decepcionado.
P.S.: Hoje à noite, aqui em Fortaleza, haverá dois debates bem interessantes. Um deles, com a participação de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, acontecerá no Centro Cultural Banco do Nordeste; o outro, com Beto Brant, que terá sua obra completa exibida a partir de hoje no Auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Pena que não vou poder ir, tenho que dar aula, mas pretendo ir ver no sábado os curtas de Brant e na quinta-feira vou fazer o possível para dar uma escapulida aqui do trabalho para ver um certo FILME DEMÊNCIA, do diretor preferido de Beto Brant.
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