domingo, novembro 16, 2025

MORTOS QUE CAMINHAM (Merryl’s Marauders)



Estou tentando, nesta fase de adaptação da nova morada, enquanto também preciso comparecer para revezamento com minhas irmãs na casa de minha mãe, dar seguimento à peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller, que comecei em 2023 e sei que é praticamente impossível eu terminar em 2025, uma vez que Fuller fez filmes até 1990. Até seria possível, se eu não quisesse ver mais nada que não fossem seus filmes. O importante é que o cineasta segue me surpreendendo. Embora muitos de seus elementos e obsessões passem a se tornar familiares, há sempre algo de novo no filme seguinte do realizador.

Dos filmes de guerra de Fuller, MORTOS QUE CAMINHAM (1962) foi o que mais me comoveu. Pode não ser tão plasticamente belo quanto NO UMBRAL DA CHINA (1957) e PROIBIDO! (1959), sendo que este é mais um pós-guerra, mas é impressionante a condução do diretor tanto nas cenas de batalha, envolvendo muitos soldados/atores/figurantes, quanto (e principalmente) nas cenas mais calmas, por assim dizer. Aliás, é justamente nessas cenas que Fuller demonstra seu imenso coração e sua capacidade de criticar a guerra de dentro do sistema ao usar recursos do próprio exército dos Estados Unidos para nos apresentar ao horror e ao absurdo do conflito, em especial da trajetória/tragédia de centenas de homens que atravessam longos quilômetros para chegar a determinada cidade invadida pelos japoneses, em Burma, sem que esses homens soubessem que chegariam até tal cidade – o general aceita a missão e, sabendo que seus homens estão extremamente exaustos, os engana, lhes omite essa informação.

Há uma cena em especial que Fuller trabalha tão bem o melodrama, que chega a se equiparar a momentos intensos de sua filmografia, como a morte de Moe em ANJO DO MAL (1953) e a cena de Stanwyck e Sullivan se beijando ao som do ruído dos pés do homem que havia acabado de se enforcar em DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957). Essencial para quem quer um exemplo claro do absurdo da guerra, e que fica ainda mais explícito quando vemos o trailer com ares de filme institucional e de exaltação do heroísmo e sacrifício do exército. Ou seja, a Warner e o próprio Fuller estavam fazendo um jogo bastante interessante com o exército, uma vez que estavam supostamente exaltando a coragem e o sacrifício desses 3.000 homens que foram nessa missão, quando no final é contado o pequeno número de sobreviventes desse projeto assassino.

Os homens do general Merryll enfrentam tiroteio de japoneses nas florestas de Burma, sobem por montanhas íngremes, por rios perigosos, pântanos, num período de vários meses. Como o filme já nos apresenta a esses homens em estado de cansaço, mas já dando graças a Deus que fechariam seu serviço com a chegada dos britânicos, vê-los tendo que seguir lutando por longos quilômetros, é de dar dó. Entre as cenas de batalha, é incrível o momento em que Fuller vai fazendo sua câmera se distanciar da ação, de modo que vejamos mais, e em scope, o quanto de japoneses aqueles soldados americanos ainda enfrentam, muitos deles com ferimentos graves, malária e tifo. Em comparação com outros filmes de Fuller que parecem mais virtuosos nos movimentos de câmera, este parece ser mais sutil, mas ainda assim não deixa de ser incrível. A cada dia tiro mais meu chapéu para Fuller.

+ TRÊS FILMES

CÃO DANADO (Chien de la Casse)

Jean-Baptiste Durand tem um rosto conhecido no cinema francês em sua carreira de ator. Mais recentemente, por exemplo. pôde ser visto em MISERICÓRDIA, de Alain Guiraudie. Na direção, depois de alguns curtas, ela estreia em longa-metragem com CÃO DANADO (2023), uma história sobre a relação entre dois jovens amigos de infância. Um tipo de relação que mistura tanto afeto quanto um frequente bullying por parte de um deles ao outro. O personagem de Raphäel Quenard, Antoine, é falastrão e gosta de pegar no pé do amigo calado, Dog, vivido por Anthony Bajon. E por vezes essa maneira de chamar a atenção do amigo se manifesta de forma bastante violenta, como quando chama a atenção dele pelo ruído que faz ao comer, ou quando Dog deixa claro que não sabe onde fica Quebec. A relação dos dois toma um novo rumo quando Dog passa a namorar uma jovem que passa uma temporada pela cidadezinha. Isso revela tanto a inexperiência de Antoine no trato com as mulheres (até por nunca ter namorado) quanto a passividade de Dog ao não rebater à altura as agressões verbais do amigo. O andamento narrativo da história segue o aspecto modorrento de uma cidade tão pequena quanto carente de empolgação, ao mesmo tempo que os becos da cidade servem de palco para uma de suas sequências mais decisivas. Tanto para a história quanto para o destino dos personagens.

CORAÇÃO DE LUTADOR – THE SMASHING MACHINE (The Smashing Machine)

Eis um filme em que saímos do cinema com a dúvida quanto a ter ou não gostado. Talvez aquele epílogo tenha me surpreendido demais e eu depois fui procurar sinais ao longo do filme, coisas que não havia notado, até porque tanto o Mark Kerr de Dwayne Johnson quanto o Mark Coleman de Ryan Bader são personagens apresentados com um forte laço de amizade, mas também com muita disciplina e seriedade em seus trabalhos de lutadores de MMA. Além do mais, há muito foco na relação tensa entre Kerr e sua esposa, vivida por Emily Blunt. O que gosto muito em CORAÇÃO DE LUTADOR – THE SMASHING MACHINE (2025) é do quanto ele parece encapsular seus personagens em espaços em que só existem eles, quase como se eles estivessem presos numa espécie de limbo. As cenas na casa de Kerr com a esposa parecem saídas de uma produção televisiva dos anos 80, sendo que todas as vezes em que ele quebra as portas em acesso de raiva se percebe claramente que aquelas portas são feitas de algum material leve, e isso é deliberado, faz parte de uma intenção de mostrar um ar falso, de (des)ilusão. No começo, achei que o vício de Kerr em analgésicos seria algo ainda mais essencial para sua história, no sentido de que seria o seu fim. Ao trazer Dwayne Johnson para um papel mais desafiador e complexo, Benny Safdie repete o que fizera com Adam Sandler em JOIAS BRUTAS (2019), que aliás é um filme que também não me conquistou plenamente. Ou seja, ou eu preciso aprender a gostar dos filmes do diretor ou sempre me faltará afinidade com eles.

HOMEM COM H

Para uma cinebio que tem a ambição de cobrir uma parte considerável da vida de seu biografado – no caso, da infância até os anos 2000 – HOMEM COM H (2025), de Esmir Filho, é brilhante em tudo que se arrisca a fazer. Já começa em ter um Jesuíta Barbosa em estado de graça, mas a força maior está no próprio Ney Matogrosso e sua história de vida, no quanto o tratamento duro recebido pelo pai acabou forçando os rumos de sua vida, assim como sua própria capacidade de ser dono de seu destino. Na parte que trata dos Secos & Molhados, já se percebe isso e depois ainda mais. Há uma série de cenas engraçadas, como a visita da censura, mas há também as que destacam a erotização do corpo e a vida louca que o artista levou durante um bom tempo. O curioso é que, como Ney Matogrosso é um artista muito reservado, eu pouco sabia de muitos detalhes que o filme apresenta, inclusive coisas dos anos 1990. E como acabei me tornando uma pessoa que chora em filmes sobre relacionamentos entre pai e filho, há uma cena que me desidratou, ao som de um grande clássico da música brasileira. Que coisa linda! Aliás, ver HOMEM COM H é também passear por esse cancioneiro incrível ao longo de mais de três décadas e por uma voz singular de um artista que também sabia usar o corpo como um ator. Termina a sessão e as palmas da sala lotada são inevitáveis. Para o filme, mas principalmente para Ney Matogrosso.

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