sábado, dezembro 07, 2024

A LONGA CAMINHADA (Walkabout)



Nos extras do box Ozploitation, da Versátil, dedicado a filmes australianos cultuados, há um comentário de Danny Boyle em que o diretor afirma que Nicolas Roeg é o maior cineasta inglês de todos os tempos. Um comentário um tanto corajoso, levando em consideração que Hitchcock é inglês e há também uma disputa com gente de peso como David Lean e a dupla Powell e Pressburger. Mas vendo A LONGA CAMINHADA (1971) eu percebo o quanto deveria ter dado mais atenção à filmografia de Roeg, que brilhou especialmente na década de 1970. Do cineasta, só havia visto até então INVERNO DE SANGUE EM VENEZA (1973) e O HOMEM QUE CAIU NA TERRA (1976) e um que não sei se dá pra considerar, do fim da carreira, a comédia CONVENÇÃO DAS BRUXAS (1990).

Talvez começar logo com A LONGA CAMINHADA ajude a chamar mais atenção para o trabalho bastante original do diretor, do quanto se trata de um autor mais apegado às imagens e ao som do que às palavras. Elas, as palavras, são até um empecilho no filme, já que a menina adolescente e seu irmão pequeno conseguem pouca comunicação com o jovem aborígene que os salva da morte por fome e sede naquele outback australiano. A menina, vivida por Jenny Agutter, é a personagem principal do trio, é a maior aproximação com o espectador, assim como ela letrado e mais atento à sexualidade que a criança e mais conhecedor do que se ensina nos livros – conhecimento que se torna quase nulo quando o que se precisa é matar um animal para sobreviver ou saber de onde se tira água de um lugar de onde só se vê lama.

Tanto ela quanto o jovem de pele escura começam a sentir uma atração um pelo outro em determinado momento da narrativa e esse sentimento ou sensação é evidenciado por usos diferentes e criativos da câmera. Ora um close-up, ora uma imagem dos dois frente a frente, ora o olhar de cada um individualmente. Sem falar no que passa pela cabeça de cada espectador ao longo do desenvolvimento da trama. O uniforme escolar de saia curtinha da garota e as imagens do corpo seminu do rapaz, bem como as cenas antes cortadas (e resgatadas) da moça nua, parecem algo que vão além da sugestão, embora o filme trate isso com muita sutileza. Da parte do rapaz, inclusive, o desejo não descamba para a violência sexual: de sua aldeia, ele havia aprendido o cortejar através de rituais. 

O filme é às vezes tão brutal quanto PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff, no que se refere à matança dos animais, mas se equilibra bem com a doçura, a beleza e a suavidade das imagens e também da jovem, que precisa ser uma espécie de mãe do garotinho, naquela situação de abandono e aflição.

Há uma cena que parece pouco importante, mas que eu destacaria, que é quando o menino diz que história de super-herói não tem graça, pois ele já sabe que esse herói não vai morrer: vai vencer. E ele tem razão: numa história como essas, tudo é possível. Como, por exemplo, encontrar depois de muitos dias a “civilização” e os dois não receberem abrigo.

A LONGA CAMINHADA foi o segundo filme de Nicolas Roeg, e seu primeiro solo. O primeiro creditado a ele havia sido PERFORMANCE (1970), codirigido por Donald Cammel. A LONGA CAMINHADA ajudou a impulsionar o Novo Cinema Australiano. No ano de sua realização, entrou em vigor o Australian Film Development Corporation, que, graças a incentivos fiscais, ajudou a fazer nascer obras de cineastas de renome, como Peter Weir, Gillian Armstrong, Phillip Noyce, Fred Schepisi e George Miller.

+ TRÊS FILMES

A HISTÓRIA DE 'O' (Histoire d'O)

Meu maior interesse por A HISTÓRIA DE 'O' (1975), de Just Jaeckin, se deu para conferir novamente o talento e a elegância de Corinne Cléry, que vi recentemente no thriller de ação exploitation O FUGITIVO SANGUINÁRIO. A atriz vinha de alguns filmes que exploravam sua beleza, em especial esta adaptação do clássico romance de sadomasoquismo, certamente um dos trabalhos mais importantes dentro da ficção que explora o BDSM. Na década de 1970, a apresentação desse tipo de fetiche ganhava mais corpo no cinema, principalmente o europeu, que havia conquistado uma maior liberdade na apresentação da nudez, do sexo e das fantasias eróticas. Este trabalho do diretor de EMMANUELLE (1974) tem um refinamento que valoriza a exuberância de Cléry, ao mesmo tempo que se perde bastante na narrativa, com uma montagem um tanto confusa. Na cópia que consegui, a maior parte do áudio está em inglês, mas há pequenos trechos em francês, o que sugere que fazem parte de alguma versão estendida. Na trama, “O” é uma jovem fotógrafa de moda que ama tanto seu marido que aceita a vontade que ele tem de levá-la para passar uma temporada num local em que ela será presa, chicoteada, humilhada, entre outras coisas, das mais diferentes maneiras. A passagem de “O” por essa casa é a primeira parte do filme. A segunda me parece mais interessante e traz mais empoderamento, por assim dizer, para a heroína. A escritora do romance é uma mulher, o que não quer dizer que não esteja contaminada pelo machismo estrutural, mas esse jogo de dominador e submisso não escolhe gênero.

O SOL POR TESTEMUNHA (Plein Soleil)

Como sou desconhecedor da poética de René Clément, não tenho como reconhecer certas marcas de seu cinema neste seu trabalho mais famoso, estrelado por um Alain Delon em estado de graça - no mesmo ano, seria lançada a obra-prima ROCCO E SEUS IRMÃOS, de Luchino Visconti. Havia visto O SOL POR TESTEMUNHA (1960) na televisão, há mais ou menos uns 30 anos, e rever agora, no cinema, o torna tão melhor, tão mais brilhante em cada detalhe. Até porque, na revisão, não precisamos esperar um filme tão eletrizante (a pegada aqui é outra), embora a lembrança de FESTIM DIABÓLICO, de Hitchcock, seja quase inevitável na cena da conversa entre os dois "amigos" no barco, sobre como se daria o plano de Tom de matar o próprio amigo rico. Aliás, o filme também nos deixa, como nos suspenses de Hitchcock, torcer pelo assassino, torcer para que ele consiga se livrar da polícia ou de encontrar alguém que venha atrapalhar seus planos bem-sucedidos. Alain Delon é uma presença tão magnética que, mesmo interpretando um psicopata que se descobre um gênio do crime, a aproximação dele não chega a ser repulsiva, especialmente nas cenas com Marie Laforêt. O filme é o que muitos chamam de noir solar, que nos deixa até um tanto desconcertados diante de crimes acontecendo no meio da noite e um acobertamento de cadáver sendo visto até com certo humor e leveza. Adoro o modo como o Clément termina, longe do clichê dos filmes policiais. Exibido no Festival Varilux deste ano e presente no box Filme Noir Francês: Alain Delon, com vários extras.

PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (Dirty Harry)

Don Siegel foi um diretor que começou sua carreira com filmes noir B nos anos 1940 e fazia milagre com aquelas produções de baixo orçamento. Fez uma transição linda para a Nova Hollywood nos anos 1970, em especial com os filmes estrelado por seu parceiro Clint Eastwood, um discípulo prestes a se tornar maior que o mestre, mas também um ator que esbanja carisma e dá munição para os filmes masculinos e um tanto fascistas do período. É o caso deste PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (1971), que já começa com uma homenagem respeitosa aos policiais de São Francisco, mortos em serviço. Fez-me lembrar os primeiros filmes de guerra de Samuel Fuller. A estrutura deste primeiro título estrelado pelo inspetor Harry Callahan é simples, apresentando de cara o principal vilão, um psicopata chamado scorpio, que vem matando as pessoas usando um rifle de longo alcance. E pessoas do signo de escorpião, embora essa informação me pareça pouco importante. Eu tinha poucas lembranças de PERSEGUIDOR..., mas a memória veio forte na cena do estádio de futebol, com aquela memorável cena de afastando do local. Achei interessante o quanto é uma obra que não se importa em ser pouco sutil. Lá pelo final do filme, o vilão já fica passeando todo serelepe para chamar a atenção de seu inimigo. Um dos motivos que me chamaram a atenção para revê-lo foi o comentário entusiasmado de Quentin Tarantino em seu livro Especulações Cinematográficas. Segundo Tarantino, Siegel customizou seu filme para plateias mais velhas, para homens rancorosos e muito incomodados com as mudanças que a contracultura trouxe para a sociedade. Hoje certamente encontraria seu público, noutro contexto, embora o personagem de Clint não seja tão simples assim de ler. Tanto é que nosso querido ator/cineasta seria talvez o mais progressista dos republicanos com sua sensibilidade e sua visão crítica do país, mesmo quando enaltece heróis comuns.

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