quarta-feira, novembro 06, 2024

CASA DE BAMBU (House of Bamboo)



Acordei hoje sentindo um silêncio incômodo dos amigos nas redes. Ninguém comentando sobre a vitória de Donald Trump nas urnas, seu segundo mandato. É algo tão inacreditável que o calar-se parece ser o melhor a fazer. Pelo menos por enquanto, já que a história nos contou o que aconteceu com o mundo nos anos 1930, com a ascensão dos nazistas e dos fascistas. Ver isso ocorrendo de novo e agora num país extremamente poderoso como os Estados Unidos é de dar medo, até porque as falas xenófobas desse Trump 2.0 parecem ainda mais agressivas.

Coincidência ou não, em casa, de atestado médico, com uma gripe incômoda e que causa cansaço mental, tento escrever algumas linhas, mesmo assim, sobre um diretor que buscou refletir sobre a relação dos americanos com os estrangeiros. Samuel Fuller foi se tornando cada vez mais interessado na Ásia. Lutou na Segunda Guerra e foi também um entusiasta do exército americano e um apaixonado pelo tema da guerra, como podemos perceber em seus filmes, sempre poéticos. Mesmo um filme como A DAMA DE PRETO (1952), que exalta o jornalismo, uma forma de linguagem supostamente mais objetiva, é cheio de paixão. CAPACETE DE AÇO (1951), seu primeiro filme cuja história se passa na Ásia (Coreia), possui um tom humanista encantador.

Mas não estava preparado para CASA DE BAMBU (1955), que se tornou um dos meus favoritos do realizador até o momento, junto com o noir ANJO DO MAL (1953). Uma das graças de CASA DE BAMBU está no quanto o filme vai nos surpreendendo a cada momento. Seja na identidade e nas intenções dos personagens de Robert Stack e Robert Ryan, seja na evolução da trama, de como o líder de quadrilha (Ryan) vai se aproximando e gostando mais daquele homem com suposto histórico de crimes (Stack).

A aproximação dos dois até ganha certa conotação homoerótica, ainda que muito sutil. Li uma crítica que fala da relação dos dois como uma espécie de traição homossexual, e de como isso acaba por enfatizar a relação dos dois homens. E há a mulher japonesa, viúva, Mariko (Shirley Yamaguchi) que se encanta com o personagem de Stack, que esconde uma identidade diferente para se aproximar dela e saber mais de seu marido. Gosto muito de como o relacionamento dos dois vai se tornando mais íntimo, a cada encontro, e de como eles usam a atração que sentem um pelo outro como subterfúgio para se vingar dos assassinos do marido de Mariko.

O filme mistura os gêneros de western, espionagem e aventura com pitadas de romance e suspense e é impressionante como Fuller parece dar conta de todos esses gêneros e ainda trazer profundidade para seus personagens. Talvez seja seu trabalho que melhor explora planos gerais, talvez por ser filmado em scope – o anterior, TORMENTA SOB OS MARES, também era, mas se passava a maior parte do tempo dentro de um submarino, o que não deixa de ser igualmente notável, mas nada como poder apreciar aquele Japão do pós-guerra, como num documentário. Inclusive, esse uso bastante generoso dos planos gerais me fez parar o filme depois de 15 minutos para poder retomá-lo com mais atenção, coisa que recomendo sempre que certo filme exige um pouco mais da gente.

CASA DE BAMBU foi a primeira produção americana a ser rodada no Japão, na época sob controle dos Estados Unidos, num complicado momento do pós-guerra, com os japoneses tendo ódio do povo que os humilhou e que passou a dar as ordens, embora essa relação também vá se tornando mais ambígua e a influência cultural americana se torne muito forte. Fuller sabe muito bem apresentar a figura do americano em território estrangeiro como uma figura muito pouco bem-vinda.

Visto no box A Arte de Samuel Fuller.

+ TRÊS FILMES

PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (Dirty Harry)

Don Siegel foi um diretor que começou sua carreira com filmes noir B nos anos 1940 e fazia milagre com aquelas produções de baixo orçamento. Fez uma transição linda para a Nova Hollywood nos anos 1970, em especial com os filmes estrelados por seu parceiro Clint Eastwood, um discípulo prestes a se tornar maior que o mestre, mas também um ator que esbanja carisma e dá munição para os filmes masculinos e um tanto fascistas do período. É o caso deste PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (1971), que já começa com uma homenagem respeitosa aos policiais de São Francisco, mortos em serviço. Fez-me lembrar os primeiros filmes de guerra de Samuel Fuller. A estrutura deste primeiro título estrelado pelo inspetor Harry Callahan é simples, apresentando de cara o principal vilão, um psicopata chamado scorpio, que vem matando as pessoas usando um rifle de longo alcance. E pessoas do signo de escorpião, embora essa informação me pareça pouco importante. Eu tinha poucas lembranças de PERSEGUIDOR ..., mas a memória veio forte na cena do estádio de futebol, com aquela cena da câmera se afastando do local. Achei interessante o quanto é uma obra que não se importa em ser pouco sutil. Lá pelo final do filme, o vilão já fica passeando todo serelepe para chamar a atenção de seu inimigo. Um dos motivos que me chamou a atenção para revê-lo foi o comentário entusiasmado de Quentin Tarantino em seu livro Especulações Cinematográficas. Segundo Tarantino, Siegel customizou seu filme para as plateias mais velhas, em especial homens rancorosos e muito incomodados com as mudanças que a contracultura trouxe para a sociedade. Hoje certamente encontraria seu público, noutro contexto, embora o personagem de Clint não seja tão simples assim de ler. 

ACERTO FINAL (The Crossing Guard)

Dos três filmes muito masculinos do início da carreira de Sean Penn como diretor, talvez ACERTO FINAL (1995) seja o que menos me agradou, embora tenha um monte de cenas memoráveis e um carinho imenso que sentimos por esses dois personagens atormentados por dores distintas, mas totalmente conectadas. David Morse é o sujeito que dirigiu embriagado, matou uma garotinha de sete anos e passou alguns anos na prisão. Jack Nicholson é o pai da menina, que sonha em matar o sujeito assim que ele sair da prisão, enquanto leva uma vida totalmente errática, depois que seu casamento afundou e sua vida passou a ser sinônimo de beber e sair com prostitutas. Talvez a minha única ressalva com o filme esteja no sentimentalismo da conclusão, logo eu, que sou sentimental. Nicholson abraça um papel difícil, que o leva a situações que fogem um pouco do que estamos acostumados a ver de sua persona, como quando ele liga chorando para a ex-esposa (Anjelica Huston). Gosto muito de como Penn trata essas duas pessoas como dignas de perdão, compreensão, afeto, além de serem homens carismáticos, mesmo quando estão no fundo do poço (em especial, Nicholson, um gigante). Mas uma vez é um filme centrado nos homens, com as personagens femininas (Robin Wright, Huston, Piper Laurie) mais como representativas de um tipo de harmonia e de talvez de compreensão maior da vida que os homens não têm, ocupados tendo que lidar com o enfrentamento de seus próprios demônios.

A PROMESSA (The Pledge)

Não lembrava que A PROMESSA (2001) era tão bom. Talvez na época que o vi (há mais de 20 anos) tenha achado o filme muito arrastado, pois há de fato um andamento menos apressado que faz lembrar o cinema da Nova Hollywood, sensação percebida também em UNIDOS PELO SANGUE, a estreia na direção de Sean Penn. Este seu terceiro filme também conta com um personagem policial e conta com um plot mais delineado, ainda que também seja muito centrado na construção do personagem de Nicholson, o velho policial aposentado que promete pela sua alma que pegará o assassino de uma garotinha. Com o principal suspeito tendo cometido suicídio, o caso é encerrado pelos policiais, mas o nosso velho herói sente que há algo errado ali, que aquele homem não era de fato o assassino. E assim segue, mesmo aposentado, numa busca obsessiva e diária pelo assassino de garotinhas, a partir de pequenas, mas importantes, pistas. Penn consegue um elenco incrível: além de Nicholson (um ícone da Nova Hollywood), há a presença de Aaron Eckhart, Helen Mirren, Robin Wright, Vanessa Redgrave, Sam Shepard, Patricia Clarkson, Benicio Del Toro e Harry Dean Stanton. Trata-se também de um filme sobre a solidão, mais especialmente sobre a solidão na velhice, um tema de certa forma comum em filmes policiais que abordam detetives de polícia que se aposentam. Assim como UNIDOS PELO SANGUE, A PROMESSA termina com um fechamento para o espectador, mas com um não-fechamento para o protagonista, o que provoca sentimentos no mínimo melancólicos. No caso de A PROMESSA, há algo de fabular na narrativa, o que tem tudo a ver com as pistas e as histórias infantis contadas pelo ex-policial para a garotinha. Como um "Chapeuzinho Vermelho" para adultos.

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