sábado, janeiro 20, 2024

MAL VIVER



Ter contato com o cinema de Portugal requer não apenas muito interesse de nossa parte, mas muito esforço para ir atrás das obras nos diversos caminhos disponíveis – nem sei quão fáceis ou difíceis são de se encontrar certos filmes em serviços de streaming, por exemplo. Além do mais, quem gosta de cinema de várias partes do mundo (e de diversos gêneros) acaba tão sobrecarregado de coisas interessantes para ver que a muito rica e interessante cinematografia lusitana acaba sendo deixada de lado, até porque são poucos os filmes que chegam a nosso circuito. No ano passado, por exemplo, vi o lindo LOBO E CÃO, de Cláudia Varejão, FOGO-FÁTUO, de João Pedro Rodrigues, e A VIDA SÃO DOIS DIAS, de Leonardo Mouramateus (mas este é metade brasileiro); neste ano, vi CIDADE RABAT, de Susana Nobre, e agora este MAL VIVER (2023), de João Canijo. 

Ao chegar em casa, depois da sessão do filme de Canijo, fui procurar pela filmografia do diretor no IMDB. Para minha surpresa, o sujeito dirige filmes desde os anos 1980. E não só: trata-se de um dos mais celebrados cineastas portugueses da atualidade – ou de todos os tempos. MAL VIVER faz par com VIVER MAL, do mesmo ano, a ser lançado em breve no Brasil. Ambos foram exibidos no Festival de Berlim e o primeiro ganhou o Urso de Prata, em júri presidido por Kristen Stewart.

MAL VIVER é um filme que chama a atenção para os pequenos detalhes desde a primeira imagem, com a personagem de Anabela Moreira na piscina de um hotel com seu cachorrinho, em plano geral. A chegada da mãe (Rita Blanco) e da filha (Madalena Almeida) vão mexer com a sua, por assim dizer, paz. O relacionamento entre elas (e as outras mulheres da família) não é fácil e isso vai tornando o filme tão aflitivo quanto GRITOS E SUSSURROS, do Bergman. Até porque o trabalho de Canijo também é muito caprichado do ponto de vista plástico. As cores das roupas, das paredes, a disposição das pessoas e dos objetos no quadro, tudo isso é pensado de forma muito delicada.

Além do mais, os diálogos, que no começo se mostram aparentemente calmos, ainda que cheios de angústia, vão mostrando os sentimentos cada vez mais desesperados das personagens. São três gerações de mulheres que agem de maneira muito distinta. Piedade (Moreira) sofre claramente de depressão. Não consegue ter uma maior aproximação com a filha adolescente, Salomé (Almeida), que por sua vez cobra da mãe uma manifestação maior de afeto, por se sentir rejeitada por ela, especialmente durante todo o tempo que passou vivendo com o pai, falecido há poucos dias. Piedade também sofre com a mãe, Sara (Blanco), uma mulher que tem uma espécie de maldade na alma, especialmente no que se refere a Piedade, e isso pode ter nascido de algum tipo de rancor cujas origens o filme não deixa muito claro.

MAL VIVER é dessas obras que trazem palavras cortantes, inquietações da alma, separações visuais que muitas vezes denotam uma desarmonia entre as personagens, não necessariamente nascida da vontade delas. Destaco um momento em que Salomé fala com a mãe enquanto esta está no banheiro, lavando o rosto. Elas buscam algum tipo de reconciliação, mas Piedade, especialmente, tem muita dificuldade de se aproximar da filha. Especialmente belo e triste o momento em que Piedade se aproxima da família, que está olhando um álbum de fotos, para oferecer um vestido para a menina provar.

Interpretações fabulosas de todas as atrizes (não apenas do trio principal), um trabalho de mixagem de som singular e um roteiro construído coletivamente que traz muita verdade e muita dor. Mal posso esperar para ver VIVER MAL, que mostra o ponto de vista das pessoas que estão hospedadas no hotel. Alguns diálogos desses hóspedes são vistos de maneira muito rápida em MAL VIVER e certamente ver os dois filmes será uma experiência não apenas complementar, mas humana.

Infelizmente vi o filme numa sessão com um público bem pequeno (eu era uma das três pessoas presentes). Mas talvez ter a outra sala do Cinema do Dragão exibindo SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO contribua bastante para esse esvaziamento. Eu mesmo preferi ver primeiro o filme de Haynes para no dia seguinte conferir o Canijo.

+ DOIS FILMES


TIA VIRGÍNIA

Depois do coming of age AS DUAS IRENES (2017), Fabio Meira opta por retratar personagens maduros num clima claustrofóbico de uma velha casa. A trinca de atrizes é genial. Vera Holtz é Virgínia, que é a irmã que não se casou e vive na casa da família, cuidando da mãe acamada de 99 anos de idade. É dia de natal e suas duas irmãs, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso), estão chegando para a tradicional reunião familiar, regada a muitas discussões e muitas mágoas. A família, especialmente quando retratada na maior parte por mulheres, é um verdadeiro tesouro de dramaticidade. O filme lembra tanto as peças de teatro de Tennessee Williams quanto os filmes mais femininos e de clausura de Ingmar Bergman, mas com aquela cara muito brasileira. Em vários momentos, TIA VIRGÍNIA (2023) traz sensações incômodas que o aproximam de um filme de horror, mas o horror aqui seria o da realidade, representado especialmente pelo envelhecimento e pelo desgaste psicológico/mental.

MONSTER (Kaibutsu)

O novo filme de Hirokazu Koreeda, MONSTER (2023), está entre seus melhores, mais ambiciosos e mais angustiantes trabalhos. Especialista nas dores no seio familiar, o mestre japonês desta vez conta uma história com pontos de vista diferentes, à moda RASHOMON. O primeiro segmento, por assim dizer, é o da mãe do garoto, que fica preocupada com possíveis agressões que o filho estaria recebendo na escola e vai até à direção para reclamar. O professor que seria culpado por agredir o aluno ganha o segundo segmento e o tão aguardado ponto de vista das crianças fica para o final. O que mais incomoda, no bom sentido, em MONSTER é o quanto a dificuldade de comunicação (e às vezes insistir na mentira) torna a vida de todos os envolvidos um inferno. As angústias da mãe e do professor têm um quê de kafkianas, com regras impostas dificultando a resolução dos problemas e gerando mais aflições. Já a situação das crianças me fez lembrar um pouco CLOSE, de Lucas Dhont, no que se refere às imposições da sociedade.

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