domingo, julho 03, 2022

O ATALHO (Meek's Cutoff)



Ah, a ironia da vida. As férias que chegam com uma gripe forte (ou virose, quem sabe COVID?). Mas fazer o quê? Sigamos tentando buscar prazer e alegria apesar dos percalços. E ontem, vendo O ATALHO (2010), pude esquecer um pouco os incômodos do momento e me concentrar na beleza de um grande filme. Trata-se de mais um impressionante trabalho de Kelly Reichardt, que aqui opta por um western com tintas de suspense e mistério, com uma trilha sonora (a cargo de Jeff Grace, de A CASA DO DIABO) que começa sutil e vai se acentuando à medida que a situação do grupo de colonos vai ficando mais difícil.

Temos mais uma parceria – a segunda de quatro – da diretora com Michelle Williams, que assume o papel de uma heroína que enfrenta o tradicional machismo da época (e do gênero), representado pelo personagem de Bruce Greenwood, o Meek do título. Ele é um arquétipo de um homem que gosta de se vangloriar de atos heroicos, atos esses nunca vistos, apenas ditos por ele. Contratado para ser o guia de três famílias de pioneiros, já no começo do filme os homens das famílias discutem se devem ou não enforcar aquele homem que os colocou em situação difícil e desesperançada. Afinal, eles estavam no desolado deserto do Oregon, com água faltando e expectativas de sobrevivência baixas. Há até um índio que os segue, e que, supostamente, representaria um perigo adicional, até pelo que já é esperado de westerns.

A fotografia, a cargo de Christopher Blauvelt, o mesmo de FIRST COW – A PRIMEIRA VACA DA AMÉRICA (2019), é linda e a opção mais uma vez pela janela “clássica” (1,33:1) amplia ainda mais os horizontes nas tomadas de planos gerais. Se esse tipo de janela pode funcionar às vezes para dar um ar de claustrofobia, aqui talvez surja um pouco de agorafobia (medo de espaços abertos), embora a beleza das imagens não pareça representar perigo. O perigo está mais no inesperado, naquilo que não pode ser dominado.

Há uma cena em que a personagem de Williams costura o sapato do índio e fala que ele não tem ideia do que eles, os brancos europeus, são capazes, das cidades que eles construíram. Porém, naquele espaço selvagem, é o índio quem está dominando a situação, mesmo na posição de prisioneiro. Quando um dos homens cai desfalecido, por exemplo, o índio canta uma bela canção em sua língua incompreensível para os brancos. Não sabemos se é uma oração para curar o homem enfermo ou um cântico em homenagem a sua partida iminente. Talvez seja uma forma de conectar a alma do homem aos deuses, para que o recebam com respeito.

É curioso que, por mais que eu tenha me lembrado da obra-prima A GRANDE JORNADA, de Raoul Walsh, o que temos aqui é um antiépico, com tudo mais comedido, mais econômico, com mais cara de arthouse. E a opção por um ritmo mais lento da narrativa – o que é natural por parte da diretora – é outro acerto, pois importa menos o plot e mais os personagens, seus dramas e principalmente a atmosfera.

Aliás, atmosfera seria uma das palavras-chave do filme, cujos primeiros dez minutos não possuem diálogos. Ouvimos principalmente o som do vento e das rodas das três carroças. As primeiras palavras que ouvimos são de versículos da Bíblia. Um dos patriarcas das três famílias talvez seja um pastor puritano, que tem pouca ação no filme e costuma aparecer apenas numa posição mais passiva, como se aquele espaço desesperançado não desse tanto espaço para a fé ou para milagres. Enquanto isso, há a figura de Stephen Meek, um homem que se veste como se para um dos espetáculos que encenariam lendas do velho oeste, estilo Buffalo Bill. Suas piadas e suas histórias heroicas se mostram dissonantes com as preocupações e os silêncios dos pioneiros.

A presença de Meek talvez represente uma espécie de desequilíbrio. Como um western do século XXI, O ATALHO já carrega em si uma história não apenas do gênero, mas de toda a história americana até o momento. Então, a presença de Meek, que seria muito bem-vindo em faroestes da Velha Hollywood, representado muito bem por um John Wayne, parece aqui uma pessoa sem noção da realidade – ele não está vendo que errou e todos estão perdidos por causa dele? Se bem que o final em aberto do filme nos deixa em dúvidas sobre o destino dos personagens. A propósito, que final, hein!?

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

OS JOVENS AMANTES (Les Jeunes Amants)

Atriz com mais de 100 filmes no currículo, Fanny Ardant ultrapassa os seus mais de 70 anos de idade no papel de uma mulher que vive uma paixão crepuscular. E não por alguém de sua idade, mas por um homem mais jovem (Melvil Poupaud), que é quem se aproxima dela primeiro, quem toma a iniciativa, quem se apaixona inicialmente, quem tem a coragem de deixar o casamento para ficar com uma mulher mais velha. Para mim OS JOVENS AMANTES (2021) cresce bastante a partir de sua primeira metade, quando as questões envolvendo o seu casamento se tornam mais tensas, assim como a fragilidade da idade e da doença da protagonista feminina também passam a desempenhar um papel decisivo no pensar a impulsividade do relacionamento dos amantes. Há algumas cenas de dar um nó na garganta, principalmente as que lidam com silêncios (nisso, a participação de Cécile de France é fundamental). A diretora Carine Tardieu opta por um filme menos carregado nas tintas do que eu gostaria, mas que mesmo assim me agradou bastante.

PLEASURE

Eis um filme que me causou sentimentos mistos. Como uma obra que pretende fazer uma espécie de denúncia da indústria pornográfica americana, PLEASURE (2021), de Ninja Thyberg, tem a sua importância. Assim como também apresenta uma espécie de descida aos infernos da personagem de Sofia Kappel, a garota sueca que resolve fazer carreira nessa indústria e que percebe que para ser membro da "elite", ela precisaria se sujeitar a cenas cada vez mais hardcore. Nem sei se é assim mesmo que funciona para todas as garotas, mas é assim que funciona a pornografia como bem de consumo: uma vez que cenas mais fortes alcançam um interesse maior, o inferno é o limite. De todo modo, achei interessante ver a participação de rostos conhecidos do pornô, como que dando um apoio para a diretora, e também a participação rápida (e presente nos agradecimentos) da porn star Abella Danger. No mais, PLEASURE poderia ser encarado como um filme de crime, de máfia, no sentido de que vemos alguém que começa de maneira ingênua até se deixar dominar pela sujeira do ambiente. Tenho muita curiosidade de saber o que os grandes nomes da indústria acharam da visibilidade deste filme nos festivais. Algo a se pesquisar.

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