quarta-feira, fevereiro 23, 2022

DIÁRIOS DE OTSOGA



Alguns filmes, talvez por causa de sua singularidade, demoram um pouco mais a se instalar em nossa memória afetiva. É o caso de DIÁRIOS DE OTSOGA (2021), dirigido por Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro, sua companheira. Gomes, para quem não lembra, é o diretor de alguns dos filmes portugueses mais celebrados do novo milênio, como AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO (2008), TABU (2012) e a trilogia AS MIL E UMA NOITES (2015). São trabalhos que brincam com a experimentação e trazem um estranhamento muito bem-vindo.

Muito desse estranhamento que seus filmes provocam, aliás, tem a ver com nossa (minha) pouca familiaridade com o senso de humor português, que se distancia bastante do nosso. Além do mais, ficamos muito acostumados com o humor americano por conta da dominação cultural no campo das artes e do entretenimento. Além disso, como praticamente todos os filmes portugueses que chegam a nosso circuito são de linha mais arthouse, por assim dizer, consequentemente temos poucos exemplares por ano em cartaz para ficarmos minimamente íntimos dessa cinematografia.

A chance de ver DIÁRIOS DE OTSOGA na Mostra Retroexpectativa do Cinema do Dragão foi bem valiosa. Trata-se de um filme bem menos ambicioso do ponto de vista da produção, pela própria característica de ser literalmente caseiro. A ideia do filme surgiu da corroteirista Mariana Ricardo, que pensou em juntar três jovens isolados em uma casa sem nada para fazer.

Nascido durante a pandemia, DIÁRIOS DE OTSOGA explicita esse momento quando passa a brincar com a metalinguagem. Em determinado momento, um dos atores deixa o isolamento no sítio e isso acaba por ameaçar o grupo a uma possível contaminação de Covid-19. A atriz que faria uma cena de beijo com ele, por exemplo, diz se recusar a fazer por causa da irresponsabilidade do rapaz. Porém, fica a pergunta: essa sequência seria encenada ou uma filmagem de uma situação real? Estamos diante de um falso documentário ou de um documentário que contaminou uma ficção? De uma forma ou de outra, a simples inclusão dessa cena leva o filme por um caminho muito divertido e empolgante.

Até então, o que o filme nos havia proposto em seu projeto era uma história que estaria supostamente sendo apresentada de trás pra frente. "Otsoga" não é nenhuma palavra japonesa, mas "agosto" ao contrário. A partir dessa quebra na estrutura, o filme ganha em densidade e em interesse. Sem falar que o senso de humor refinado vai ficando mais explícito. Em determinado momento, por exemplo, vemos as filmagens de uma cena dos jovens em cima de um trator, sorrindo, como se aquela cena fizesse algum sentido. Achei isso sensacional. Ou seja, eis um filme que eu terei um prazer imenso de rever quando entrar em circuito comercial.

+ DOIS FILMES

ENTRE NÓS, UM SEGREDO

Talvez o aspecto pouco poroso de ENTRE NÓS, UM SEGREDO (2020), de Toumany Kouyaté e Beatriz Seigner, tenha deixado a minha curiosidade antropológica pouco acesa. É quase sempre curioso acompanhar hábitos, costumes e culturas de diferentes povos, mas no caso dos mistérios da tradição oral dos povos de Burquina Faso, o filme não ajuda muito. Ou então eu precisaria ter construído um repertório que alcançasse o que as pessoas falam, inclusive lendas e expressões locais que talvez careçam de didatismo (para mim, pelo menos). Como gosto bastante de LOS SILENCIOS (2018), o trabalho mais famoso de Beatriz Seigner, que é muito rico nos aspectos visuais, achei excessivamente simples essa estrutura mais convencional deste seu novo trabalho.

ESPERO QUE ESTA TE ENCONTRE E QUE ESTEJAS BEM

Gosto mais do resgate histórico que ESPERO QUE ESTA TE ENCONTRE E QUE ESTEJAS BEM (2020) faz do que do tom de investigação para descobrir a dona das 110 cartas de amor encontradas em uma feira de antiguidades. Nesse resgate, vemos imagens valiosas de cidades do Brasil, as cidades relacionadas à possível passagem da remetente das cartas ou de seu destinatário. No caso, as cidades de Campo Grande e Rio de Janeiro na década de 1950. Fiquei muito curioso para ouvir ou ler o conteúdo integral de pelo menos uma das cartas, mas talvez a diretora Natara Ney tenha achado que estaria invadindo a privacidade da dona das cartas e do destinatário. E talvez ela tenha razão.

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