terça-feira, setembro 15, 2020

NARCISO EM FÉRIAS

"Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido."

Essa é uma das falas de Caetano Veloso ao descrever o seu primeiro momento no cárcere, quando foi colocado, sem a menor explicação, em uma solitária escura. Só de pensar nisso, de ter essa sensação de deslocamento da realidade, só de pensar nisso já é aterrador.

NARCISO EM FÉRIAS (2020) foi o retorno da dupla de cineastas Ricardo Calil e Renato Terra ao mundo da música popular brasileira depois do ótimo UMA NOITE EM 67 (2010). Aqui a opção de entrecortar o depoimento de Caetano Veloso com imagens de arquivo e depoimentos de outros entrevistados foi totalmente deixada de lado quando se percebeu que o filme ficaria muito mais poderoso apenas com uma montagem das cenas da entrevista feita ao cantor e compositor baiano.

Há quem diga que não é fazer cinema apresentar única e exclusivamente a entrevista de uma pessoa à frente de uma câmera, mas isso é bobagem. E parece que esquecem da grandeza de Eduardo Coutinho, mestre nesse uso. Em NARCISO EM FÉRIAS, os diretores optaram por esconder sempre que possível suas vozes. E há uns três enquadramentos básicos: o close-up, um plano que mostra o corpo inteiro do cantor e um plano mais distante, que acentua a parede ao fundo.

Tudo que ele conta já está em um capítulo do seu livro Verdade Tropical, um capítulo justamente intitulado "Narciso em Férias", e que se tornará um livro à parte, já em pré-venda. O termo foi tomado de empréstimo de um livro do romancista americano F. Scott Fitzgerald, e que também se refere ao fato de que, durante todo o período em que esteve preso, Caetano não se olhou no espelho.

Histórias narradas oralmente são a base da construção de nossa civilização e é bom ver que esse tipo de recurso ainda segue sendo incrivelmente poderoso, especialmente quando encontramos alguém que consegue nos colocar dentro da ação. Há um momento, em especial, da fala de Caetano, que me fez sentir em seu lugar, que é quando ele comenta sobre seu retorno para Salvador, para a casa de seus pais. O detalhismo da situação tem uma carga dramática assombrosa.

NARCISO EM FÉRIAS é cheio de momentos de bastante emoção, especialmente em seu terço final. O próprio Caetano Veloso parece ter se surpreendido com o próprio choro e pede para que os diretores parem a filmagem em determinado momento. E não é um momento em que ele fala de seu sofrimento, mas de quando ele comenta do sentimento de gratidão que ele tem por um sargento que ficou com pena de sua situação, de ele ser o único que não podia receber a visita da esposa, e que o ajudou. E ele lamenta não ter procurado saber o nome desse homem. Sem dúvida um dos momentos mais bonitos e tocantes do documentário e que, muito provavelmente, perderia um bocado da força sem a voz e sem o olhar do cantor .

Outro acerto de Calil e Terra foi o fato de trazerem canções para o documentário. Já começa com uma canção de Orlando Silva, "Súplica", canção cuja importância veremos ao longo do filme. Em 1968 e 1969, tocava bastante nas rádios "Hey Jude", dos Beatles, e que trazia um grande sentimento de esperança para Caetano sempre que a ouvia. Outras duas canções do próprio Caetano, compostas após a experiência do cárcere, também são citadas com emoção: "Irene" e "Terra".

Por trazer esse recorte da vida de um entre vários artistas que foram presos e exilados em um momento em que a extrema direita se apresenta como uma ameaça cada vez maior para o Brasil e para o mundo, e ainda enfatizar a importância e a beleza do trabalho de um de nossos mais brilhantes artistas, só por isso NARCISO EM FÉRIAS já se faz essencial.

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