quinta-feira, agosto 20, 2020

ALMAS PERVERSAS (Scarlet Street)

Acho uma delícia fazer comparações entre obras, seja da obra literária para a obra cinematográfica, seja entre obras cinematográficas que partem da mesma origem. No caso, o romance La Chienne, do francês Georges de La Fouchardière, que inspirou tanto o clássico naturalista A CADELA (1931), de Jean Renoir, quanto sua adaptação em clima de film noir ALMAS PERVERSAS (1945), de Fritz Lang. Curiosamente, Lang era um admirador de Renoir, mas não havia reciprocidade da parte do cineasta francês, de acordo com análise encontrada como extra no box Filme Noir Vol. 7, da Versátil.

Pois bem. Embora eu ache uma delícia comparar filmes adaptados da mesma fonte, e ainda por cima feitas por mestres de estilos tão distintos (fiz algo parecido vendo várias versões de Madame Bovary para o cinema, anos atrás), não deixa de ser um pouco complicado ver o filme de Lang depois de se impactar com o maravilhoso trabalho de Jean Renoir. São duas propostas bem distintas. Sai o naturalismo de Renoir, entra a estilização de Lang; sai o tom leve, quase amoral e por vezes engraçado; entra o tom mais moralista e trágico.

Aliás, a questão moral em ALMAS PERVERSAS não foi nem por causa da censura (que, sim, pegou bastante no pé do filme), mas por convicções pessoais de Lang, que acreditava que o homem que matava alguém teria que pagar pelo pecado; se não pela lei dos homens, pela lei de Deus ou da própria consciência atormentada. Quanto à censura de Hollywood, já foi complicado transformar a personagem de uma prostituta em uma mulher interesseira e preguiçosa, por mais que possamos ver na Kitty de Joan Bennett algo parecido com uma garota de programa e no Johnny de Dan Duryea um cafetão. Se não uma garota de programa, algo que nos dias de hoje chamam de sugar baby, ainda que o personagem de Edward G. Robinson, Chris, seja excessivamente ingênuo para entender sua participação neste triângulo "amoroso".

O que eu vejo como algo que depõe um pouco contra o filme de Lang, em comparação com o de Renoir, é o fato de nos importarmos menos com os personagens. Em A CADELA, eu fiquei o tempo todo incomodado com cada ação dos personagens, com as variadas ações de abusos e humilhações, sejam elas percebidas ou não. Em ALMAS PERVERSAS é até fácil se deixar levar pelo charme e beleza de Kitty e não se importar muito com as implicações da esposa de Chris.

Lang constrói uma autêntica femme fatale pobre (mas com algum glamour), que não tem ideia de que está aplicando um golpe em um sujeito também pobre, que chega a roubar dinheiro da empresa para satisfazer os prazeres da amante. E pior: uma amante a quem ele nem mesmo dá sequer um beijo na boca. Algo que me deixa impressionado. (Fiquei pensando em uma nova adaptação do romance de La Fouchardière, feita aqui no Brasil nos saudosos anos 1970 e 80, principalmente na Boca.)

Mas isso tinha a ver com o Código Hays, a censura pesada aplicada nos filmes. Os censores implicaram até com a cena de Robinson se abaixando para pintar as unhas dos pés de Bennett, que usava apenas um roupão. É de fato uma cena sensual, e talvez nos anos 1940 fosse algo um tanto escandaloso, mas hoje em dia não tem todo esse peso. De todo modo, a construção por Lang de sua personagem feminina foi brilhante. Bennett mistura a sensualidade e beleza com um tipo de vulgaridade e preguiça que ajudam a enriquecer Kitty, a torná-la atraente e apaixonante, inclusive aos olhos do espectador, consciente de seu caráter.

O filme de Lang também parece mais consciente e organizado na estrutura narrativa - o roteirista Dudley Nichols havia trabalhado em vários filmes de John Ford e também em O HOMEM QUE QUIS MATAR HITLER (1941), de Lang. Há situações que são muito mais bem construídas, como o "autorretrato", na verdade a última pintura de um sujeito apaixonado por uma mulher, muito mais convincente e poderoso do que um autorretrato do personagem do filme de Renoir. Essa consciência também está no cuidado estético, na beleza da fotografia de Milton R. Krasner, o mesmo do filme anterior de Lang, UM RETRATO DE MULHER (1944), que pode ser considerada uma obra-irmã em muitos aspectos.

E há detalhes interessantes em ALMAS PERVERSAS, como a questão de Chris não ter um senso de perspectiva em seus quadros. Assim como também não tem na vida real, ao não perceber que está sendo manipulado, por exemplo; ou ao se deixar levar pela loucura de cometer furtos no local de trabalho, embora isso e também o assassinato de Kitty sejam manifestações de natureza passional e não relativas a uma suposta falta de honestidade do protagonista. Além do mais, seu destino final, mentalmente perturbado, não é por causa do remorso pela morte de Kitty e pela morte de Johnny, mas por um ciúme que persiste, mesmo em um plano espiritual/psicológico.

+ DOIS FILMES (CURTOS)

DOCUMENTÁRIO

Rogério Sganzerla é um dos cineastas brasileiros de quem mais eu tenho lacunas, tanto pela quantidade de títulos, quanto pelo meu afastamento por sentir um pré-requisito em cinema de Welles, muitas vezes. Aqui é seu primeiro filme. Delicioso. Mas seria melhor ainda se tivesse legendas. Infelizmente não houve uma restauração que trouxesse de volta um som minimamente bom, tão importante para a compreensão dos diálogos entre os dois rapazes que caminham pelas ruas de São Paulo à procura de um filme para ver. Nenhum aprova o que o outro quer ver e assim vão andando e conversando. Fala-se em Fuller, Hawks, Hitchcock, HELP!, dos Beatles, de O DESAFIO (filme do Saraceni), quadrinhos do Batman, dificuldades financeiras e respira-se muito o espírito da nouvelle vague francesa, especialmente Godard, tanto pelos cortes, quanto pela fotografia. Como diria o Carlão, é o filme que todos os cinéfilos gostariam de fazer. Aliás, não sei por que os cinéfilos-cineastas não fazem mais filmes sobre a cinefilia, assim de maneira tão explícita quanto este. Ano: 1966.

VEREDA TROPICAL

O melhor filme sobre sexo hortifrutigranjeiro de todos os tempos. Engraçado que na época que vi pela primeira vez, como segmento do longa CONTOS ERÓTICOS, não vi muita graça, talvez por querer que fosse um filme erótico no sentido mais comum da palavra. Na verdade, é uma comédia engraçadíssima sobre um sujeito que tem por hábito transar com melancias (dá banho nelas, passa talquinho e tudo). Mas o saboroso mesmo do filme é a conversa dos personagens de Cláudio Cavalcanti e Cristina Aché sobre as taras do amigo, sobre sexo e solidão etc. E as coisas se tornam mais saborosas ainda quando os dois vão à feira procurar uma fruta fálica pra ela. A versão que está circulando por aí, remasterizada, está linda, cristalina, de cores vivas. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Ano: 1980.

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