sábado, junho 22, 2019

DESLEMBRO

É possível notar, mesmo sem saber nada de DESLEMBRO (2018), que se trata de um filme muito pessoal de sua diretora, Flavia Castro. Ao sabermos que ela conta novamente a história de seu pai desaparecido durante a ditadura, história contada no documentário DIÁRIO DE UMA BUSCA (2010), percebemos que ela é movida por uma necessidade de recontar essa história. O que impressiona é o quanto ela consegue ser tão bem-sucedida estreando no registro de ficção. A sensibilidade com que ela conta a história de uma jovem adolescente que é trazida da França para o Brasil na virada dos anos 70 para os 80, quando começou o processo de anistia política, é feita com uma vivacidade impressionante.

Nos primeiros minutos de DESLEMBRO vemos uma família dialogando em francês. A menina Joana (Jeanne Boudier, ótima) não quer sair da França e ir para um país em que se torturam e matam pessoas. Mas a mãe (Sara Antunes) prefere que a filha e seus outros dois filhos (na verdade, um deles é filho do seu companheiro com outra mulher) venham com ela para o Rio de Janeiro. O impacto da chegada ao novo país começa a trazer memórias fortes de um momento traumático na vida da pequena Joana. Lembranças escondidas em um canto seguro de sua memória.

Assim, essas lembranças - ou possíveis lembranças, já que não se sabe ao certo o que é verdade ou o que é construído como uma espécia de sonho - vão surgindo em flashbacks bem fragmentados. Às vezes, a diretora usa um recurso plasticamente muito bonito de nos mostrar uma imagem tão aproximada a ponto de não sabermos o que estamos vendo, como em um quadro de pintura abstrata com textura em alto relevo.

A inclusão de canções é também um acerto do filme. Lou Reed, Caetano Veloso, The Doors, Nelson Gonçalves (em uma canção de Noel Rosa que também aparece no maravilhoso ARÁBIA, de João Dumas e Affonso Uchôa, ainda que com um intérprete diferente), citações a David Bowie e Pink Floyd; além disso, o amor pelos livros por parte de Joana e a recitação de um poema de Fernando Pessoa, tudo isso faz com que o gosto pela vida, embora dolorosa pela falta trágica do pai, esteja o tempo todo presente.

E há também o amor no seio familiar. A família como mostrada no filme, tão fragmentada quanto as memórias da menina, é de encher o coração (o que são aquelas cenas no carro, meu Deus?). As questões de afetividade envolvendo a mãe, o padrasto chileno e os dois irmãos pequenos somam-se à avó da menina que mora no Rio, vivida com brilho por Eliane Giardini, A cena mais tocante do filme, aliás, talvez seja uma muito sutil, em que a avó e a menina estão sozinhas e a avó olha com lágrimas nos olhos para o rosto daquela garota que lembra o seu filho assassinado pela ditadura. Um exemplo de sensibilidade ímpar por parte da diretora e de seu belo elenco.

E já que estamos falando de amor, eis que o amor romântico também surge em DESLEMBRO de maneira muito bonita. Há, inclusive, uma cena de sexo muito discreta e muito elegante entre ela e o seu interesse amoroso, um rapaz que também é filho de exilados. Inclusive, esse aspecto romântico e a quantidade generosa de canções pop faz com que o filme dialogue com o ótimo CALIFÓRNIA, de Marina Person.

No que se refere às questões políticas, há diálogo com o momento atual, embora o filme tenha sido finalizado antes das últimas eleições presidenciais. O que não deixa de torná-lo ainda mais forte e mais urgente nos dias de hoje. Aliás, o que não parece urgente nos dias de hoje, quando o assunto é direitos humanos?

Assim, no mesmo fim de semana, temos dois filmes de duas cineastas mulheres que estão entre as melhores realizações brasileiras lançadas em circuito. O outro é DEMOCRACIA EM VERTIGEM, de Petra Costa, lançado diretamente na Netflix, e que por isso já tem alcançado um público bem maior. DESLEMBRO, por sua vez, restrito ao circuito alternativo, ganhará um público pequeno. Por isso, é importante que o boca a boca seja positivo e que atraia o público, a fim de que mais pessoas tenham a honra de ver esta pequena obra-prima no cinema, em toda sua glória.

+ TRÊS FILMES

LOS SILENCIOS

Muito bonito este segundo filme de Beatriz Seigner. Gosto especialmente da primeira metade do filme, com momentos em que os sons da natureza desempenham um papel muito forte na ambientação daquele lugar: uma ilha que fica na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Na história, Amparo é uma mulher que vai com os filhos para a tal ilha, fugindo de possíveis ataques dos inimigos da guerrilha de que o marido fazia parte. Mais um filme que vale ver também para nos aproximarmos dos nossos vizinhos sul-americanos. Ano: 2018.

MORMAÇO

Um quê de AQUARIUS com elementos cronenberguianos (também lembrei de Um Ramo, de Juliana Rojas e Marco Dutra). Além de um importante trabalho sobre a destruição imposta pelo Estado (o Rio de Janeiro nas vésperas das Olimpíadas de 2016), é também um filme sobre uma doença misteriosa que aflige a protagonista. Os elementos realistas se harmonizam bem com uma linha mais fantástica. Ótima a Marina Provenzzano (tinha visto a moça em O GRANDE CIRCO MÍSTICO, mas não lembrava). Direção: Marina Meliande. Ano: 2018.

A SOMBRA DO PAI

Um filme que me trouxe sentimentos mistos. Ora achei bonito toda a homenagem aos filmes de terror que a diretora faz, ora curti a cara de filme de horror B de locadora dos anos 80, ora fiquei incomodado com o drama inquietante do pai e da filha, que vivem à mercê de situações extremamente desafiadoras, cada um lidando à sua maneira com o que lhes perturba. A menina tem um gosto por feitiços e coisas do tipo; o pai se fecha demais em sua vida desgraçada. Muito bom ver a evolução da diretora nesses longas. Direção: Gabriela Amaral Almeida. Ano: 2018.

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