sábado, junho 03, 2023

O CORINGA DO CINEMA



É interessante como alguns filmes menores acabam falando muito mais forte a nosso espírito do que certos trabalhos mais sofisticados e de produção mais luxuosa. É o caso de O CORINGA DO CINEMA (2019), de Sérgio Kieling. Interessou-me tanto como a apresentação da carreira profissional de um técnico que esteve ligado a um número alto de produções importantes e históricas da cinematografia brasileira, em especial a paulistana, mas também me interessou a figura humana, o homem comum, já que o personagem-título é uma pessoa que não é exatamente uma celebridade, ou seja, não é um cineasta ou um ator profissional, costumeiramente objetos mais presentes em documentários e cinebiografias.

O filme conta um pouco da história de vida de Virgílio Roveda, mais conhecido como Gaúcho, um homem que atuou em diferentes funções no cinema, seja na produção, fotografia, distribuição e até mesmo na condução de uma sala de cinema de rua. Roveda já havia rendido um belo livro de Matheus Trunk, que nos créditos aparece como um dos roteiristas (o outro é o diretor Sérgio Kieling), e, como também estou me devendo ler o livro (já comecei, aliás), a leitura será complementada em minha mente por lembranças deste documentário: imagens da voz às vezes embargada do Gaúcho, que é como ele é chamado; imagens do brilho no olhar do homem quando relembra de momentos importantes de sua vida.

O CORINGA DO CINEMA opta por não se limitar apenas à carreira profissional do Gaúcho, mas também entramos em contato com sua intimidade, o fazer a barba, o tratamento carinhoso com a esposa, o depoimento da filha que sentiu sua ausência na infância e também é uma viagem no tempo para ele conversar com pessoas que fizeram parte de sua história, como atores, diretores e outros técnicos, além de visitar lugares que hoje não são mais nem o espaço de encontro da Boca, nem o cinema que ele mantinha, agora, uma academia de musculação.

É muito bonito poder ver alguns trechos de filmes importantes em que ele trabalhou, como ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER (1967), de José Mojica Marins (como maquinista), O JECA MACUMBEIRO (1974), de Amácio Mazzaropi e Pio Zamunner (como assistente de câmera), AS PIPAS (1981), de José Vedovato (como produtor), AOPÇÃO OU AS ROSAS DA ESTRADA (1981), de Ozuado R. Candeias (como produtor), O MENINO DA PORTEIRA (1976), de Jeremias Moreira Filho (como diretor de produção), 24 HORAS DE SEXO EXPLÍCITO (1985), de José Mojica Marins (como diretor de fotografia), entre outros. Ou seja, daria para contar muito mais coisas do que nesses quase 80 minutos de duração. E há coisas que acabam sendo muito difíceis de contar, como a experiência durante o regime militar.

Entre as pessoas que conversam com o Gaúcho estão: David Cardoso, Toni Cardi, Débora Muniz, o diretor Marcelo Colaiacovo, com que o Gaúcho trabalhou já nos anos 2000, e vários amigos que trabalharam como técnicos em produções que Gaúcho esteve presente. De certa forma, O CORINGA DO CINEMA faz um passeio pelas produções paulistanas da Boca, desde os anos 1960, com os filmes do Mojica, passando pelo auge nos anos 1970, até chegar ao cinema de sexo explícito em meados dos anos 1980, que é algo que geralmente é falado em tom de tristeza por quase todos os presentes, por representar o fim da mais bem-sucedida indústria cinematográfica brasileira.

Além do mais, O CORINGA DO CINEMA pode ser visto, de certa forma, como uma continuação do ótimo trabalho de Matheus Trunk na saudosa Revista Zingu!, que valorizava todos os profissionais do cinema em suas edições mensais.

+ DOIS FILMES

IL BUCO

Ver IL BUCO (2021), de Michelangelo Frammartino, no cinema é um privilégio e tanto. Especialmente nos momentos em que o grupo espeleológico adentra a caverna de profundidade assustadora do título. Trata-se de um filme muito contemplativo, que se beneficia dos sons e das imagens da natureza para educar nosso olhar com seu andamento lento e pouco interessado no que tradicionalmente chamamos de trama. Em paralelo com os trabalhos na caverna situada no sudoeste da Itália, vemos também o personagem que mora na região, a primeira figura humana que aparece em close-up, um homem cheio de marcas do tempo. O olhar de Frammartino (AS QUATRO VOLTAS, 2010) emociona. Destaco um momento em que um personagem é tirado de dentro da casa e a câmera está dentro dessa referida casa, agora tendo apenas, como luz, o que as frestas das portas permitem entrar. É um tipo de filme que, assim como a bruma que se aproxima ao final, vai nos ganhando tanto cada vez mais, seja pela calma e espiritualidade, seja por um sentimento muito próximo do medo.

CORDELINA

Dentre os filmes exibidos no Festival de Aruanda, CORDELINA (2022), de Jaime Guimarães, é o que mais explicita seu amor pela figura do artista itinerante. O documentário acompanha Odília Nunes, uma mulher que peregrina por estradas do interior de Pernambuco e da Paraíba, levando o que chama de tesouro numa caixa. Não fiquei tão encantado pelo filme quanto muitos ficaram, pois a personagem e sua criação me pareceram mais atraentes para crianças, mas sei que isso diz mais de mim do que do filme, que tem, sim, uma personagem muito interessante e imagens de encanto de pessoas do interior em seu primeiro contato com a boneca gigante de Odília, a Cordelina. O filme saiu do festival com dois prêmios importantes: melhor longa nordestino e melhor atriz.

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