domingo, fevereiro 12, 2023

TRÊS MÉDIAS E DEZ CURTAS



A BBS E A NOVA HOLLYWOOD (BBStory - An American Film Renaissance)

Documentário em média-metragem (47 minutos) presente no box O Cinema da Nova Hollywood 3. É muito bom poder ouvir das pessoas envolvidas sobre o momento e as circunstâncias que levaram à criação de alguns dos filmes mais importantes da Nova Hollywood, a partir do sucesso de SEM DESTINO (1967) e da recepção menos calorosa de OS MONKEES SOLTOS (1968). Em A BBS E A NOVA HOLLYWOOD (2010), de Greg Carson, percebi o quanto Jack Nicholson foi importante não apenas como ator, mas como criador, diretor, roteirista e até montador nos filmes da companhia BBS Productions, fundada por Bob Rafelson, Bert Schneider e Stephen Blauner. O documentário destaca principalmente CADA UM VIVE COMO QUER (1970) e A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA (1971), mas há destaque também para O DIA DOS LOUCOS (1972) e para os menos lembrados O AMANHÃ CHEGA CEDO DEMAIS (1971) e REFÚGIO SEGURO (1972). Entre os entrevistados, gosto muito dos depoimentos do próprio Nicholson, de Ellen Burstyn e de Bob Rafelson, com sua história divertida sobre Nicholson não querer chorar numa cena-chave de CADA UM VIVE COMO QUER.

LE FRANC

O que mais me deixou impressionado com LE FRANC (1994), de Djibril Diop Mambéty, foi minha ignorância em perceber o quanto havia países ainda vivendo num grau tão grande de miséria em plenos anos 1990. O diretor do clássico TOUKI BOUKI – A VIAGEM DA HIENA conta neste seu média-metragem a história de pessoas que moram numa espécie de grande favela próxima a um lixão, que por sua vez é também próximo do mar. O personagem principal é um homem que deve o aluguel da casa e aposta um dinheiro que encontrou num bilhete de loteria. O filme é tão envolvente que me peguei com raiva do personagem, pela falta de inteligência em lidar com as situações, mesmo quando a sorte parece finalmente bater à sua porta. Mas o mais bonito (e triste) é que seu sonho é também muito modesto: fazer sucesso tocando o instrumento musical daquele lugar do Senegal que é muito simples, uma espécie de caixa que funciona tanto como instrumento que simula cordas quanto de percussão. O final me deixou na dúvida se o simbolismo foi crítico ou não às intenções do protagonista.

A PEQUENA VENDEDORA DE SOL (La Petite Vendeuse de Soleil)

Lindo filme sobre garota com deficiência física que resolve trabalhar como vendedora do Soleil, o jornal do governo senegalês. A PEQUENA VENDEDORA DE SOL (1999, foto acima) funciona como um contraponto interessante de LE FRANC. Talvez seja uma obra mais otimista, embora se veja também a maldade humana muito presente, principalmente nos garotos que insistem em maltratar os personagens deficientes, casos da garotinha protagonista e de um jovem cadeirante que ganha uns trocados tocando no seu rádio as FMs que lhe pedem para ele tocar. É interessante como esses filmes lidam com aquilo que é mais urgente nessa sociedade, o dinheiro, para que se possa sobreviver com um pouco mais de dignidade, e por isso mesmo parecem tão tocantes. Há momentos de dor e de ternura neste último trabalho na direção de Djibril Diop Mambéty. Memorável a cena da garotinha na delegacia.

AFRIQUE SUR SEINE

Pode-se considerar este filme como um exemplar da pré-história do cinema africano, já que a produção é totalmente francesa e se passa em Paris, mostrando imigrantes africanos morando na capital francesa. O texto em AFRIQUE SUR SEINE (1955), de Mamadou Sarr e Paulin Vieyra, exalta a riqueza e a beleza de Paris, mas é bem possível perceber que há ali um pouco de ironia por parte do narrador, levando em consideração que as riquezas desse país ainda vinham da exploração de suas colônias. Ainda assim, achei o filme pouco rico do ponto de vista cinematográfico, funcionando mais como um registro histórico importante de cineastas que posteriormente fariam filmes (como diretores ou como atores) em seus países de origem.

EU TE AMO É NO SOL

Retrato aparentemente simples de uma relação entre duas jovens mulheres, que traz mais coisas enriquecedoras nas entrelinhas. Na história de EU TE AMO É NO SOL (2022), de Yasmin Guimarães, jovem reencontra sua namorada, que agora mora num lugar distante e frio (o filme nunca diz que lugar é esse), e passam a morar juntas. É interessante notar as escolhas da diretora nesse pequeno espaço de tempo de 15 minutos de metragem. Por vezes, a diretora prefere mostrar uma ou outra das moças sozinha, em uma situação mais de solidão, do que as duas juntas, embora haja também momentos delas juntas em celebração e intimidade. Talvez a força do filme esteja justamente nesses pequenos detalhes que são de escolhas inusitadas, como mostrar uma delas olhando as flores em uma tomada rápida, a cena do copo quebrado, ou a cena final da janela do apartamento, cujo significado ainda permanece um mistério para mim.

FANTASMA NEON

Musical que nos apresenta a um rapaz que faz entregas por aplicativo em sua bicicleta e sonha em ter uma moto. Há belas coreografias, canções diversificadas, um trabalho de direção de arte caprichado (destacando sempre a cor vermelha) e momentos revoltantes, com frequência. A melancolia preenche o filme do início ao fim, como se não houvesse uma solução para essa vida, pelo menos num futuro próximo. FANTASMA NEON (2021), de Leonardo Martinelli, estreou mundialmente no Festival de Locarno, tendo ganhado o Leopardo de Ouro de melhor curta-metragem. Aliás, isso é outra coisa revoltante: mesmo sendo um filme premiado, dificilmente este trabalho será visto por um grande público. Algo precisa ser feito para que os curtas ganhem maior visibilidade.

INFANTARIA

Quando vemos as primeiras imagens de INFANTARIA (2022), de Laís Santos Araújo, já percebemos que se trata de um filme diferente. As cores se destacam, em especial cores que remetem à feminilidade infantil. Temos basicamente quatro personagens. Uma mãe (1) que está preparando o aniversário da filha (2) de dez anos de idade e que também lida com o filho (3) um pouco mais velho e com o surgimento de uma jovem de 16 anos (4) que aparece para resolver um problema que lhe aflige. O filme garante sua força no modo como trata a situação da adolescente e o distanciamento que há entre os universos masculino e feminino. Mais do que um filme que trata do amadurecimento de jovens meninas, "Infantaria" lida com o patrulhamento masculino em relação ao corpo feminino. E faz isso de maneira muito sensível e inteligente.

XAR - SUENO DE OBSIDIANA

A sinopse diz o seguinte: "Ao despertar de um sonho de obsidiana, o jovem Maya Edgar Calel realiza um ritual artístico na Bienal de São Paulo. Entre aspirações e memórias, seu percurso espiritual vai conduzi-lo para ser incorporado ao seu animal de poder". Costumo às vezes buscar as sinopses de modo a compreender um pouco melhor a obra, quando ela me foge um pouco à compreensão ou necessita de uma revisão. O que ficou na primeira impressão de XAR - SUENO DE OBSIDIANA (2022), de Edgar Calel e Fernando Pereira dos Santos, curta falado em outra língua (maia?) é que há um embate entre o espírito da natureza próprio do indígena, único personagem presente, e aquela arquitetura enorme e totalmente artificial onde ele está ao mesmo tempo abrigado (da chuva) e aprisionado. Suas palavras, em voice-over, são tristes e poéticas e as imagens são bem pensadas pelos dois diretores.



MUTIRÃO: O FILME

Gosto quando certos projetos originais como este são ao mesmo tempo simples e fáceis de serem realizados. Claro que a menina que narra as imagens tem uma graça toda própria, mas o filme em si é sobre a percepção dela das imagens de um mutirão nos anos 1980 que resultará na construção da casa onde ela mora. E uma coisa que ela percebe, e que ela percebe que os adultos não percebem, é a presença de crianças nas fotos. Então, o filme não seria o mesmo, obviamente, se fosse narrado por um adulto. Até porque as fotos não têm nada de muito especial, a não ser para as pessoas que ali moram ou que conhecem quem está retratado. MUTIRÃO: O FILME (2022), de Lincoln Péricles, é um filme que chama à reflexão para o nosso momento presente como resultado de ações do passado; de como certas ações precisam ser feitas sem permissão do estado; e de como pensar nas crianças é extremamente importante.

MEIO ANO-LUZ


Gosto de estar acompanhando a carreira de Leonardo Mouramateus desde MAURO EM CAIENA (2012) e perceber o quanto seus filmes têm sensibilidades tão singulares quanto distintas, à medida que ele vai criando e pensando novas situações. Apesar de já ter dois longas em sua carreira, ANTONIO UM DOIS TRÊS (2017) e o novo A VIDA SÃO DOIS DIAS (2022), o curta-metragem parece ser o espaço mais adequado para suas experimentações, por causa da maior liberdade que lhe é característica. Na trama de MEIO ANO-LUZ (2021), o próprio Mouramateus encontra uma carteira no chão e, conversando com o amigo Mauro, procura decifrar a identidade da dona da tal carteira, ao mesmo tempo que refletem sobre as origens dos nomes das ruas onde estão e possibilidades que parecem saídas de filmes de ficção científica. O barato do filme é que passa uma paz muito boa ver as imagens das pessoas andando pela rua, enquanto ouvimos a conversa dos dois.

SOLMATALUA

Um filme que dói ver, por mais que algumas imagens sejam cifradas para quem não conhece suas origens, afinal, não se trata de um vídeo didático, mas uma obra que prima pela liberdade. Liberdade, uma palavra importante. A liberdade que é tirada de um dos narradores, outrora rei na África, e agora escravizado numa terra estrangeira e hostil. Do mesmo diretor, Rodrigo Ribeiro-Andrade, do celebrado A MORTE BRANCA DO FEITICEIRO NEGRO (2020), SOLMATALUA (2022) também trabalha imagens que encantam e atordoam. Ora imagens do passado, ora imagens criadas para enfatizar uma beleza plástica da natureza que encontra consonância com os poemas e as canções pretas.

NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA

Que lindo este filme em homenagem a Grande Otelo, um dos nossos maiores atores. A opção do diretor por trazer à tona entrevistas que o ator deu a programas de televisão importantes ajuda bastante a pensarmos seus gestos e suas respostas, que unem a simplicidade e a grandeza. A pergunta que costumavam fazer era talvez complicada de ser respondida, sobre uma possível identificação com Macunaíma, o chamado herói sem nenhum caráter, e a sua comparação com o povo brasileiro. NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA (2022), de Fabio Rodrigues Filho, vai fundo nessa questão e apresenta, em recortes, vídeos e trechos de filmes que, sem dar respostas prontas, cutucam nosso espírito e a história racista de nosso país. Muito bonitas as cenas em silêncio e de arrepiar a música escolhida para encerrar o filme.

MANHÃ DE DOMINGO

O filme já chama a atenção pelo plano fixo que vemos, que denuncia claramente que a atriz é uma pianista de fato (Raquel Paixão). Uma mulher preta toca Chopin e na parede vemos um cartaz da Nina Simone. Seu gato preto permanece quietinho em cima do piano. Uma imagem linda de ver e de ouvir. Depois vemos que ela tem um espectador, mas talvez isso não seja tão importante assim, a não ser para nos apresentar a sua intimidade e a suas preocupações a respeito de uma apresentação futura. MANHÃ DE DOMINGO (2022, foto acima), de Bruno Ribeiro, premiado com o Urso de Prata em Berlim, tem uma sofisticação visual que se percebe desde o primeiro plano e que assim permanece até o último. Não é um filme de muitos diálogos, é mais de observação e apreciação visual, mas é claramente um filme de resistência e luta que passa longe de ser panfletário. Não que isso fosse um problema.

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