
Ando um pouco carente de ver filmes. Nesta semana foram apenas dois vistos no cinema, e ainda no esquema de tentar lutar contra um tipo de sonolência que vem mais de algum problema na garganta, creio eu, do que de cansaço ou de privação de sono. Vou buscar saber o que está acontecendo. Para ver UMA BATALHA APÓS A OUTRA (2025), o novo e aguardado trabalho de Paul Thomas Anderson, me muni de uma série de coisas: uma soneca de cerca de uma hora antes de ir ao cinema, um expresso duplo antes da sessão e um outro grande durante, sendo que antes disso tomei um suco verde que supostamente teria gengibre. Enfim, consegui ficar consciente durante a sessão, ainda que sempre com aquela sensação de que rever o filme num futuro próximo seria muito interessante.
Gosto muito de PTA, mas nem sempre seus filmes me “pegam”. O anterior, LICORICE PIZZA (2021), me traz algumas boas recordações de certas sequências, mas não me encantou por completo. Assim como foi o caso de VÍCIO INERENTE (2014), mas este ainda acredito que pode melhorar numa revisão. Achei-o confuso, mas talvez seja por causa da adaptação do romance de Thomas Pinchon, de seu texto original, que dizem ser um pouco mais complicado para traduções para o cinema.
A boa notícia para quem não curtiu muito VÍCIO INERENTE é que esta segunda adaptação que Paul Thomas Anderson faz de um romance de Pinchon é muito mais animadora e bem-sucedida. Talvez por ser uma adaptação mais livre, inspirada no romance Vineland (1990) do celebrado escritor. Então o cineasta pôde tomar mais liberdades e trazer a história e seus personagens para um país muito mais próximo de um regime fascista, como são os Estados Unidos da era Trump, em que se mascara menos a supremacia branca e em que certos absurdos são normalizados por mais pessoas.
O caos que impera na história também é algo abraçado por PTA e o humor é muito bem-vindo, em especial para destacar o jeito desastrado de ser do personagem de Leonardo DiCaprio, alguém que já foi membro de um grupo de combatentes revolucionários, mas que, passados 16 anos, não sabe como voltar ao ritmo. Falando em caos, eu lembro de quando saí com dor de cabeça da sessão de EMBRIAGADO DE AMOR (2002) e de quando saí atordoado, mas também muito feliz, na época que vi no cinema MAGNÓLIA (1999). Então, o caos é um lugar ou um ambiente em que o cineasta se sente em casa. Por isso, é interessante já ir ao cinema esperando uma experiência divertida, mas nesse sentido. Mas claro: é um caos controlado, já que tudo que filma é muito bem pensado e planejado.
No caso de UMA BATALHA APÓS A OUTRA, por mais que vejamos o filme como uma obra muito mais de esquerda, há também uma crítica àquilo que deu errado no comportamento da geração da contracultura e no modo como suas lutas foram perdendo espaço para um esvaziamento de utopias. Não que seja isso exatamente o que o filme se propõe dizer, mas é algo que pode ser lido, assim como também podemos vê-lo simplesmente como um misto de thriller de ação e comédia feito por um dos cineastas mais sofisticados da atualidade, e, só por isso, só pela forma, já vale a pena ser visto. Já é o suficiente para agradar os fãs do cinema de gênero.
Paradoxalmente, por mais que seja o filme de PTA com mais ação e dinamismo de sua carreira, talvez seja o que mais convida a reflexões políticas e sociais de seu país e do mundo. Lembrei em alguns momentos dos filmes de Quentin Tarantino: do não ter medo de matar ótimos personagens (KILL BILL), de tirar sarro de nazistas (BASTARDOS INGLÓRIOS) ou de usar o gore na estrada (À PROVA DE MORTE). Tanto que em diversos momentos consegui visualizar Tarantino adaptando este romance, mas ao mesmo tempo me sentindo muito grato por ter um cara como PTA comandando um projeto dessa envergadura, com essa vontade de retomar ao Vistavision.
Só que, diferentemente de O BRUTALISTA, PTA usa muito mais close-ups, valorizando mais as expressões faciais e as performances de seus atores: destaque, claro, para DiCaprio e Sean Penn, mas também para Benicio Del Toro e duas atrizes que roubam as cenas, que interpretam mãe e filha, Teyana Taylor e a estreante Chase Infinity, respectivamente. E falando em elenco, soube que por pouco Leonardo DiCaprio não trabalhou com PTA em BOOGIE NIGHTS – PRAZER SEM LIMITES (1997), um de meus favoritos do diretor, e só não o fez pois acabou indo fazer TITANIC, de James Cameron. Mas a admiração mútua dos dois permaneceu ao longo dos anos e finalmente tiveram a chance de trabalhar juntos. E com a vantagem de ter agora um DiCaprio muito mais maduro, com experiências distintas com diretores como Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Steven Spielberg.
O resultado da soma do trabalho dos dois é um dos melhores filmes do ano, desses que dá vontade de ver de novo (as 2h40min de duração, mal se sente). Além do mais, vale destacar também a trilha sonora de Jonny Greenwood, colaborador de PTA desde SANGUE NEGRO (2007).
+ TRÊS FILMES
A ESPIÃ (Zwartboek)
Rever A ESPIÃ (2006) com a Giselle me fez redescobrir aquele que considerei o melhor lançamento nos cinemas de 2008. Nunca tinha revisto e ver no BluRay caprichado da Versátil foi de dar gosto. Além do mais, é sempre bom retornar ao cinema controverso e sensual de Paul Verhoeven. A ESPIÃ é um retorno ao tema de SOLDADO DE LARANJA (1977), só que muito mais vigoroso e com uma produção maior (até hoje é a produção cinematográfica mais cara dos Países Baixos). Revê-lo também ajuda a torná-lo mais claro: uma trama de espionagem costuma ser um pouco confusa, mas aqui o diretor opta pela clareza, por mais que haja surpresas o bastante ao longo da narrativa. Na trama, jovem mulher judia troca de nome depois de sobreviver a um ataque violento a sua família e amigos e tenta sobreviver numa Holanda sob o domínio dos nazistas, nos anos de 1944-45. Sobreviver e também atuar numa célula da resistência do país, chamada pelos nazistas de grupo terrorista. Nessa sua atuação, o principal destaque é seu envolvimento com um oficial nazista, por quem ela nutre um sentimento forte. Gosto de como Verhoeven foge das obviedades e do preto no branco, além de tocar na ferida do povo neerlandês. Carice van Houten está incrível como a heroína e o filme passa voando: são 2h20min que não são sentidos. Pelo visto foi uma ótima escolha para que a gente inaugurasse o nosso cinema em casa.
RUAS SELVAGENS (Savage Streets)
Este é, muito provavelmente, o patinho feio do box Cinema Exploitation 3. Seu chamariz é a presença de Linda Blair, famosa por ser a garota possuída de O EXORCISTA, mas que não teve uma carreira muito boa no cinema. Uma produção como a de RUAS SELVAGENS (1984) já foi muito difícil, por mais barata que tenha sido. Foi interrompida com três dias de filmagens para depois ser retomada com um novo produtor. Hoje se diz ser um filme antiviolência em sua mensagem, mas obviamente o apelo à nudez e às cenas de violência são feitas com o objetivo de divertir, o que gera sentimentos ambíguos. Trata-se de um rape & revenge cuja vingança não é feita pela moça violentada, mas por sua irmã (a personagem de Blair). O filme de Danny Steinmann começa a ficar melhor em sua terça parte, quando essa vingança toma forma e ela sai à caça da gangue de delinquentes, tão malvados quanto caricatos. Aliás, talvez seja por causa desse teor de interpretações ruins (só escapa o ator John Vernon, que faz o diretor da escola) que o filme foi ganhando também certo culto ao longo dos tempos. Na época, eram de produções de baixo orçamento que surgiam obras mais ousadas do ponto de vista da nudez e da violência gráfica. São obras como essas que têm a coragem de mostrar brigas de mulheres em banheiro feminino, por exemplo. Além do mais, ao que parece, não havia tantos filmes com mulheres encabeçando o papel de vigilantes naquela época. E esse detalhe foi algo que chamou a atenção de Blair para abraçar o projeto. Ela aparece nos extras do DVD se mostrando muito orgulhosa de ter trabalhado em RUAS SELVAGENS.
A ARTE DO CAOS (Verbrannte Erde)
Este já é o décimo longa de Thomas Arslan e talvez o primeiro que chega ao circuito brasileiro. Trata-se da sequência de NAS SOMBRAS (2010), o filme que apresentou o personagem Trojan, vivido pelo ator alemão de ascendência croata Mišel Matičević. Trojan é um ladrão que vive nas sombras e de vez em quando sai para executar um roubo bem planejado e que lhe ajude a se manter por uns seis meses ou um ano. A ARTE DO CAOS (2024) lembra muito o polar, o cinema policial francês dos anos 1950-70, como também lembra o cinema de Michael Mann. Ou seja, é um filme que se preocupa muito com a cenografia e como os personagens se dispõem na tela, muitas vezes escondidos nas sombras, como que para enfatizar um tipo de vida amaldiçoada pelas escolhas e pelo próprio dinheiro. Aqui Trojan recebe um convite de integrar um bando que irá roubar um quadro valioso para um milionário misterioso, mas as coisas não saem como o planejado. Gosto muito de como Trojan é um personagem de aspecto físico pouco expressivo, mas que talvez por isso mesmo esteja tão bem no papel, ainda que muitas vezes seja eclipsado pelo maior vilão, um capanga que não hesita em matar, vivido por Alexander Fehling. Gosto do tom bastante sério do filme, e de como a música, ouvida apenas pontualmente, pois os silêncios também são importantes, de como essa música enfatiza tanto o mistério quanto o ar trágico que se constrói ao longo da narrativa - confesso que até lembrei de alguns trabalhos de Angelo Badalamenti para David Lynch em certos momentos. A violência, até por ser econômica, é intensa quando surge, trazendo mais realismo e aspereza para as cenas, mas sem deixar de lado a beleza plástica da fotografia e da direção de arte. Só peço que venham mais filmes de Thomas Arslan. Por favor. Agradecimentos a Luiz Soares Júnior por dar o toque sobre o filme.
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