domingo, outubro 13, 2024

ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS



Ontem, ao escrever sobre o mais recente filme de Woody Allen, dei de cara com um texto escrito por mim, aqui para o blog, 22 anos atrás, sobre A OUTRA. Nele eu meio que reclamava e meditava sobre a mudança para a casa dos 30 anos de idade, uma passagem que eu de fato senti mais que a mudança para a casa dos 40, muito pelo que eu lamentava não ter conseguido em minha vida naquele momento. Hoje, aos 52 anos, me sinto mais feliz e grato, apesar de já sentir o peso da idade no corpo e também perceber as marcas do envelhecimento cada vez mais duro em minha mãe, que tem sofrido muito com as dores e a dificuldade de mobilidade. O fato de eu estar vivendo também um feliz romance tardio também me traz uma consciência maior do passado e do que pode vir a acontecer no futuro, mas também me faz valorizar mais as alegrias do presente.

Ontem à noite, por exemplo, eu, Giselle e Regina, uma amiga dela, fomos a uma festa dessas de flashback, com uma banda muito famosa por tocar jovem guarda, que é um tipo de música que serve mais como museu do que como algo a ser de fato curtido. Mas isso é só a minha impressão, não um fato. O fato é que existe um monte de gente que se sente feliz e com um sentimento de pertencimento em estar numa festa como essas, cantando a plenos pulmões e muitos com o corpo frágil as letras. A maior parte do público presente na festa era de pessoas da terceira idade, muitas delas extremamente felizes de estarem ali. Por isso, não importa se eu me incomodava com as versões toscas de canções dos Beatles da fase inicial, ou outras canções desse período, mas no final, especialmente quando a banda também toca outros gêneros e artistas (era disco, Secos e Molhados, A Turma do Balão Mágico, Sidney Magal, Elvis, Frank Valli etc,) e quando fomos lá para a frente dançar, valorizei a banda, a música, a alegria de estar dançando com alguém que amo.

E assim faço ligação com ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS (2024), de Eduardo Escorel, um filme que chama a atenção para o envelhecimento e a aproximação da morte, essa figura invisível que pode chegar a qualquer momento e a qualquer pessoa, mas que parece, naturalmente, ainda mais próxima de alguém que já está entre 96-98 anos de idade, como é o caso da pessoa que escreve as anotações lidas na voz de Matheus Nachtergaele.

Meu contato com o sociólogo, crítico literário e professor Antonio Candido se deu na faculdade de Letras, tanto na graduação quanto no mestrado. Era/é um nome muito querido pelos professores e também pelos alunos como um grande pensador da nossa literatura. Ver este documentário me fez conhecer um pouco mais o pensador e teórico, um dos criadores do PT, entusiasta do socialismo e alguém que poderia ter optado por viver na bolha de seu mundo maravilhoso de livros e erudição, mas que fez questão de conhecer o Brasil profundo com os próprios olhos, entrando em contato com as misérias do povo brasileiro desfavorecido.

Os trechos de seus textos para o filme são de dois dos 74 cadernos encontrados após sua morte, aos 98 anos, escritos entre os anos de 2015 e 2017. Não mais tão ativo, Candido testemunhou a derrocada dos anos Lula com tristeza: o golpe de Dilma Roussef e um novo e aterrador momento de nossa política, que ele teve a sorte de não ver. Com frequência, ouvimos sua voz enquanto a câmera passeia pela casa vazia, enfatizando sua ausência física e sua rica estante ainda disposta.

Algo muito bonito que o filme destaca a partir da própria fala do escritor é seu imenso amor pela esposa, Gilda, falecida em 2005, mas presente todos os dias em seus pensamentos. Candido dizia que Gilda foi a melhor coisa que lhe acontecera na vida e é tocante essa devoção a ela, principalmente partindo de alguém que tem também uma outra paixão imensa: a literatura, além da política. Como filme, é simples, mas ouvir o texto de Candido, tão lúcido quanto poético, falando inclusive de sua condição de pessoa idosa e da expectativa da morte, é de um prazer imenso.

+ TRÊS FILMES

TERMODIELÉTRICO

É impressão minha ou uma relação mais estreita entre cinema e ciências naturais dificilmente é bem-sucedida? E olha que o mundo dos cientistas e inventores é fascinante, assim como é fascinante também saber mais sobre radioatividade. Este documentário é um exemplo dessa dificuldade, com a diretora falando sobre seu avô, Joaquim da Costa Ribeiro, pioneiro da física no Brasil, e detalhando um pouco suas pesquisas e realizações. TERMODIELÉTRICO (2023), de Ana Costa Ribeiro, entrecorta a vida do cientista com uma apresentação de seus estudos, descobertas e êxitos. O resultado é um tanto irregular, por vezes interessante, outras vezes monótono. Nem sempre a costura que a diretora faz funciona, mas gosto das escolhas das imagens e de sua plasticidade.

DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA

É imprescindível que um filme em homenagem a Ruth de Souza exista, de modo que a atriz seja devidamente valorizada e lembrada, não apenas por ser a primeira atriz negra brasileira a chegar ao cinema, ao teatro e à televisão, mas pela trajetória brilhante e de enfrentamento dos preconceitos, começando já nos anos 1930, e servindo como abertura para outras tantas atrizes pretas que viriam. Não gosto das cenas de dramatização (não vejo força nelas) de DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA (2022), de Juliana Vicente, mas acho brilhante a diretora ter deixado na mesa de montagem um monte de entrevistas de famosos para se concentrar apenas nos registros de entrevistas da própria Ruth, inclusive em seus anos de saúde mais debilitada. Gosto também quando o filme mostra cenas de filmes que ela fez, alguns deles mais raros, da época da Vera Cruz. Por vezes, dá vontade de ver aqueles filmes inteiros. Há até bem poucos trechos de trabalhos dela para cinema e televisão, se olharmos para sua filmografia de mais de 80 títulos. Entre os apresentados no doc, estão clássicos e cults como TAMBÉM SOMOS IRMÃOS (1949), SINHÁ MOÇA (1953), O ASSALTO AO TREM PAGADOR (1962) e PUREZA PROIBIDA (1974).

DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS

É difícil sair da sessão deste documentário sobre Dorival Caymmi e não ficar emocionado e ainda mais encantado com o cantor e compositor e seu trabalho único, e que reverbera na obra de artistas tão diferentes quanto Caetano Veloso e Marcelo Camelo. DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS (2019), de Daniela Broitman, tem um formato mais tradicional, com a presença de vários depoimentos, mas já começa com uma filmagem de 1989, do próprio Dorival brincando com sua beleza física e com sua idade, e de como o fato de ele ter uma boa relação com as pessoas acabar repercutindo na própria beleza que vibra de si. Ou algo parecido. Inclusive, há coisas que ele fala que parecem poesia metafísica. Não à toa, há um trecho em que sua filha apresenta um livro de poesia completa de Fernando Pessoa como uma obra fundamental para o pai, que era uma pessoa com muita consciência da grandeza e importância da própria obra, seja num detalhe pertencente a um verso, seja numa nota musical bem pensada. Adorei também as histórias que ele contou de sua vida e o quanto o filme o coloca numa posição de entidade espiritual da música brasileira. E que final bonito, hein. Lágrimas rolaram.

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