domingo, maio 05, 2024

BAIONETAS CALADAS (Fixed Bayonets!)



Quando vi BAIONETAS CALADAS (1951) e postei o textinho rápido e no calor do momento, como costumo fazer sempre, para o Facebook e para o Letterboxd, o amigo e crítico Humberto Silva destacou uma questão envolvendo uma certa reputação, a princípio, pouco favorável a Samuel Fuller, que era tido como anticomunista e, para os mais exaltados, até fascista. Humberto me falou que havia (há) um capítulo dedicado à questão Fuller e a crítica francesa no livro Cinefilia, de Antoine de Baecque, que até hoje não li por completo, pois fico pensando em ler enquanto acompanho um pouco as obras dos principais nomes da Nouvelle Vague, mas hoje sei que isso é bobagem e se for esperar ver tudo de Godard, Rivette, Rohmer, Varda etc, não vou ler o livro nunca. Logo…

De todo modo, essa menção que o Humberto fez desse capítulo em especial do livro foi maravilhosa, pois jamais pensei que Fuller teria sido de tanta importância para chegar a fazer um racha na crítica cinematográfica francesa de então. Acontece que um dos mais influentes críticos do início dos anos 1950, Georges Sadoul, era comunista e tinha um posicionamento bem radical em relação ao cinema produzido nos Estados Unidos. Segundo ele, só valia a pena ver os filmes dos chamados “dez de Hollywood”, homens de esquerda que se insurgiram contra o senador McCarthy. Sadoul chegou a chamar nomes como McCarey, Hitchcock, Hawks, Preminger, Cukor etc. de bibelôs hollywoodianos (imagina só!) e chamou Samuel Fuller, especificamente, de o McCarthy do cinema.

Quando os “jovens turcos” passaram a defender mais e mais Fuller, Sadoul ficou deveras indignado e sequer aceitou participar de uma edição especial dos Cahiers du Cinéma, já numa época em que essa nova turma, os jovens hitchcock-hawksianos, era a que estava mandando na crítica francesa (e logo mais no próprio cinema francês). E aí surgiu uma questão: essa nova crítica era de direita? A questão é que eles eram adeptos da política dos autores, de um neoformalismo, ou “fullerismo” (vejam bem: até esse termo surgiu, em homenagem à polêmica Fuller). Citando Bacque,

Ser “desengajado”, em meados dos anos 1950, isto é, preferir a forma do estilo à mensagem ideológica, as invenções da mise em scène ao teor do roteiro, os pequenos aos grandes temas, os filmes americanos às produções soviéticas ou de “Qualidade Francesa”, é ser engajado contra tudo o que constitui, em sua diversidade, a cultura de esquerda: Sartre, Les Temps Modernes, Camus, Combat, Jean Vilar e a “Action Culturelle”, Bazin, “Travail et Culture”, Esprit, Sadoul, Aragon, Les Lettres Françaises e os comunistas.”

Ou seja, os jovens foram atrevidos, e estavam mesmo dispostos a fazer uma ruptura com a crítica e o pensamento até então vigente. O capítulo tem mais de 50 páginas e há muitos detalhes das discussões entre os protagonistas, mas o mais interessante é que Samuel Fuller, enquanto isso, só continuou a fazer seus filmes.

Fuller foi um combatente de guerra. E deixa muito claro seu respeito e sua dedicação para honrar os esforços e os sacrifícios dos soldados americanos, talvez até mais que o próprio John Ford. Pelo menos, tive essa impressão nesse primeiro momento. 

Ainda rolava a Guerra da Coreia (1950-1953) quando Fuller, num mesmo ano, lançou dois filmes de natureza mais heroica sobre o conflito. Em BAIONETAS CALADAS (1951), tanto quanto em CAPACETE DE AÇO (1951), o foco está mais na sobrevivência dos homens em território hostil e estrangeiro do que em estratégias militares ou situações de violência brutal. 

No caso de BAIONETAS CALADAS, a maior parte da trama se passa numa colina congelada onde um grupo de apenas 48 homens se estabelece, boa parte das vezes dentro de uma caverna, com a missão de segurar e enganar um exército coreano, numa estratégia de guerra. Eles sabiam que provavelmente estariam ali para ser aniquilados pelo exército coreano, de modo que a maior parte dos homens, 15.000, pudesse atravessar uma ponte com tranquilidade.

Fuller mais uma vez usa tintas muito humanas para pintar esses homens. Todos são imperfeitos e todos são também muito dignos de respeito e consideração. Como se o cineasta fosse uma espécie de portador do amor, mesmo quando trata de um cenário tão embrutecedor como a guerra. E faz isso sem apelar para sentimentalismos baratos.

Falando em barato, BAIONETAS CALADAS é mais um exemplo do cinema de baixo orçamento do diretor, agora trabalhando para um grande estúdio, a 20th Century Fox, mas com custos de produção reduzidos, e filmado em apenas 20 dias. Foi o primeiro de uma acordo de sete filmes entre o realizador e o estúdio de Darryl F. Zanuck.

Visto no box O Cinema de Samuel Fuller.

+ DOIS FILMES

GODZILLA MINUS ONE (Gojira -1.0)

O que salta aos olhos logo que começa GODZILLA MINUS ONE (2023), de Takashi Yamazaki, é o visual. O avião sobrevoando a ilha, os tons de cores que remetem aos filmes coloridos mais antigos, a visão de um Japão que acabou de ser derrotado pela guerra mais traumatizante do país. Para o piloto de aviões que fugiu do dever de kamikaze, há também a culpa, que é agravada com a chegada do Godzilla à ilha em que ele está. Gosto de como o filme vai se aprofundando mais nos dramas dos personagens, desse rapaz e depois de uma mulher que ele conhece quando retorna a Tóquio. Mais até do que das cenas com o monstro, embora elas sejam muito bonitas de ver e também um tributo ao GODZILLA de 1956, inclusive com o modo de andar e de olhar do monstro. Não sei se o desencanto que o filme passa em relação ao governo japonês está relacionado apenas à época do pós-guerra ou se está também vinculado à atual situação política do país, mas é algo que chama a atenção. No mais, o tom de heroísmo que adotado parece destoar do que estamos acostumados a ver, parecendo também um retorno a um espírito do passado, de tempos mais inocentes, embora não exista inocência alguma depois de se atravessar uma guerra daquelas. A inocência talvez esteja simbolizada na criança que o protagonista cria como filha, representante do futuro. Uma surpresa e tanto o lançamento deste filme no Brasil. É importante que as pessoas o prestigiem, para que o cinema japonês, seja o autoral, seja o de gênero, volte a comparecer com força em nosso circuito exibidor.

GUERRA CIVIL (Civil War)

Quarto filme do cineasta inglês Alex Garland, um artista bem divisivo no gosto dos cinéfilos, mas que ganhou aqui a carta branca de comandar a produção mais cara da A24, até o momento. Para os brasileiros, GUERRA CIVIL (2024) ainda tem o atrativo de trazer Wagner Moura, como um jornalista que quer entrevistar o presidente dos Estados Unidos em Washington, quando o país atravessa uma guerra civil muito provavelmente nascida da polarização política. Senti falta de mais política no filme sendo explicitada, mas fica, de certa forma, claro o lado de Garland, principalmente na melhor cena do filme, a que mostra Jesse Plemons (não creditado) na pele de um soldado monstruoso, meio trumpista e muito xenófobo, ameaçando com uma arma os jornalistas. É uma cena de causar um mal estar imenso, mas é a mais poderosa, sem dúvida. De tirar o chapéu. Aliás, Garland tem a sorte aqui de trabalhar só com grandes atores. Kirsten Dunst está ótima como a fotógrafa de olhos mortos e fatigados, Wagner Moura como o homem que se alimenta e se alegra com a guerra, e a jovem Cailee Spaeny (PRISCILLA) como a fotógrafa iniciante que pega carona no grupo, junto com o jornalista veterano vivido por Stephen McKinley Henderson. GUERRA CIVIL é uma espécie de road movie. E como um road movie, é um filme de autodescobertas e transformações durante o processo. Acho bons os tempos de respiro, como as paradas para conversar, ou a ida a uma lojinha de roupa, mas aos poucos esses respiros vão ficando menos respiráveis, o que de certa forma é positivo para o que filme se propõe. Ainda assim, mesmo sendo um trabalho irregular em seu andamento e se mostrando um pouco hesitante em dar nomes aos bois na trama, é uma obra quase tão boa quanto MEN – FACES DO MEDO (2022), o controverso trabalho anterior do diretor.

Nenhum comentário: