sábado, setembro 17, 2022

MOONAGE DAYDREAM



Celebrar personalidades que revolucionaram o mundo através da arte é algo que me deixa muito feliz. Na última semana eu já havia celebrado Maria Bethânia, com o doc MARIA – NINGUÉM SABE QUEM SOU EU, e Jean-Luc Godard, com PAIXÃO, por ocasião da passagem do cineasta. Cada vez mais me vejo como um humanista, como alguém que, apesar de perceber a maldade e as fraquezas do ser humano, também vejo e louvo seus feitos, sua aproximação de algo próximo de uma divindade, dentro do que é possível no plano terrestre. Aliás, eu até poderia dizer que o que se faz com arte é também magia. Ando lendo o livro Palavras, Magias e Serpentes, de Alan Moore e Eddie Campbell, e cada vez aceito a arte como uma forma de magia. E não há como negar que há algo de muito mágico quando nos deixamos levar pela força das canções de David Bowie, especialmente dentro de uma sala de cinema, com uma projeção e um som excelentes de uma sala IMAX.

Tenho pouco conhecimento de David Bowie e assim como vários outros artistas, passei a conhecê-lo através de coletâneas. A primeira que comprei foi The Best of David Bowie – 1969/1974, que me apresentou a canções como “Space Oddity”, “Jean Genie”, “Rebel Rebel”, “Ziggy Stardust”, “Oh! You Pretty Things”, “Changes”, “Rock ‘n’Roll Suicide”, “Aladin Sane” e tantas outras obras-primas condensadas em intervalos de minutos. Imagino que foi erro de minha parte não ter me aprofundado melhor nos álbuns ao longo dos anos - de álbuns, só tenho hoje comigo em formato físico Hunky Dory (1971) e Blackstar (2016).

Porém, mesmo que eu não tivesse comprado ou ouvido as canções de David Bowie como também um interessado por música e por rock, especificamente, como cinéfilo, eu já teria uma bagagem generosa de participações do astro como ator em vários filmes que ajudaram também a enriquecer sua persona. É só pegar títulos como O HOMEM QUE CAIU NA TERRA (1976), FOME DE VIVER (1983), FURYO – EM NOME DA HONRA (1983), A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO (1988) ou TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER (1992) para perceber que havia também da parte de Bowie um interesse por se eternizar em tela pelas mãos de grandes diretores. Além de músico e ator, Bowie também pintava e fazia vídeos experimentais.

Ver MOONAGE DAYDREAM (2022), de Brett Morgen, foi uma experiência muito mais intensa do que eu esperava. Na verdade, foi uma das experiências emocionais, sensoriais e intelectuais mais poderosas que eu já passei em uma sala de cinema, inclusive por causa também das imagens psicodélicas. O filme não é apenas um apanhado de imagens de arquivo que cobrem a vida e a obra do cantor e compositor, mas também um convite à reflexão sobre a beleza da vida e sua conexão com as artes. De certa forma, isso guarda relação com o já referido documentário sobre Bethânia, por mais diferentes que sejam os formatos e as intenções de seus realizadores. Isso porque ambos os filmes me trazem tanto emoção quanto uma alegria e uma gratidão de viver. No caso do filme de Bowie isso se apresenta de maneira ainda mais exponencial, já que há uma infinidade de referências cinematográficas que Morgen faz passear pela tela, como que para deixar claro que Bowie foi/é uma das figuras mais importantes do maravilhoso e trágico século XX – e que, no caso dele, se expandiu também para o novo milênio.

Se MOONAGE DAYDREAM fosse apenas uma coleção de imagens dos shows dos anos 1970 de Bowie com os Spiders from Mars, eu já ficaria muito feliz. Os minutos iniciais do filme se detêm bastante nesses shows, ajudando a apresentar, inclusive para quem não conhece o artista, seu personagem mais famoso, o Ziggy Stardust. E aquilo é fabuloso quando ouvido com o som no talo. Vários momentos me deixaram arrepiado. Entrecortando essas imagens, vemos cenas de uma enrevista de Bowie ao apresentador britânico Russell Harty, com Bowie todo montado como Ziggy e deixando Harty algumas vezes sem jeito. Quando questionado se ele se perguntava algo como “Jesus, eu devo entrar na cena por um outro caminho?”, ele disse: “Eu nunca pedi nada a Jesus; foi tudo iniciativa minha”. E há aquela pergunta sobre os sapatos dele, que receberam uma resposta também desconcertante e engraçada.

Aos poucos, além de vermos a evolução do trabalho de Bowie como artista e sua metamorfose ao longo dos anos, o filme de Morgen também nos apresenta um pouco da intimidade do artista, um pouco de suas ideias (mutáveis), de seus interesses, de sua inquietação espiritual, a ponto de ficar angustiado quando não está compondo ou cantando, chegando a viajar por várias partes do mundo, tanto para compreender o mundo, como se fosse um alienígena, como para crescer como pessoa. Ele conta o quanto se sentiu mais confortável quando passou dos 30 anos de idade, em comparação com sua juventude. Até mais bonito, fisicamente, ele ficou. Além do mais, havia um forte apego à solidão e uma falta de vontade de construir relacionamentos amorosos. Há uma referência ao irmão que voltou da guerra e passou o resto da vida em um manicômio e o distanciamento de Bowie com a família, o que pode ter contribuído para essa espécie de fuga. 

Dos seus relacionamentos amorosos, só é mostrado seu contentamento imenso ao finalmente conhecer sua alma gêmea, a modelo e atriz somali Iman. E claro que há coisas que o filme não quis ou não teve como incluir de sua intimidade. Até porque MOONAGE DAYDREAM é mais sobre a persona pública de Bowie, e não sobre aquilo que não o artista trata de esconder. Isso acaba por acentuar o ar misterioso em torno dele.

Há momentos de tela preta que claramente funcionam como fins e começos de novos capítulos do longa-metragem, e que fazem saltos para outros momentos da vida e da carreira de Bowie. Depois da estupenda fase setentista, vemos a controversa, mas bastante bem-sucedida fase da década de 1980, quando o ator passou a se vestir de terno branco em suas apresentações e cantar canções com uma sonoridade mais pop.

Curiosamente, um dos momentos que mais me deixou emocionalmente em sintonia foi no refrão de “Let’s Dance”. Talvez por trazer algo de mais mundano, mais simples, mais romântico e talvez menos capricorniano – dentro do que se convenciona tratar os nativos desse signo, aliás, bastante citado pelo próprio artista ao longo do filme. Além do mais, confesso que ainda tenho dificuldade de penetrar na maior parte das letras de Bowie, e por isso prefiro me deleitar com a música, com a sonoridade, com a melodia, com seus arranjos fantásticos.

Ao final, ao sair da sessão maravilhado, e talvez um tanto triste por voltar à realidade, falei um palavrão em tom de comoção. Muito disso porque o filme, nos instantes finais, traz um pouco do fim da carreira e da vida de Bowie, o que certamente é motivo de se ter uma leve melancolia. O que havia acabado de ver, além da história de um grande artista, podia ser visto por mim como uma declaração de amor. Amor à vida, à música, ao cinema, à pintura, ao teatro, à moda. É estar grato de estar vivendo em algum momento na mesma época em que David Bowie caminhou sobre a Terra.

+ DOIS FILMES

INGRESSO PARA O PARAÍSO (Ticket to Paradise)

Delícia de comédia que faz a gente rir e principalmente sorrir durante praticamente toda a metragem de INGRESSO PARA O PARAÍSO (2022). Não me envolvi tanto nas cenas dramáticas, mas torci pelos personagens de George Clooney e Julia Roberts o tempo inteiro. Os dois astros são velhos amigos e o tom de descontração entre os dois perpassa todo o filme. Ajuda muito também o elenco jovem. Kaitlyn Dever (de FORA DE SÉRIE e da minissérie INACREDITÁVEL) está encantadora como a filha do casal que viaja com a melhor amiga (Billie Lourd) para a ilha paradisíaca de Bali e lá conhece e se apaixona por um local (Maxime Bouttier). Clooney e Roberts, como um casal que se odeia, se juntam com a intenção de comprometer o casamento da filha com o rapaz. Há várias situações suavemente cômicas, paisagens de encher os olhos, uma tensão entre o casal que (sabemos) ainda se ama, e um andamento narrativo muito bem acertado. Que eu lembre, MAMMA MIA! LÁ VAMOS NÓS DE NOVO (2018), o filme anterior do diretor Ol Parker, não era assim tão bom e até imagino que ele tenha sido escolhido para este filme pelo elemento em comum, que é um espaço paradisíaco onde o amor floresce. Cena engraçadíssima: a disputa dos casais ao som de música dos anos 1980 de quem consegue ficar de pé mais tempo sem cair de bêbado.

ÓRFÃ 2 - A ORIGEM (Orphan – First Kill)

Claro que a mão firme de Jaume Collet-Serra faz falta neste prequel de A ÓRFÃ (2009), mas o diretor Willaim Brent Bell, da maior parte das continuações da franquia Jogos Mortais, dá conta do recado, com a ajuda de um roteiro muito bem amarrado e espirituoso, que nos faz rir em diversos momentos, especialmente após a surpresa que este segundo filme revela. Também é um trunfo de ÓRFÃ 2 - A ORIGEM (2022) a ótima presença de cena de Julia Stiles, como a mulher que recebe a psicopata Esther como sua filha. Isso ajuda um pouco a compensar a dificuldade de aceitarmos Isabelle Furman como uma mulher que consegue se passar como criança por todos ao redor, algo que no primeiro filme parecia mais fácil. De todo modo, isso faz parte do senso de humor que o diretor e o elenco parecem defender muito bem e com cumplicidade. Uma bela surpresa.

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