domingo, novembro 24, 2019

CORPO DELITO

O trabalho de encenação em documentários tem sido bastante comum no cinema contemporâneo. CORPO DELITO (2017), o longa-metragem de estreia de Pedro Rocha, vem engrossar essa categoria de filmes.Mas, por mais que se trabalhe com a encenação, a observação da vida faz com que o efeito do acaso gere situações obviamente inesperadas.

A escolha do protagonista, Ivan Silva, um rapaz que, depois de cumprir oito anos de prisão, está em regime de semiliberdade, usando uma tornozeleira eletrônica que lhe oferece um espaço bastante restrito para locomoção, é problemática no sentido de que não se trata de um personagem carismático - embora não tivesse a obrigação de ser, já que o que vemos ali é a representação de si mesmo, de um homem inquieto, fechado e pouco disposto a disciplinas.

Em nenhum momento o filme diz qual crime Ivan cometeu para ter cumprido esse tempo na prisão e ainda estar cumprindo o restante em semiliberdade. Mesmo assim, é difícil não escapar de fazer algum julgamento a Ivan, que, ainda por cima, se mostra incomodado com a tornozeleira (que ele chama de pulseira), afirmando que ela tem atrapalhado sua vida, tornando-a quase tão incômoda quanto a vida na prisão. Atormenta-lhe a rotina de ir de casa para o trabalho e do trabalho para casa; de não poder largar a família ou o trabalho, como se essa também não fosse a rotina de pessoas que vivem sem tornozeleiras. Se a intenção do diretor é tornar Ivan e também José Neto, seu amigo, personagens fáceis de despertar empatia, talvez essa intenção tenha sido um tanto frustrada.

Aos poucos o filme passa a trazer mais forte a presença de José Neto, o amigo de Ivan que está em liberdade e vai aonde deseja ir. É de certa forma libertador para o espectador sair um pouco dos ambientes fechados (casa de Ivan, local das entrevistas com as autoridades para reavaliar seu comportamento), mas é também incômodo no sentido de que percebemos que a passagem de José Neto por ambientes de pessoas abastadas parece dissonante, como na cena em que ele vai comprar um par de tênis em um shopping center e sua figura parece suspeita, quase perigosa, para um segurança.

O fato de as gravações na Favela dos Índios terem sido feitas entre 2014 e 2016 faz com que muitos hiatos temporais sejam sentidos ao longo da narrativa. Pela escolha em não utilizar depoimentos, a trama é entendida a partir dos diálogos, e certas situações não ficam muito claras, como, por exemplo, o que houve para que Ivan fosse retirado do trabalho na Fábrica-Escola, que poderia ajudá-lo a diminuir seu tempo com a "pulseira" e ser visto com bons olhos pelas autoridades que estavam acompanhando seu processo.

Uma das imagens mais surpreendentes do filme é a de Ivan colocando papel alumínio para burlar o serviço de monitoramento da tornozeleira eletrônica. Trata-se de um momento de certa forma transgressor, como se o diretor estivesse sendo cúmplice daquele crime. No entanto, o fato é que Ivan já estava fazendo aquilo há alguns dias e esta cena foi encenada, a pedido do diretor, para que sua história fosse contada.

Como uma obra de tensões, elas transparecem nos mais simples diálogos ao longo da narrativa. É o caso da conversa na praia entre José Neto e um amigo. Nota-se que há silêncios incômodos. À frente de uma câmera muitas coisas não são ditas, mas é possível perceber que a cena em que Ivan e José Neto cantam "V.L. (Parte 1)", dos Racionais Mc's, é um momento não só de maior espontaneidade, mas um momento também em que aqueles jovens marginalizados encontram em uma forma de arte um instrumento de grata identificação e certa alegria.

Talvez tenha faltado ao filme mais momentos assim, em que o público passe a entender ou lembrar que a realidade dessas pessoas e as consequências violentas de seus atos são principalmente frutos de um sistema social e político perverso. Por isso a cena final no terraço, com dois personagens olhando os prédios ricos em contraste com a favela, tenha sido uma escolha das mais felizes de CORPO DELITO.

+ TRÊS FILMES

ESTRADA PARA YTHACA

É aparentemente um filme em que nada acontece. Quatro amigos saem em estrada, param, fazem comida, comem, dormem, andam, dirigem, não há muitos diálogos. O filme foi construído à medida que a viagem foi acontecendo, em homenagem a um amigo que partiu prematuramente. O sofrimento e o luto deles talvez coincida um pouco com nossa inquietação espiritual, ou talvez eles tenham conseguido passar esse mal estar, essa tristeza nas imagens feitas como que em câmera amadora. Direção: Pedro Diogenes, Guto Parente, Luiz Pretti e Ricardo Pretti. Ano: 2010.

OS MONSTROS

Uma ode à liberdade, mesmo que a liberdade signifique incomodar e fazer com que poucos gostem do trabalho artístico. Os personagens são pessoas que se sentem deslocadas no mundo, com características de artistas de vanguarda que ninguém ou quase ninguém se importa. A parte final é até um pouco difícil de ver, com a extensão da proposta de mostrar aquilo em um intervalo de tempo considerável aquilo que seria descartado ou simplesmente mostrado rapidamente em um filme comum. É filme para ver com o espírito calmo, mas ainda assim sair da experiência com inquietação. É possível que eu tenha gostado mais desse do que de ESTRADA PARA YTHACA (2010). Direção: Pedro Diogenes, Guto Parente, Luiz Pretti e Ricardo Pretti. Ano: 2011.

BATE CORAÇÃO

É um filme cheio de problemas, mas dá para se divertir em alguns momentos. Há até momentos em que a emoção parece contagiar. Aqui temos um misto de filme espírita com filme LGBT e filme de mensagem (sobre doação de órgãos). O que mais incomoda é a própria ideia do filme de fazer com que o personagem mulherengo garanhão tenha ficado com raiva de ter recebido um transplante de um homem gay. De todo modo, como vivemos num mundo absurdo, é possível que isso de fato aconteça. Direção: Glauber Filho. Ano: 2019.

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