terça-feira, outubro 23, 2007

O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (The Man who Shot Liberty Valence)



"Quando a lenda se torna fato, imprima-se a lenda." Essa é uma das frases mais famosas do cinema e a frase chave de O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (1962), talvez a última das grandes obras-primas de John Ford - não sei ainda se os filmes seguintes do diretor chegam a tanto, mas tenho uns três ainda pra ver, pelo menos. Os teóricos costumam citar o ano de 1962 como um ano chave para o cinema americano, que pode ser dividido em antes e depois desse ano. Não custa lembrar que nesse mesmo ano, o grande Howard Hawks realizou a mais bela aventura de todos os tempos: HATARI! Simbolicamente, o ano de '62 separaria a velha Hollywood da nova. Uma nova geração de cineastas surgiria nos anos seguintes e mudaria os rumos do cinema americano. Mas isso aí já é outra história. Fiquemos com o bom e velho Ford e seu belo registro sobre a força da memória no velho oeste.

O filme se inicia com a chegada do respeitado senador Ranse Stoddard (James Stewart) e sua esposa (Vera Miles) a uma cidade que um dia foi importante para eles. Eles chegam para um funeral. Um funeral de um homem respeitado por eles, mas que já havia se tornado um velho anônimo para os mais jovens da cidade. Os jornalistas de lá ficam logo ouriçados com a presença do senador naquela cidade e querem saber mais sobre sua presença. E assim, o personagem de James Stewart conta em flashback para eles - e para nós - como tudo começou, quando ele chegou naquela cidade numa diligência, quando foi atacado por um fora-da-lei perverso chamado Liberty Valance (Lee Marvin, perfeito em sua maldade), quando conheceu a sua futura esposa, como também um homem forte e generoso de nome Tom Doniphon (John Wayne), o sujeito mais rápido no gatilho da cidade, um homem que sonhava em se casar com Hally (Vera Miles). Stoddard era, ainda, naquele tempo, um advogado, profissão ainda não muito comum naquelas cidades do oeste selvagem onde o que valia mesmo era o revólver e a coragem. Stoddard, porém, representava o progresso: trouxe não apenas o Direito, mas também alfabetizou muitas pessoas do vilarejo.

A dicotomia velho versus novo é um dos eixos fundamentais do filme. Para Tom, desafiar o "facínora" só mesmo na bala. Já Ranse preferia que o bandido fosse julgado, condenado e preso. Matá-lo seria assassinato. O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA, assim como RASTROS DE ÓDIO (1956), tem muito pouco dos habituais alívios cômicos dos filmes de Ford. Talvez o único esteja na figura do xerife gordo, covarde, glutão e de voz aguda vivido por Andy Levine. Nos créditos iniciais já se sente que se trata de um filme especial. A placa de madeira escrita com o título do filme remete diretamente a uma das melhores obras de Ford: PAIXÃO DE FORTES (1946). Era John Ford de volta ao preto e branco. No elenco, pela primeira vez juntos, dois grandes astros: Wayne e Stewart. Como o pivô de um triângulo amoroso no qual só um sairá ganhando, a bela e expressiva Vera Miles. Outro nome conhecido no elenco é o de Woody Strode, como o ajudante de Wayne. Para os fãs do western spaghetti vale mencionar a pequena participação de Lee Van Cleef (TRÊS HOMENS EM CONFLITO) como um dos bandidos do bando de Liberty Valance.

Pode-se considerar O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA como uma homenagem aos mortos, aos homens que tiveram que morrer e lutar no ambiente hostil do oeste selvagem, dominado por bandidos foras-da-lei e índios valentes e cruéis para que as novas gerações, mais confortáveis com os benefícios do progresso, pudessem ter um pouco mais de paz. Eu havia assistido esse filme há muito tempo num Corujão da Rede Globo, mas nunca tinha me passado pela cabeça que poderia existir alguma dúvida quanto a quem matou Liberty Valance. Mas hoje li um texto interessante no site Images Journal, no qual o autor se pergunta: e se o tiro que matou Valance não foi mesmo do personagem de Stewart? E se na hora do duelo, ele não precisasse das presenças de Wayne e Strode às escondidas para ajudá-lo? Achei interessante esse questionamento e não sei se Ford chegou a ponderar sobre isso. Mas como Ford era muito mais profundo e enigmático do que muitos imaginam, não duvido nada.

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