MOSTRA BUÑUEL MEXICANO
Infelizmente chegou ao fim a mostra de filmes da fase mexicana do genial Luis Buñuel, exibidos gratuitamente durante o Cine Ceará 2004. Foram seis dias de prazer estético, seis dias freqüentando as salas do Espaço Unibanco Dragão do Mar. Acho que nunca vi tantos filmes seguidos do mesmo diretor. Se bem que empata com os cinco filmes de Eric Rohmer que eu vi nesse ano. A diferença é que foram cinco sábados e não cinco dias corridos. Legal encontrar gente que vai para todas as exibições. A garota das pernas bonitas que sentou ao meu lado na sessão de A PROPÓSITO DE BUÑUEL estava em todas as sessões. Assim como o sujeito que puxou conversa comigo na sessão de A ILUSÃO VIAJA DE BONDE e que se gabava de ter jantado na noite anterior com um amigo de Nelson Pereira dos Santos. Engraçado que quase sempre que eu falava que estava indo ver a mostra do Buñuel, as pessoas perguntavam o que era isso, mal sabendo elas que esse senhor é um dos maiores gênios do cinema, da estatura de um Orson Welles, de um Stanley Kubrick, de um F.W. Murnau.
Ver esses filmes serviu também para eu ver temas recorrentes na obra buñueliana. A obsessão do diretor por pernas femininas ficou presente em quatro dos cinco longas apresentados. As pernas banhadas em leite em OS ESQUECIDOS; as pernas banhadas em sangue em ENSAIO DE UM CRIME; a perna do manequim no mesmo filme, remetendo diretamente à perna postiça de Catherine Deneuve em TRISTANA (1970); o maníaco ciumento que ficava tarado pela mulher sempre que olhava para suas pernas em O ALUCINADO. Essa obsessão também é confirmada em A ILUSÃO VIAJA DE BONDE ainda que em menor grau.
A religiosidade e o catolicismo presentes mais explicitamente em NAZARIN aparecem em simplesmente todos os outros longas da mostra. Incrível como um sujeito ateu pode ter tido tanta atração pelos símbolos da Igreja Católica.
Abaixo comento um pouco sobre cada filme apresentado nesses seis dias.
A PROPÓSITO DE BUÑUEL
Uma excelente forma de iniciar a mostra foi trazer esse documentário comemorativo do centenário do mestre. De acordo com um senhor presente na sessão, essa foi apenas a segunda vez que esse filme foi exibido no Brasil, tendo sido exibido apenas uma vez em São Paulo (ou no Rio, não lembro). A PROPÓSITO DE BUÑUEL (2000) traz depoimentos de amigos íntimos, de atores e atrizes que trabalharam com o mestre, do parceiro roteirista Jean-Claude Carrière, além do amigo padre que tinha quase a sua idade e já estava com 99 anos quando deu a entrevista (incrível a lucidez do padre). Pudemos também conferir depoimentos do próprio Buñuel sobre si mesmo, sobre seus gostos e idiossincrasias. Há coisas engraçadas no filme como o homossexualismo do parceiro de surrealismo Salvador Dali, de como Buñuel odiava Gala, a mulher de Dali, do seu lema "ateu graças a Deus". Outra coisa: no final da vida ele disse que não se importava em ter perdido a potência sexual, mas gostaria que lhe fosse concedido pulmões e fígado mais fortes pra que ele pudesse continuar a beber e fumar. Ele odiava a Igreja Católica, mas gostava muito de conversar com padres. No filme, há um clima de respeito e carinho geral pela sua memória e pela sua obra, o que é muito justo. O documentário mostra cenas de seus principais filmes. Fiquei sabendo que ele odiava o México, ainda que tenha passado mais de uma década morando e trabalhando lá. Uma verdadeira aula de cinema e arte esse filme.
OS ESQUECIDOS (Los Olvidados)
OS ESQUECIDOS (1950) foi talvez o primeiro filme a mostrar a miséria nas favelas, o que enfezou bastante a burguesia mexicana da época, que odiava terem mostrado a desigualdade social gritante do país. É um filme de mais conteúdo de crítica social do que surrealista. De surreal há o homem sem pernas, que parece ter saído de um filme de Todd Browning, e a cena de sonho de um dos protagonistas. O final é brusco e seco, recurso que funciona bem melhor como meio de catalisar a reflexão dos espectadores do que filmes de narrativa clássica. Buñuel recebeu prêmio de direção em Cannes por esse filme. Cotação: Ótimo.
O ALUCINADO (El)
Um dos mais saborosos filmes da mostra, O ALUCINADO (1952) mais parece um suspense hitchcockiano com toques de humor (foi o longa que mais fez a platéia rir). O filme conta a história de um sujeito que tem ciúmes da mulher a ponto de imaginar coisas, ter alucinações e até de tentar matá-la. Há um recurso de flashback pelo ponto de vista da esposa que é um primor de narrativa. O final do filme é bem irônico e envolve, pra variar, o sacerdócio católico. O ALUCINADO é filme pra se sair do cinema com um sorriso no rosto. Cotação: Excelente.
A ILUSÃO VIAJA DE BONDE (La Ilusion Viaja en Tranvia)
O mais fraco da mostra. Mas ainda assim é um Buñuel com cenas bem engraçadas. É provavelmente o filme mais leve do diretor. Talvez por ser declaradamente uma comédia. A ILUSÃO VIAJA DE BONDE (1953) conta a história de dois amigos que, com pena pelo fato de um bonde velho em que trabalhavam estar prestes a ser enviado para o ferro-velho, roubam o tal bonde e saem bêbados pela noite, passeando pra lá e pra cá e tendo que fingir que estavam trabalhando. O filme já vale pela cena do povo voltando do açougue e enchendo o bonde de pedaços de carne, cabeças de boi etc. Cotação: Bom.
ENSAIO DE UM CRIME (Ensayo de um Crimen)
Quando eu pensei que não ia mais ver um filme tão bom quanto O ALUCINADO nessa mostra, eis que ENSAIO DE UM CRIME (1955) vem para fazer a festa. Nesse filme elementos surrealistas estão mais à mostra do que nos anteriores, ainda que não tão explícitos quanto em O ANJO EXTERMINADOR (1962) ou nos filmes da fase francesa, mas o clima de estranheza está no ar nesse outro suspense com toques de humor. A história deve ter servido de inspiração para O FABULOSO DESTINO DE AMELIE POULIN. O protagonista é um sujeito perturbado que acha que pode matar qualquer pessoa com a força do pensamento, graças a uma caixinha de música e uma infeliz coincidência acontecida em sua infância. É um dos filmes de serial killer mais originais que eu já vi e também um dos mais sensuais do diretor, ao lado de A BELA DA TARDE (1967). Cotação: Obra-prima.
NAZARIN
NAZARIN (1958) é o nome de um padre (interpretado por Francisco Rabal) que é cristão demais para se adaptar aos padrões formais e cínicos do clero. Por conta de sua bondade e resignação, ele acaba se prejudicando e sendo expulso da ordem da Igreja e passa a viver de pedir esmolas. Li numa crítica sobre o filme que "alguns amigos de Buñuel nunca o perdoaram por ter feito de um padre o herói de seu filme, e o Vaticano chegou a outorgar a NAZARIN um diploma de honra (recusado pelo cineasta, claro)." NAZARIN não tem trilha sonora, é contado secamente, ao contrário dos filmes de gênero anteriores. Os elementos surrealistas estão mais fortes e o final me deixou com a cabeça cheia de perguntas. Cotação: Ótimo.
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