sábado, agosto 27, 2022

NÃO! NÃO OLHE! (Nope)



É difícil não ficar impressionado com a trajetória ainda curta de Jordan Peele como autor e perceber que suas escolhas para cada novo trabalho na direção têm sido tão acertadas quanto ousadas. Seu sucesso inicial com uma produção de baixo orçamento como CORRA! (2017), que rendeu até indicações ao Oscar (algo pouco comum para filmes de horror), foi o suficiente para que os holofotes se posicionassem a seu favor e o colocassem na lista não apenas dos mais importantes e melhores cineastas de horror contemporâneo (ao lado de caras como Ari Aster, Mike Flanagan, Robert Eggers, entre outros), mas como um dos grandes autores do cinema atual, não importando o gênero. 

Depois de NÓS (2019), o segundo filme que tratava de questões raciais e que conquistou muitos críticos, Peele aponta para uma nova direção com NÃO! NÃO OLHE! (2022), sua produção mais cara até o momento, e que teve uma ótima divulgação por parte da Universal. Isso fez com que uma obra totalmente nova e original conseguisse chegar aos cinemas de shopping e até mesmo às salas IMAX. O que é, aliás, essencial, já que muitas cenas foram filmadas com essa belíssima tecnologia.

Ter a oportunidade de ver o filme nos cinemas, e ainda por cima em uma sala IMAX, não tem preço. O que não deixa de bater um pouco de tristeza, sabendo que são poucas as cidades que disponham de cinemas, quanto mais de uma sala com tela gigante. Logo, futuramente, ele será aquele tipo de filme que será visto na telinha com os espectadores pensando: “puxa, esse filme deve ser fantástico de ser apreciado na tela de cinema”. E isso acaba funcionando como um ato de resistência do cinema a esse momento de crise, em que as pessoas estão se distanciando da sala escura, da telona, do som de altíssima qualidade, muito por causa dos streamings, mas também pelos novos hábitos adquiridos com a pandemia.

E NÃO! NÃO OLHE! é principalmente um filme sobre cinema, uma grande homenagem do diretor ao cinema, à sua história, às diversas maneiras de capturar imagens, seja de forma analógica, seja de forma digital; seja através de um celular, seja com câmeras IMAX (e até sem eletricidade). E há também citações à televisão, às sitcoms, com a subtrama envolvendo um chimpanzé que enlouquece em um set e mata várias pessoas. O capítulo dedicado ao chimpanzé, aliás, é tão bom que faz com que a gente imagine um futuro filme de Peele sobre algo do tipo, de como ele é hábil para trazer o horror. Mesmo o horror mais convencional, já tantas vezes utilizado ao longo de mais de 100 anos de cinema. Mas não: ele prefere contar uma história com uma originalidade incrível.

O olhar para o céu de NÃO! NÃO OLHE! é tão mágico que é preciso uma janela gigante para que o filme possa ser apreciado em sua plenitude. Daí a lembrança que a obra traz eventualmente de westerns, como os de John Ford, especialmente para a apreciação do céu e dos grandes espaços abertos. Mas esse espaço aberto pode ser tão aterrador quanto um espaço fechado, o que gera claustrofobia. Lembrei-me recentemente de O ATALHO, de Kelly Reichardt, um western com tintas de suspense e mistério, que trata desse tipo de sensação. Mas Peele vai além do realismo e também me fez lembrar de A AMEAÇA QUE VEIO DO ESPAÇO, de Jack Arnold, seja pelo tema do extraterrestre, seja por esses espaços abertos.

Gosto de como o diretor estende o mistério e no final ainda não dá respostas simples para o espectador. Ele é talvez o que o Scorsese chama de cineasta contrabandista, que leva a alta arte para as salas mais comerciais. Por mais que fiquem pouco claras as alegorias, o filme funciona como suspense e mistério independente do que possa querer significar. E isso faz toda a diferença quando se tenta vendê-lo para um público amplo, como é a intenção do cineasta.

A mudança de Peele para o horror de ficção científica é também uma prova de seu amor pelo subgênero e pelas histórias fantásticas de séries como ALÉM DA IMAGINAÇÃO – tanto que ele chegou a criar uma nova para a série em 2019-2020. Sua passagem pela televisão também rendeu a série LOVECRAFT COUNTRY (2020). Porém, em nenhuma dessas séries ele botou a mão na massa como diretor. Sua carreira na direção, portanto, segue invicta com seus três celebrados longas.

É possível pensar alguns simbolismos de NÃO! NÃO OLHE! como provocações de Peele com a indústria cinematográfica. O que temos são personagens negros que se apresentam como caubóis, o que não deixa de ser pouco usual na trajetória do gênero. E há também a questão de que o primeiro filminho criado foi o de um jóquei negro em cima de um cavalo, sendo que se sabe o nome do diretor, mas não daquele homem negro. Além do mais, o fato de o que parece ser um disco voador no começo se apresentar como um chapéu também pode chamar a atenção para a ameaça proveniente dos homens brancos que invadiram o território americano e impuseram sua cultura. Essa criatura no céu suga todos aqueles que parecem ser uma ameaça. E quer algo mais ameaçador do que um grupo de jovens negros com música de altíssima qualidade se destacando na indústria cultural?

O filme guarda tantos detalhes e riquezas que ainda será muito falado e analisado por muitos anos. Enquanto isso, podemos ficar lembrando do prazer e do maravilhamento que é olhar para o céu daquela telona e ainda por cima termos a sorte de ver as ótimas interpretações do trio Daniel Kaluuya, Keke Palmer e Brandon Perea, além da ótima participação de Steven Yeun (até então não tinha sequer citado os atores). Mais uma indicação que se trata de um filme de autor, acima de tudo?

+ DOIS FILMES

TREM-BALA (Bullet Train)

É curioso ver os efeitos de TREM-BALA (2022) no espectador (no caso, em mim). Ao mesmo tempo que achei divertido e inteligente (o inteligente vem do livro original japonês, imagino eu), é também vazio de sentimento. Por mais que alguém vá lembrar de Tarantino e ver como referência, o diretor de KILL BILL sabia como fazer com que nos importássemos com os personagens. Aqui todos os passageiros do trem são partes de uma engrenagem bem desenvolvida, mas pouco importa quem morre na história - inclusive o personagem de Brad Pitt, que, por causa do ator, é o mais carismático do time. David Leitch, que já foi dublê e teve papel decisivo no primeiro John Wick (2014), tem uma mão forte nas cenas de ação e alguns momentos têm uma riqueza visual impressionante, como a cena em que o personagem de Aaron Taylor-Johnson pula para alcançar o trem-bala em movimento. Há outras cenas bem espetaculosas que causam diversão e geram um boa impressão, ainda que isso vá ser esquecido rapidamente, ao final da sessão. No mais, a fotografia cheia de nitidez se destaca, principalmente em uma sala IMAX.

ELVIS

Por sorte, e também pelo estilo de Baz Luhrman, ELVIS (2022) é uma cinebiografia que se aproxima mais de filmes como THE DOORS e A FERA DO ROCK do que de BOHEMIAN RHAPSODY e RAY. Ou seja, há algo de diferente na forma como a história é contada. Pelo menos no primeiro terço. Depois disso, o filme vai ficando um pouco mais convencional, mas sem nunca deixar de ser interessante. Ainda assim, há coisas que incomodam, como a narração do Tom Hanks, que é o grande vilão do filme, o empresário fdp, mas que também tem seus momentos de estado ridículo, como nas cenas do especial de natal. No mais, ELVIS é um filme muito devedor de sua montagem, mas também da caracterização humanizada do jovem Austin Butler, por mais estranho que pareçam os efeitos visuais em seu rosto. Algumas cenas de arrepiar: "Trouble", que é o momento que vemos o potencial de Elvis para ser muito mais do que foi; o retorno no fim dos anos 1960, depois de amargar um esquecimento da mídia com uma carreira de ator não muito bem-sucedida; e a fase Las Vegas (é possível achar no Youtube a performance dele de "Suspicious Minds"). Gosto muito também de quando o herói se aproxima dos artistas pretos de Memphis, de sua amizade com B.B. King, da aparição mágica de Little Richard. A tragédia que é o seu destino final, ainda por cima, é mais emocionante do que eu esperava. Belo filme de Luhrmann para quem gosta de Luhrmann. E de quebra ainda pode emocionar os fãs do Elvis.

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