
Acordei mais apaixonado por OESTE OUTRA VEZ (2024). O filme de Erico Rassi se agiganta cada vez mais à medida que pensamos nele. E qual não é minha surpresa quando olho para as lembranças do Facebook e vejo que há três anos eu havia terminado de ler Homens sem Mulheres, excelente livro de contos de Haruki Murakami, que comprei por causa de DRIVE MY CAR, mais um filme que adapta contos do escritor japonês.
Podemos dizer que o faroeste moderno de Rassi é uma nova visão de um mundo sem mulheres. Melhor ainda: de um mundo sem o feminino, uma vez que é o feminino em nós que é responsável pela sensibilidade, pela delicadeza e pela inteligência emocional e a capacidade de comunicar os sentimentos, de saber minimamente o que fazer com as emoções, em vez de ir a um bar e olhar para um copo de cachaça, amargando sua dor de corno ou de abandono, enquanto escuta uma canção do Nelson Ned ou outras do cancioneiro popular e que abordam a dor da separação.
OESTE OUTRA VEZ é o segundo filme de Rassi para o cinema, sendo que o primeiro, COMEBACK – UM MATADOR NUNCA SE APOSENTA (2016), lançado já há um bom tempo, um intervalo de tempo infelizmente maior do que gostaríamos, é também uma espécie de western moderno, por assim dizer. Ambos são filmes que homenageiam os faroestes americanos e que lidam com o tema da solidão de homens embrutecidos. Mas se em COMEBACK eu não havia percebido toda essa habilidade incrível do diretor, neste novo há força e sensibilidade tamanhas que se torna impossível passar batido, impossível não perceber o quanto se trata de um trabalho muito especial, além de uma obra feita por um cinéfilo. Aliás, é uma pena que seja um filme que deve ficar restrito apenas a salas alternativas e a poucas sessões. Digo uma pena porque se trata de uma obra que tem a capacidade de agradar a um público muito maior.
Na trama, Totó (Ângelo Antônio) briga com Durval (Babu Santana) pela mulher. Ele acusa Durval de ter roubado a mulher dele e acaba levando uma surra. Sem saber o que fazer, além de ligar para a mulher perguntando se ela mudou de ideia (quem está apaixonado e perde a pessoa amada passa bastante por esse período de negação, de não-aceitação), ele contrata um pistoleiro, ou pelo menos alguém que ele acredita ser um pistoleiro, um homem que trabalha carregando tralhas em um carro de lixo, vivido por Rodger Rogério, para matar Durval. A opção de Totó é partir para a violência extrema, ainda que terceirizada, mas algo dá errado e ele e o velho matador acabam sendo perseguidos no meio do sertão goiano, mostrado ora belo, ora sujo, empoeirado e feio.
OESTE OUTRA VEZ foi o grande vencedor da última edição do Festival de Gramado, ganhando três kikitos nas categorias de melhor filme, melhor fotografia (André Carvalheira, que trabalhou com Rassi em seu primeiro longa) e melhor ator coadjuvante para o nosso querido Rodger Rogério, grande cantor cearense que já faz algum tempo resolveu se enveredar também na carreira de ator. E deu muito certo. Que ator! Que presença de cena! E que personagem Rassi construiu para ele!
OESTE OUTRA VEZ é um filme que acerta tanto em homenagear o western americano quanto em retratar muito bem a solidão do homem num registro que une tanto a melancolia quanto o humor, além de o cineasta optar por fugir frequentemente das convenções do gênero ou do que se esperaria na narrativa. A escolha do diretor e roteirista Erico Rassi em praticamente não mostrar mulheres em cena intensifica a solidão dos personagens. Em algum momento, inclusive, me fez lembrar o incrível PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff.
Vendo a entrevista do diretor a Isabela Boskov, soube que Racci até tinha filmado cenas com a mulher que aparece no prólogo, mas que acabou cortando por não saber lidar com ela, sem que ela se tornasse uma personagem bidimensional. Resultado: acabou acertando em cheio com a escolha de cortar as cenas e de tornar a sua ausência uma espécie de ausência presente.
Há uma cena em especial com Antônio Pitanga que quase me arrancou lágrimas – o veterano ator interpreta um homem velho que vive num local muito afastado do interior, numa casinha de madeira sem um prato para comer, mas com um estoque considerável de cachaça. Já o personagem de Rodger Rogério é fascinante, tanto como alguém que almeja a posição de capanga, quanto como uma pessoa que não teve amor de verdade na vida.
OESTE OUTRA VEZ tem o seu próprio tempo, o seu respiro, e nem por isso deixa de ser eletrizante e de ter também um senso de humor muito próprio. Então, ao mesmo tempo que nos solidarizamos com os personagens, também rimos de certos atos, do ridículo de suas ações. Sem falar nas surpreendentes cenas de ação e tiroteio. E do arrepio que é sair do cinema ao som de um poderoso clássico da música popular.
Um dos melhores filmes brasileiros dos últimos dez anos, certamente. Vou querer ver de novo, até porque a cópia exibida estava com falha e ainda rolou em "letterbox". Ou seja, perdeu-se um pouco a glória do scope em toda sua plenitude. Um filme como esse merece o melhor tratamento possível. E também o carinho e a atenção do público.
+ DOIS FILMES
O AUTO DA COMPADECIDA 2
O começo de O AUTO DA COMPADECIDA 2 (2024) já denuncia certa estranheza, pela proposta de Guel Arraes, agora dividindo a direção com Flávia Lacerda, de usar uma direção de arte mais de estúdio, mais artificial na apresentação das casas, dos carros e até da vegetação. É como se fosse uma espécie de volta às origens dos personagens de Ariano Suassuna, já que eles nasceram para o teatro. Eu mesmo tive a sorte de ver na década de 1990, no Teatro do IBEU, uma montagem da peça e fiquei muito impressionado, especialmente com a construção do cenário do pós-morte. Com o grande sucesso da minissérie de 1999 que depois virou filme para cinema em 2000 e com uma inexistência de uma história escrita por Suassuna, ficou o temor de se mexer em coisa que não se devia. Mas acredito que Arraes e os outros roteiristas souberam captar a essência dos personagens e trazer coisas muito interessantes e novas, como a personagem de Fabíula Nascimento, filha do coronel vivido por Humberto Martins, e também Luiz Miranda. Na trama, João Grilo (Matheus Nachtergaele) retorna a sua cidade depois de vinte anos distante e encontra seu amigo Chicó (Selton Mello) vivendo de uma mitologia que ele criou de sua morte e ressurreição. O filme também faz uma boa crítica ao sistema político corrupto, sem que pareça um filme cabeçudo. Na verdade, a intenção deste trabalho é mesmo conquistar pessoas de todas as idades - na sessão em que estivemos, lotada, havia crianças rindo com frequência das presepadas dos personagens. Muito bom também o retorno de Virginia Cavendish, a Dona Rosinha, que havia se casado com o Chicó no primeiro filme e que ressurge com um aceno ao feminismo. Senti que faltou ao filme um pouco de respiro, já que os diálogos rápidos praticamente não dão trégua. Além do mais, talvez tenha faltado uma ideia melhor por parte dos roteiristas para repetir a ida de João Grilo ao pós-morte. Do jeito que ficou, é um mais do mesmo com algumas mexidas nos cenários, que ficaram ainda mais despojados (mais teatrais, nesse sentido). De todo modo, foi uma alegria ver esse retorno do grande público aos filmes brasileiros. Bom demais também perceber que a química entre os dois protagonistas continua muito boa.
UM MUNDO MISTERIOSO (Un Mundo Misterioso)
O nome de Rodrigo Moreno jamais estaria no meu radar se não fosse a grata surpresa de ver no cinema o excelente OS DELIQUENTES (2023). Eis que a Mubi traz dois outros filmes do realizador argentino em seu cardápio e um deles é este UM MUNDO MISTERIOSO (2011), bem mais modesto que seu mais recente trabalho. O protagonista é o mesmo Esteban Bigliardi de seu filme mais famoso, um ator de rosto tão familiar quanto bobo, e por isso perfeito para o papel do sujeito que leva um pé na bunda da namorada e fica à deriva pelo mundo, sem saber direito o que fazer. Certo dia, ela diz que precisa de um tempo. De quanto será esse tempo, ela não sabe dizer, mas ele é logo convidado a ir embora e se instala em um hotel humilde e barato. Um dos grandes baratos do filme está no quanto Moreno valoriza os "tempos mortos", que aqui não são tão estendidos quanto em OS DELIQUENTES, mas se percebe muito bem, especialmente nas cenas do protagonista com um carro velho, principalmente mais perto do final, na oficina. Essa valorização de não ter que dizer nada supostamente importante ou de não ter que ir a lugar nenhum é falado verbalmente por um dos coadjuvantes numa livraria. Não é novidade um diretor sair da linha de uma narrativa clássica, mas de vez em quando isso precisa ser enfatizado. Por mais que todos nós amemos boas histórias, alguém precisa destacar que o cinema tem regras próprias e liberdades são bem-vindas.