quarta-feira, maio 08, 2024

LOVE LIES BLEEDING – O AMOR SANGRA (Love Lies Bleeding)



Para uma semana que se pretendia normal, acabo não indo trabalhar nesta quarta-feira por perder a hora. Ontem cheguei tão exausto, que o desgaste do dia  provocou um cansaço enorme o bastante para que eu não acordasse nem com o som do despertador. Deve ser ainda efeito das enxurradas de viroses que tive no mês de abril e das crises alérgicas mais intensas e que ainda seguem incomodando. Odeio quando isso acontece, até porque morro de vergonha em dar essa notícia (tarde demais) aos gestores da escola e em procurar explicar o ocorrido, embora saiba que é uma questão de saúde, sim.

Aproveito esta manhã um tanto tensa e tento escrever um pouco sobre um dos filmes que mais ficou em minha memória afetiva nos últimos dias, o segundo longa-metragem de Rose Glass, LOVE LIES BLEEDING – O AMOR SANGRA (2024), que tem causado uma repercussão boa no circuito alternativo – eu vejo este filme como um claro exemplar de obra que poderia se sair bem também no circuitão, mas infelizmente esse tipo de produção que saia um pouco mais da casinha tem cada vez menos espaço no circuito de shopping. Estive conversando sobre o filme com o meu amigo personal trainer, que não tem hábito de ir a sessões mais arthouse, e ele achou interessante as cenas que descrevi, pelo caráter fantástico e singular. Inclusive, perguntei a ele sobre os efeitos de muitas injeções de anabolizantes no corpo. 

O fato de a diretora Rose Glass vir do terror faz toda a diferença na hora de construir esta história de amor cheia de sangue e violência (e body horror) e que opera numa chave próxima da comicidade, embora esses elementos cômicos também possam ser vistos com seriedade, pois funcionam como representações dos sentimentos das personagens femininas, como é o caso da última cena, do agigantamento.

O filme já me ganhou nas primeiras imagens, com a fotografia em cores vivas e estouradas numa tela scope, remetendo às fitas mais baratas dos anos 1980 – inclusive, até achei que o filme havia sido filmado em película, mas foi em digital mesmo, mas com um tratamento que deixa as cores e os tons mais quentes. Além do mais, como a história se passa nessa década, e muito dela dentro de uma academia de musculação, há uma valorização dos corpos vestidos no tipo de roupa mais curta da época.

O filme não é sutil nem quer ser. Assim que começa, o olhar de tesão de Kristen Stewart por Katy O'Brien é evidente, assim como é evidente o que acontecerá entre as duas, pelo menos do ponto de vista do romance. Mas surpresas acontecem e, por causa de uma situação de violência doméstica, a história delas tomará novos rumos. O filme faz referência à série O INCRÍVEL HULK (aquela com o Lou Ferrigno) e traz uma atuação ótima de Ed Harris, como um líder do tráfico de armas que tem a polícia da cidadezinha nas mãos. Pode não ser a perfeição que queríamos que fosse, mas é uma obra singular. E só por isso merece ser exaltada. (Aliás, sobre a Kristen Stewart, que currículo de respeito que ela está construindo, hein!)

Também vale destacar o fato de termos uma cineasta mulher brincando com os padrões e clichês dos filmes de gênero e virando isso do avesso. Aqui vemos mulheres que representam a força bruta e que agem através da ação para a dinâmica da trama. Os homens seguem sendo figuras tóxicas, mas não há nenhum que represente um herói ou salvador ou algo do tipo. Essa apropriação feminina de filmes de gênero é um fenômeno que merece ser estudado com atenção.

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MALÍCIA (Malice)

É ao mesmo triste e curioso como a década de 1990 foi a que pior fez uso da tradição do filme noir. E não me refiro, claro, à obra-prima INSTINTO SELVAGEM, de Paul Verhoeven, ou a um outro exemplar bem-sucedido. Aliás, o filme de Verhoeven acabou por fazer nascer um monte de thrillers eróticos baratos, alguns lançados direto em vídeo, e outros que eram bem a cara do Supercine. MALÍCIA (1993) não é dos mais baratos, do ponto de vista do orçamento. Tem até gente que virou estrela em papel mínimo (Gwyneth Paltrow) e outras estrelas do passado (Anne Bancroft, George C. Scott) fazendo bons papéis pequenos. Mas o filme é mesmo de Nicole Kidman, que na época estava decolando com sua bela pele pálida e seus olhos azuis. A trama é uma grande bagunça, envolvendo uma mulher casada (Kidman) que está supostamente tentando uma gravidez de risco. Ela vive com um professor (Bill Pullman) e o casal acaba conhecendo o cirurgião mulherengo vivido por Alec Baldwin (na verdade, ex-colega de escola de Pullman). Enquanto isso, rola uma subtrama de um assassino e estuprador, talvez para tirar a atenção da trama principal, ou talvez tenha sido resquício de algo que foi deixado na sala de montagem. O diretor Harold Becker vinha do ótimo VÍTIMAS DE UMA PAIXÃO (1989) e é lamentável que tenha caído tanto. Mas ao menos MALÍCIA é um filme que surpreende, que tem suas viradas de roteiro bem interessantes. Só não sabe o que fazer com elas. Gosto da música de Jerry Goldsmith, que remete às vezes à sua composição para INSTINTO SELVAGEM.

O FUGITIVO SANGUINÁRIO (Autostop Rosso Sangue)

Há uma infinidade de filmes de gênero italianos ainda a serem melhor conhecidos. Minha opção por este O FUGITIVO SANGUINÁRIO (1977), de Pasquale Festa Campanile, veio de um cansaço mental ocasionado por uma gripe. Ou seja, não adiantava eu pegar um filme que requeresse um pouco mais de meu intelecto. Na trama, um casal de turistas italianos (Franco Nero e a francesa Corinne Cléry) viaja pelo deserto da Califórnia levando consigo seu trailer. O erro deles é dar carona a um psicopata (David Hess) que vem colecionando assassinatos pelo caminho e transforma a vida dos dois num inferno. O filme de Campanile é cheio de crueldade e cinismo, principalmente por parte dos personagens masculinos, e de sensualidade natural por parte de Corinne, advinda do sucesso de A HISTÓRIA DE ‘O’. De uma beleza estonteante, fico admirado que essa moça não tenha sido erguida à categoria de estrela de primeira grandeza no cinema europeu. Filme visto no box Cinema Exploitation 3.

domingo, maio 05, 2024

BAIONETAS CALADAS (Fixed Bayonets!)



Quando vi BAIONETAS CALADAS (1951) e postei o textinho rápido e no calor do momento, como costumo fazer sempre, para o Facebook e para o Letterboxd, o amigo e crítico Humberto Silva destacou uma questão envolvendo uma certa reputação, a princípio, pouco favorável a Samuel Fuller, que era tido como anticomunista e, para os mais exaltados, até fascista. Humberto me falou que havia (há) um capítulo dedicado à questão Fuller e a crítica francesa no livro Cinefilia, de Antoine de Baecque, que até hoje não li por completo, pois fico pensando em ler enquanto acompanho um pouco as obras dos principais nomes da Nouvelle Vague, mas hoje sei que isso é bobagem e se for esperar ver tudo de Godard, Rivette, Rohmer, Varda etc, não vou ler o livro nunca. Logo…

De todo modo, essa menção que o Humberto fez desse capítulo em especial do livro foi maravilhosa, pois jamais pensei que Fuller teria sido de tanta importância para chegar a fazer um racha na crítica cinematográfica francesa de então. Acontece que um dos mais influentes críticos do início dos anos 1950, Georges Sadoul, era comunista e tinha um posicionamento bem radical em relação ao cinema produzido nos Estados Unidos. Segundo ele, só valia a pena ver os filmes dos chamados “dez de Hollywood”, homens de esquerda que se insurgiram contra o senador McCarthy. Sadoul chegou a chamar nomes como McCarey, Hitchcock, Hawks, Preminger, Cukor etc. de bibelôs hollywoodianos (imagina só!) e chamou Samuel Fuller, especificamente, de o McCarthy do cinema.

Quando os “jovens turcos” passaram a defender mais e mais Fuller, Sadoul ficou deveras indignado e sequer aceitou participar de uma edição especial dos Cahiers du Cinéma, já numa época em que essa nova turma, os jovens hitchcock-hawksianos, era a que estava mandando na crítica francesa (e logo mais no próprio cinema francês). E aí surgiu uma questão: essa nova crítica era de direita? A questão é que eles eram adeptos da política dos autores, de um neoformalismo, ou “fullerismo” (vejam bem: até esse termo surgiu, em homenagem à polêmica Fuller). Citando Bacque,

Ser “desengajado”, em meados dos anos 1950, isto é, preferir a forma do estilo à mensagem ideológica, as invenções da mise em scène ao teor do roteiro, os pequenos aos grandes temas, os filmes americanos às produções soviéticas ou de “Qualidade Francesa”, é ser engajado contra tudo o que constitui, em sua diversidade, a cultura de esquerda: Sartre, Les Temps Modernes, Camus, Combat, Jean Vilar e a “Action Culturelle”, Bazin, “Travail et Culture”, Esprit, Sadoul, Aragon, Les Lettres Françaises e os comunistas.”

Ou seja, os jovens foram atrevidos, e estavam mesmo dispostos a fazer uma ruptura com a crítica e o pensamento até então vigente. O capítulo tem mais de 50 páginas e há muitos detalhes das discussões entre os protagonistas, mas o mais interessante é que Samuel Fuller, enquanto isso, só continuou a fazer seus filmes.

Fuller foi um combatente de guerra. E deixa muito claro seu respeito e sua dedicação para honrar os esforços e os sacrifícios dos soldados americanos, talvez até mais que o próprio John Ford. Pelo menos, tive essa impressão nesse primeiro momento. 

Ainda rolava a Guerra da Coreia (1950-1953) quando Fuller, num mesmo ano, lançou dois filmes de natureza mais heroica sobre o conflito. Em BAIONETAS CALADAS (1951), tanto quanto em CAPACETE DE AÇO (1951), o foco está mais na sobrevivência dos homens em território hostil e estrangeiro do que em estratégias militares ou situações de violência brutal. 

No caso de BAIONETAS CALADAS, a maior parte da trama se passa numa colina congelada onde um grupo de apenas 48 homens se estabelece, boa parte das vezes dentro de uma caverna, com a missão de segurar e enganar um exército coreano, numa estratégia de guerra. Eles sabiam que provavelmente estariam ali para ser aniquilados pelo exército coreano, de modo que a maior parte dos homens, 15.000, pudesse atravessar uma ponte com tranquilidade.

Fuller mais uma vez usa tintas muito humanas para pintar esses homens. Todos são imperfeitos e todos são também muito dignos de respeito e consideração. Como se o cineasta fosse uma espécie de portador do amor, mesmo quando trata de um cenário tão embrutecedor como a guerra. E faz isso sem apelar para sentimentalismos baratos.

Falando em barato, BAIONETAS CALADAS é mais um exemplo do cinema de baixo orçamento do diretor, agora trabalhando para um grande estúdio, a 20th Century Fox, mas com custos de produção reduzidos, e filmado em apenas 20 dias. Foi o primeiro de uma acordo de sete filmes entre o realizador e o estúdio de Darryl F. Zanuck.

Visto no box O Cinema de Samuel Fuller.

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GODZILLA MINUS ONE (Gojira -1.0)

O que salta aos olhos logo que começa GODZILLA MINUS ONE (2023), de Takashi Yamazaki, é o visual. O avião sobrevoando a ilha, os tons de cores que remetem aos filmes coloridos mais antigos, a visão de um Japão que acabou de ser derrotado pela guerra mais traumatizante do país. Para o piloto de aviões que fugiu do dever de kamikaze, há também a culpa, que é agravada com a chegada do Godzilla à ilha em que ele está. Gosto de como o filme vai se aprofundando mais nos dramas dos personagens, desse rapaz e depois de uma mulher que ele conhece quando retorna a Tóquio. Mais até do que das cenas com o monstro, embora elas sejam muito bonitas de ver e também um tributo ao GODZILLA de 1956, inclusive com o modo de andar e de olhar do monstro. Não sei se o desencanto que o filme passa em relação ao governo japonês está relacionado apenas à época do pós-guerra ou se está também vinculado à atual situação política do país, mas é algo que chama a atenção. No mais, o tom de heroísmo que adotado parece destoar do que estamos acostumados a ver, parecendo também um retorno a um espírito do passado, de tempos mais inocentes, embora não exista inocência alguma depois de se atravessar uma guerra daquelas. A inocência talvez esteja simbolizada na criança que o protagonista cria como filha, representante do futuro. Uma surpresa e tanto o lançamento deste filme no Brasil. É importante que as pessoas o prestigiem, para que o cinema japonês, seja o autoral, seja o de gênero, volte a comparecer com força em nosso circuito exibidor.

GUERRA CIVIL (Civil War)

Quarto filme do cineasta inglês Alex Garland, um artista bem divisivo no gosto dos cinéfilos, mas que ganhou aqui a carta branca de comandar a produção mais cara da A24, até o momento. Para os brasileiros, GUERRA CIVIL (2024) ainda tem o atrativo de trazer Wagner Moura, como um jornalista que quer entrevistar o presidente dos Estados Unidos em Washington, quando o país atravessa uma guerra civil muito provavelmente nascida da polarização política. Senti falta de mais política no filme sendo explicitada, mas fica, de certa forma, claro o lado de Garland, principalmente na melhor cena do filme, a que mostra Jesse Plemons (não creditado) na pele de um soldado monstruoso, meio trumpista e muito xenófobo, ameaçando com uma arma os jornalistas. É uma cena de causar um mal estar imenso, mas é a mais poderosa, sem dúvida. De tirar o chapéu. Aliás, Garland tem a sorte aqui de trabalhar só com grandes atores. Kirsten Dunst está ótima como a fotógrafa de olhos mortos e fatigados, Wagner Moura como o homem que se alimenta e se alegra com a guerra, e a jovem Cailee Spaeny (PRISCILLA) como a fotógrafa iniciante que pega carona no grupo, junto com o jornalista veterano vivido por Stephen McKinley Henderson. GUERRA CIVIL é uma espécie de road movie. E como um road movie, é um filme de autodescobertas e transformações durante o processo. Acho bons os tempos de respiro, como as paradas para conversar, ou a ida a uma lojinha de roupa, mas aos poucos esses respiros vão ficando menos respiráveis, o que de certa forma é positivo para o que filme se propõe. Ainda assim, mesmo sendo um trabalho irregular em seu andamento e se mostrando um pouco hesitante em dar nomes aos bois na trama, é uma obra quase tão boa quanto MEN – FACES DO MEDO (2022), o controverso trabalho anterior do diretor.

domingo, abril 28, 2024

RIVAIS (Challengers)



Quando saí da sessão de LA CHIMERA, de Alice Rohrwacher, na quinta-feira passada, comentei com meu amigo Walker sobre o fato de não gostar muito de nenhum cineasta italiano surgido neste século. Mas acho que porque havia me esquecido de Luca Guadagnino, talvez por ele ter se tornado um cineasta internacional já faz algum tempo. Se bem que seu primeiro longa, THE PROTAGONISTS, é de 1999, mas acho que só fui saber de sua existência com 100 ESCOVADAS ANTES DE DORMIR (2005), e na época o chamariz estava mais em torno da adaptação do romance picante do que em qualquer outra coisa. De todo modo, podemos considerar Guadagnino como um diretor do século XXI, sim.

Levando em consideração o que eu pude ver até o momento de sua filmografia, vejo o cinema do diretor como de reinvenção – e talvez por isso não seja sempre abraçado com unanimidade. Foi uma reinvenção quando ele tentou fazer um remake de SUSPIRIA, de Dario Argento, em 2018 (SUSPÍRIA – A DANÇA DO MEDO); foi reinvenção quando ele contou uma história de canibais em ATÉ OS OSSOS (2022); foi reinvenção quando ele contou uma história de amor e descoberta juvenil entre dois homens em ME CHAME PELO SEU NOME (2017). Agora ele reinventa o filme de jogadores de tênis. E talvez ele tenha feito o melhor do subgênero desde LAÇOS DE SANGUE, de Ida Lupino, filme do início dos anos 1950. É importante notar que os três filmes de Guadagnino citados acima lidam com o sexo, de uma maneira ou de outra. (Ou seriam sobre sexo?)

RIVAIS mostra um diretor em pleno domínio de seu ofício, contando a história de um triângulo amoroso entre três esportistas do tênis. Ele faz uso de campo e contracampo e de câmeras chicoteando lá e cá nas disputas na quadra de modo a conferir dramaticidade à trama. Uma trama que vamos conhecendo no engenhoso vai-e-vem temporal, nos passeios entre passado e presente. Há também uso de efeitos digitais muito interessantes nas cenas de jogos. 

A primeira viagem ao passado é muito empolgante, quando a dupla de jovens jogadores de tênis vividos por Josh O'Connon (que está em LA CHIMERA também) e Mike Faist se mostram, ambos, muito interessados em Zendaya, uma jovem esportista cheia de autoconfiança e com um futuro brilhante pela frente. Para eles, ela é uma das mulheres mais sensuais que já viram. E por isso o interesse dos dois por ela parece mais do que uma disputa, parece um jogo em que a rivalidade de ambos também se apresenta como uma espécie de jogo erótico sutil. Gosto do jeito mais cafajeste de O’Connor, mas uma de minhas cenas favoritas de intimidade entre o trisal é uma bem melancólica, envolvendo Faist e Zendaya, na véspera do jogo.

A cena dos três juntos no mesmo quarto já ganhou seu lugar entre as mais memoráveis do ano. É dessas cenas de deixar sorrisos em salas inteiras de cinema mundo afora. Adoro as perguntas que a personagem feminina faz a eles, sobre suas intimidades, para logo em seguida dar a entender que o sonho de os dois transarem com ela ao mesmo tempo pode não estar tão distante assim. É bom ver que o cinema contemporâneo ainda tem espaço para cenas quentes e provocantes. Imagino que, para as novas gerações, uma cena como essa até ganhe certo ar de novidade e excitação. E há, claramente, cenas com maior ou menor apelo homoerótico. Inclusive, muito do sucesso de bilheteria do filme está vindo de sua ligação com as plateias LGBTQI. 

Zendaya, como uma das produtoras do filme, sabe muito bem o que está fazendo com sua carreira ao trazer tanto fortaleza quanto sensualidade para seus papéis, saindo, inclusive, do padrão físico então adotado em Hollywood. Além de tudo, a jovem atriz se confirma como uma das mais importantes do momento, ao estrelar justamente dois dos mais interessantes filmes deste início de ano  – o anterior é DUNA – PARTE DOIS, de Dennis Villeneuve. Essa menina vai longe.

Ah, e a trilha é ótima e de autoria da dupla Trent Reznor e Atticus Ross, tradicionais colaboradores dos filmes de David Fincher.

+ DOIS FILMES

GARRA DE FERRO (The Iron Claw)

Certos filmes baseados em histórias reais ganham muito mais quando não sabemos absolutamente nada a respeito. E é o caso de GARRA DE FERRO (2023), de Sean Durkin, que nos leva ao mundo da luta livre no Texas, esporte brega, extravagante e muitas vezes cômico, mas que pode trazer situações dramáticas incríveis no cinema (vide O LUTADOR, de Darren Arronofsky). Aqui temos a história de uma família de lutadores de wrestling, irmãos que são encorajados pelo pai, lendário lutador no seu tempo, a ingressar no meio. Zac Efron está bem diferente como o irmão mais velho que sente a necessidade e a vontade de estar com os mais novos. Trata-se de um personagem que vai crescendo ao longo do filme, à medida que sua posição de protagonista vai se tornando cada vez maior. As surpresas da narrativa, no que se refere à tal maldição da família, ajudam a trazer um tom cada vez mais sombrio a uma história que parece a princípio apenas curiosa. Num filme cheio de testosterona, duas personagens femininas se destacam de diferentes maneiras. A matriarca, vivida por Maura Tierney, é uma espécie de mãe que aceita a filosofia de vida do marido (Holy McCallany), enquanto Lily James é a esposa carinhosa que auxilia na transformação do marido num homem mais confiante. Não à toa, o destino do personagem de Efron é diferente dos demais irmãos. O filme também tem o mérito de nunca subestimar a inteligência da audiência, como na cena da moto, e ainda faz uso do elemento surpresa a ponto de causar espanto e tristeza. Desde já, um dos melhores lançamentos da safra recente.

FERRARI

A última vez que havia visto um Michael Mann no cinema foi com INIMIGOS PÚBLICOS (2009), um belo e subestimado filme de gângster. Depois veio o fracasso de HACKER (2015), que vi na telinha, e acho que nem chegou aos cinemas brasileiros. O retorno com esta biografia de Enzo Ferrari (vivido por Adam Driver), o então dono da fábrica de automóveis luxuosos e principalmente de corrida, foca num momento bastante conturbado de sua vida, com a leve pressão da amante doce (Shailene Woodley), o olhar de insatisfação e ira da esposa em luto (Penélope Cruz), e um fato que iria modificar sua vida, mostrado perto do final da narrativa. Usando tons mais soturnos para contar essa história, o cineasta valoriza os espaços em que os personagens se colocam pela tela, e faz uma obra um tanto fria e prejudicada pelo sotaque italiano. Duvido que se FERRARI (2023) fosse um filme que se passasse na França colocassem o povo falando inglês com sotaque francês; ou se fosse na Alemanha etc. Assim, demorei metade do filme para me acostumar com esse “detalhe”, que já não deu certo com CASA GUCCI, e que poderia muito bem ser completamente limado. Há algo nos rostos de alguns personagens que é curioso: passam como fantasmas ao longo da narrativa, casos de Sarah Gadon e do próprio Gabreil Leone. É como se a câmera quisesse evitá-los. Não sei o quanto isso é proposital (teria associação com a culpa do protagonista?), mas o resultado não deixa de ser curioso e interessante. Na verdade, estava incomodado com a projeção que ficou tremida durante metade do filme, e que foi regularizada (acho que com o desligamento do ar condicionado) na metade seguinte. Curiosamente, foi a mesma sala (Vip) onde vi, com os olhos brilhando de alegria, POBRES CRIATURAS, de Yorgos Lanthimos, em toda sua glória e resplandecência.

sábado, abril 27, 2024

MUSIC (Musik)



Na quarta-feira, consegui uma folguinha do trabalho e aproveitei para ver a última sessão disponível de MUSIC (2023), de Angela Schanelec. Não conhecia o cinema da diretora, mas o comentário que havia ouvido dos amigos é que se tratava de um filme quase incompreensível. Logo, já cheguei no cinema com a disposição de encarar o desafio naquele horário “de herdeiro” (13h40, um horário que fez com que eu tivesse que me organizar em almoçar fora e procurar um bom e caprichado expresso fora do espaço do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura). Além do mais, como ainda sigo com uma crise alérgica e resquícios de uma virose, fui buscando alternativas para estar com a mente e o corpo dispostos o bastante para aquela sessão. Felizmente, deu certo. 

Algo que já chama a atenção em MUSIC (2023), de Angela Schanelec, é o quanto ele instiga em sua narração, que com frequência nos faz indagar o que está acontecendo, por que tal ação foi mostrada depois da anterior, qual o sentido dos pés feridos, entre outras particularidades e preferências formais, que remetem muitas vezes ao cinema de Bresson (as mãos, o extracampo, o estilo de dramaturgia). Para quem teve o início de sua cinefilia nutrida com doses de Lynch e Buñuel e depois se apaixonou por Bresson, esse tipo de sensação de não estar entendo tudo e, mesmo assim, estar curtindo muito, não é exatamente novidade.

Aos poucos, no meio de tantas elipses, uma história principal vai se mostrando um pouco mais clara, principalmente perto da metade do filme, quando uma moça que trabalha num presídio se envolve afetivamente com um jovem presidiário, o jovem que é preso por matar acidentalmente outro, durante férias com um grupo de jovens no que parece ser a Grécia. Sobre os tais pés feridos, é curioso que isso já se mostra presente na primeira vez que somos apresentados a Jon, o protagonista. A primeira coisa que vemos dele são seus pés feridos e sujos, descendo de um carro, aparentemente dos anos 1990. A juventude em flor é apresentada em cenas em que os jovens do grupo tomam banho nus ou seminus num lago. Logo à frente, quando Jon está preso, percebemos que os presos usam tamancos de madeira, tão desconfortáveis a ponto de todos ficarem, consequentemente, com os pés feridos.

A preocupação com o enredo é menor, ainda que ela exista sim (não à toa o filme ganhou o prêmio de melhor roteiro em Berlim-2023). Livremente baseado em Édipo Rei, de Sófocles, o filme deve ganhar bastante com uma revisão, em termos de compreensão da trama, mas, em termos de apreciação das imagens e da ambientação, a primeira vez é o suficiente para nos encantarmos com muito do que Schanelec traz.

Gosto de como a diretora drena a carga dramática dos atores/personagens, mesmo nos momentos mais trágicos, e faz com que essa dramaticidade mais excessiva permita se apresentar de forma mais contundente nas cenas musicais, que são poucas, mas muito expressivas. Aliás, para um filme chamado MUSIC, o que temos bastante é silêncio. Até os diálogos são reduzidos ao máximo, num trabalho de subtração tanto de dramaticidade quanto de enredo. É o tipo de filme em que saímos do cinema sem ter entendido muito, mas muito satisfeitos com a experiência, um filme que nos convida a ler nas entrelinhas, a procurar entendê-lo a partir de imagens que às vezes funcionam como símbolos. É uma obra que funciona como um jogo de compreensão, e que, por isso, é tão desafiadora quanto recompensadora.

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LA CHIMERA

Tendo visto apenas dois longas e um curta-metragem da carreira já generosa de Alice Rohrwacher, percebo que ainda tenho dificuldade de me aproximar com vontade e carinho de sua poética, por mais que perceba sua assinatura de cara - e vejo isso como um ponto positivo para um autor. A fotografia granulada, vindo de película 16mm e 35mm, chama atenção mais uma vez para as imagens e as cores nesta história estranha sobre um homem que tem o dom de encontrar artefatos enterrados na região onde mora, outrora lar dos etruscos. Em LA CHIMERA (2023), o inglês Josh O'Conner é o protagonista, homem que está de volta a sua terra, depois de um tempo distante. Aos poucos vamos sabendo um pouco mais sobre ele e sobre as pessoas que o circundam e o circundavam. O que eu sinto falta no filme de Rohrwacher pode até ser bobagem, mas talvez seja algo de mais atraente em seus personagens. Também fico sentindo falta de me encantar com os elementos fantásticos trazidos para o filme, embora veja sim o final como bonito e poético. Carol Duarte está bem como a empregada da personagem de Isabella Rossellini, e que esconde da patroa duas crianças pequenas no próprio casarão onde vive. Ou seja, o filme com frequência põe situações estranhas dentro de uma narrativa que pende, aparentemente, para o realismo. Imagino que vá gostar mais do filme numa revisão, ou quando me sentir um pouco mais confortável com seu estilo.

20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS (20.000 Especies de Abejas)

Eu tenho aquele velho e ridículo problema (que não sei ainda explicar) de ter sono com filmes protagonizados por crianças. Mas acho que, no caso deste, estar gripado e o horário da tardinha podem ter contribuído. Ainda assim, fiquei muito interessado no estilo de narrativa de 20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS (2023), de Estibaliz Urresola Solaguren, e de ir descobrindo aos poucos as angústias de suas personagens, principalmente da criança e de sua mãe. Ela, por ficar confusa em relação à sua sexualidade, de não querer mais aceitar ser um menino, aos oito anos de idade, e a mãe por se sentir surpresa com esse momento de descoberta da garota durante as férias de verão da família, numa aldeia ligada à apicultura. A diretora opta muitas vezes (ou sempre?) pela câmera na mão, quase como se estivesse espiando as personagens. O filme não é do tipo que leva o espectador pelo braço: faz com que ele vá descobrindo o que está acontecendo aos poucos. A menina, Sofía Otero, está ótima e muito natural em seu papel. Seu prêmio em Berlim parece merecido.

sábado, abril 13, 2024

A PRIMEIRA PROFECIA (The First Omen)



Na década de 1970, havia dois movimentos distintos ocorrendo e ambos repercutiam na cultura, nas artes, seja no cinema, seja na música. Ao mesmo tempo em que havia uma espécie de pânico em relação ao satanismo, havia também uma certa simpatia, principalmente por parte dos jovens dispostos a enfrentar as instituições de autoridade, e a igreja era uma dessas instituições. Uma simpatia que nascia da rebeldia. Por isso, quando os Rolling Stones tocavam “Sympathy for the Devil” ou Raul Seixas cantava “Rock do Diabo”, eles estavam mais querendo trazer choque para a sociedade mais tradicional da época do que exatamente convidar adeptos para cultos de invocação ao demônio.

Enquanto isso, o cinema refletia esse medo do satanimo em diversos títulos, como OS DEMÔNIOS, de Ken Russell, O EXORCISTA, de William Friedkin, SATÂNICO PANDEMONIUM, de Gilberto Martínez Solares, A SENTINELA DOS MALDITOS, de Michael Winner, UMA FILHA PARA O DIABO, de Peter Sykes e Don Sharp, entre outros tantos. E há A PROFECIA (1976), de Richard Donner, um dos grandes clássicos do gênero e que lida com o tema da chegada do Anticristo. De certa forma, pelo que me lembro, não chega a ser tão transgressor quanto O BEBÊ DE ROSEMARY, de Roman Polanski, ou O EXORCISTA, feito por cineastas mais simpatizantes da ambiguidade. Assim, se enquadraria bem mais num filme de terror mais católico.

A PROFECIA, depois de ganhar algumas sequências que, dizem, não são boas, recebeu uma refilmagem em 2006, dirigida por John Moore, que resultou numa obra bem esquecível. E aí, quando menos esperávamos, e dirigido por uma cineasta estreante, a jovem Arkasha Stevenson, no meio de vários filmes de horror ruins no circuito mais mainstream, chega o ótimo A PRIMEIRA PROFECIA (2024), uma prequel do filme de Donner. E que grata surpresa.

O filme já encanta de cara, com sua beleza plástica, seu cuidado com a reconstituição de época (anos 1970), inclusive com uma fotografia que emula a dessa década. Até o andamento da trama é mais lento, o que pode causar alguma estranheza em certos espectadores. O brilhante filme de Stevenson anda com suas próprias pernas, e até pode ter uma continuação, já que sua protagonista é encantadora e a trama pode seguir em paralelo à trama onde começa o filme de 1976. Além do mais, há todo um cuidado em nos levar junto a ela pelas ruas de Roma, e a conhecer até boates da cidade. 

Na história, Nell Tiger Free (da ótima série SERVANT), é uma jovem americana que começa a se preparar para a vida de freira em Roma, quando percebe que há uma ala demoníaca dentro daqueles muros. A atriz, mais uma vez brilhante, está tão bem no papel que o filme parece não querer se desgrudar dela. Não sou tão apreciador de filmes sobre profecias de anticristo (acho datados, muito anos 70), mas o grande mérito do filme de Stevenson é que a sua maior preocupação é na construção da atmosfera e em cenas de impacto visual. E isso a diretora consegue fazer unindo elegância e uma sabedoria em lidar com a iconografia católica em prol do horror.

Há uma cena, inclusive, que me fez lembrar a dobradinha MADRE JOANA DOS ANJOS e OS DEMÔNIOS, o que eu encaro como um grande elogio, e há outra que faz lembrar POSSESSÃO, de Andrzej Zulawski, quando a protagonista começa a ver coisas e a gritar enlouquecida na rua. O interessante também é que, por mais que o filme seja um pouco mais longo do que o habitual para o gênero, não há cenas desnecessárias. Mesmo os jump scares gratuitos (são poucos) não incomodam. Além do mais, o primeiro jump scare é apavorante de fato e impõe uma relação de respeito entre filme e espectador. E a cena do parto... poxa...incrível. 

Fico feliz em ver uma nova diretora surgindo no gênero e acredito que seu futuro será brilhante, por essa amostra incrível que é A PRIMEIRA PROFECIA. Além do mais, sendo ela uma diretora, acredito que isso contribui para que o ponto de vista feminino da protagonista (e da maioria dos personagens do filme), incluindo seus medos e traumas, seja ainda mais favorecido e valorizado. Ah, e o filme tem a Sônia Braga, muito bem, como uma freira ameaçadora. E também gosto muito da atriz que faz a noviça que mora com a personagem de Tiger Free, uma jovem espanhola lindíssima chamada María Cabellero. Acho um charme quando ela aparece vestida de freira, com maquiagem caprichada e sensual nos olhos. Ou seja, além de tudo, A PRIMEIRA PROFECIA ainda se aproveita das coisas atraentes que o ciclo dos nunsploitation trouxe.

+ DOIS FILMES

FALE COMIGO (Talk to Me)

De vez em quando algum pequeno filme de horror australiano ganha os holofotes mundiais. Creio que FALE COMIGO (2022), de Danny e Michael Philippou, teve maior repercussão que, por exemplo, WOLF CREEK – VIAGEM AO INFERNO e O BABADOOK, para citar dois títulos das últimas duas décadas. E o que me ganhou neste novo exemplar foi o quanto ele é carregado de surpresas, e também o quanto ele adentra territórios muito mais sombrios do que estamos acostumados a ver. Não se trata apenas de um filme sobre possessão envolvendo uma mão misteriosa, mas é também um filme sobre traumas, sobre inconsequência juvenil, sobre desespero e desesperança – e ainda pode ser uma alegoria sobre o uso de drogas pesadas. O filme tem uma mudança de chave para um território mais pesado em determinado momento do jogo da possessão, por assim dizer, e daí em diante as coisas só ficam mais e mais bizarras. Com o sucesso, uma continuação está a caminho. E espero que os diretores não percam a mão na sequência. Sem trocadilhos.

A BRUXA DOS MORTOS – BAGHEAD (Baghead)

Nem dá para dizer que Alberto Corredor copiou os irmãos Philippou, de FALE COMIGO, com a história de ter contato com os mortos por uma janela de tempo muito pequena. Afinal, Corredor já havia feito um curta em 2017 de nome BAGHEAD, que inspirou o longa. O resultado, A BRUXA DOS MORTOS – BAGHEAD (2023), não foi essas maravilhas todas, mas há alguns momentos muito bons. E isso acaba me deixando esperançoso para os novos trabalhos do diretor. Gosto, por exemplo, da cena em que a protagonista (Freya Allan) adentra o buraco onde fica a bruxa encapuzada. Aliás, a ideia de uma bruxa que aparece com um capuz é muito boa. Acentua o tom de terror. Também gosto bastante da conclusão, principalmente pelo aspecto plástico. Uma pena que o filme já começa com um prólogo desanimador, mas gosto dos problemas que surgem à medida que a jovem herdeira fica mais tempo na velha casa. A jovem Freya Allan parece ter futuro em Hollywood: em breve a veremos em PLANETA DOS MACACOS – O REINADO.

domingo, abril 07, 2024

PADRE PIO



Um dos dias mais reveladores e bonitos do ano para mim foi o dia em que fui com a Giselle a uma missa no Instituto Hesed, um mosteiro lindo situado num bairro afastado da cidade. Era quinta-feira da Semana Santa e eu, a princípio, ia ao cinema à tardinha e ela me fez o convite, que fez com que eu mudasse de planos. Como tinha interesse em conhecer o local e também em estar com ela, aceitei de imediato. Mas confesso que não esperava gostar tanto. 

Para mim, que não fui criado em lar católico, boa parte da imagem que eu tenho da igreja vem muito do cinema, e muitas vezes dos filmes de horror, que se apropriam do imaginário católico, tão rico visualmente, para a construção de suas histórias. E há também os grandes cineastas católicos (Hitchcock, Scorsese, Bresson, Ferrara, Rohmer, entre outros) que ajudam a enriquecer a arte cinematográfica. Então, quando vi as imagens dos santos cobertos com um pano até o desvelar na Páscoa, achei tudo incrivelmente estranho e belo, e muito parecido com os filmes de terror. Até mesmo as vestimentas das freiras me pareceram dotadas de uma beleza e de um mistério incríveis.

Aprendi que não compreender tudo faz parte da graça e meu psicanalista ficava o tempo todo procurando palavras relacionadas ao evangelho quando eu falava de minha experiência nesse dia e a palavra “graça” era uma delas. E "graça” é uma palavra que tem, sim, um significado mais religioso nas pouco mais de duas horas que passamos na celebração. Para começar, achei lindos os cânticos, todos equilibrados entre a devoção mais emotiva e a técnica de coral que demanda muito esforço para chegar à perfeição. Tive experiência em coral e por isso valorizo muito trabalhos vocais bem construídos. Meus olhos já começaram a marejar com a música, mas o melhor viria com a homilia do padre colombiano Fidel Oñoro, convidado para o evento.

E Oñoro fez o mais belo sermão sobre a última ceia que já ouvi na vida, destacando a entrega de Jesus, a covardia (humana) dos apóstolos naquele momento de perseguição e perigo, o ensino da humildade através do lavar os pés, deixando claro que os pés naquela época eram muito mais sujos e sofridos que os de hoje. Eu às vezes curvava meu corpo para mais à frente, como se quisesse absorver mais das palavras do sacerdote. E há outra coisa bonita que não costumo ver com muita frequência nas igrejas evangélicas: a pausa para o silêncio, para a oração, algo de fato sagrado e um instante em que nosso espírito se abre para Deus. No momento em que doze pessoas sobem ao altar para representar os apóstolos, ouvimos uma canção que diz “que o maior é o que sabe servir / Que se abaixa e que sabe se inclinar / Porque grande é somente o amor”. Achei o ritual, o gesto, a canção, a letra, tudo de uma beleza imensa.

No final, numa espécie de performance (entendam que é a visão de alguém mais acostumado com as artes) em que os sacerdotes e freiras levam a imagem de Jesus coberto para outro local, enquanto as luzes vão se apagando, o som das vozes dá lugar às canções entoadas, à penumbra, e no meu caso ouvia o som dos grilos também, como se tudo que presenciei e que resumi muito brevemente aqui fosse também uma experiência sensorial, ou extra-sensorial, levando em consideração que pode muito bem ter ido além da percepção dos sentidos. Quis deixar registrado esse evento aqui como forma de reverência, aproveitando o espaço que ficará pequeno para falar de PADRE PIO (2022), de Abel Ferrara.

A respeito do filme sobre o celebrado padre, não dá para dizer que Abel Ferrara é um cineasta incoerente ou que seu cinema mudou do dia para a noite. Essa vontade (ou necessidade) de fazer filmes menores – agora, principalmente, morando na Itália – e sem se preocupar com bilheterias se manifesta mais uma vez em PADRE PIO, sobre um personagem que já foi objeto de estudo em seu documentário SEARCHING FOR PADRE PIO (2015), feito para a televisão, e que aqui aparece como protagonista, de certa forma.

Digo "de certa forma", pois o filme pode frustrar um pouco quem for buscar uma biografia mais comum do padre elevado a santo. Há talvez mais cenas do embate entre trabalhadores simpatizantes do comunismo e empresários e militares fascistas do que do padre. Ferrara apresenta uma espécie de batalha entre o bem e o mal, marcadamente pelas tensões políticas pós Primeira Guerra, quando a Itália sai vitoriosa, mas a vitória tem um gosto amargo ao vermos logo no início alguns homens voltando da batalha: um deles sem as pernas e feliz por continuar "sendo um homem" e o outro que trocou um olho por uma medalha. Há também a mulher que espera pelo marido, sem ter a confirmação se ele está vivo ou morto. E por isso a esperança das pessoas pobres e sofridas daquele vilarejo passa pelo comprometimento com as causas do socialismo, em alta naquele início dos anos 1920.

Enquanto isso, Padre Pio enfrenta as forças de Satanás numa batalha interior que o aflige, o maltrata, o perturba. No início, até acho que o filme apresenta algo de dúbio, se aquilo é algo de natureza espiritual ou psicológica, mas vendo o final é fácil perceber o quanto Ferrara abraça o sobrenatural. 

Apesar da irregularidade, depois do massacre no final e das últimas imagens de Padre Pio em contato com Deus/Jesus, percebemos o quanto Ferrara optou pela devoção católica de forma muito bonita. Ou seja, num mundo cheio de injustiças, crueldade e ainda longe de encontrar a paz, a mão de Jesus está ali para consolar os espíritos, especialmente de alguém que tem uma maior consciência do ataque das forças malignas, como Pio. Há duas conversas com pessoas que vêm procurar o padre: uma delas, um "homem alto" vivido por Asia Argento, é logo expulsa pelo padre, como símbolo da maldade e da tentação contra a fé, aos gritos de “Diga que Jesus é o Senhor!”. Destaco também a fotografia de Alessandro Abate (CÓPIA FIEL), que enfatiza tanto as sombras quanto a luz divina apresentada, especialmente, nas cenas em que a luz adentra a igreja.

Texto dedicado com amor e gratidão à Giselle.

+ DOIS FILMES

AS 4 FILHAS DE OLFA (Les Filles d'Olfa)

Um dos cinco indicados a melhor documentário do Oscar deste ano (perdeu para 20 DIAS EM MARIUPOL), este AS 4 FILHAS DE OLFA (2023) nem é a primeira participação da diretora Kaouther Ben Hania na academia: seu O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE (2020) havia concorrido a melhor filme internacional não faz muito tempo. Além do mais, ela já goza de certo prestígio em festivais. A ideia para a realização, eu considero um de seus maiores trunfos: chamar a própria mãe (Olfa) e suas duas filhas mais novas para representarem a si mesmas numa dramatização dos eventos que levaram ao "desaparecimento" de suas filhas mais velhas de casa. Para isso, somos convidados a conhecer uma cultura diferente e a perceber a ameaça de uma organização como o Estado Islâmico, que operava na Síria na época em que Olfa deixou a Tunísia para lá trabalhar. A Tunísia também é um país cheio de tensões entre grupos islâmicos e seculares e isso acaba por afetar também a herança de educação que Olfa traz para suas quatro filhas. O embate de gerações surge quando as filhas se apresentam mais donas do documentário do que a própria mãe, representando o futuro, uma quebra de padrões estabelecidos, que guardam os traumas e a saudade da saída das irmãs mais velhas do lar habitado basicamente por mulheres, já que os homens que por lá passaram não foram exemplos de boas figuras paternas. Desse modo, há algo de muito bonito na relação que se estabelece entre a diretora, a família (seu objeto de estudo) e as jovens atrizes contratadas para interpretarem as irmãs mais velhas. AS 4 FILHAS DE OLFA talvez só peque por se estender um pouco além da conta, prejudicando um pouco seu ritmo.

THE FIRE WITHIN – A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT

Muito provável que a forma com que vi THE FIRE WITHIN – A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT (2022) ("em fascículos") tenha atrapalhado e muito a minha apreciação. Além do mais, nas cenas de sinfonia de vulcões, com imagens tão incríveis que não parecem deste mundo, fiquei o tempo todo pensando em como seria ter a chance de ver este filme no cinema. Trata-se também de mais uma obra de Werner Herzog que traz personagens tão apaixonados quanto obcecados, como os vistos em FITZCARRALDO (1982) ou O HOMEM URSO (2005). Aqui o diretor faz uma homenagem a um casal de apaixonados/cientistas/cineastas especializados em vulcões, que morreram em seu ofício. E isso não chega a ser um spoiler: é uma informação que o diretor dá logo no início, quando mostra imagens do casal no Monte Unzen, em Nagazaki, Japão, antes de morrerem em um fluxo piroclástico. Sobre a beleza das imagens, ainda fico achando que houve alguma manipulação. Não é possível. No meio disso tudo, o diretor optou por muitas óperas alternado canções típicas de certos países visitados pelo casal de cientistas e cineastas.

domingo, março 31, 2024

SHAMPOO



Tenho muitas lacunas em se tratando de Nova Hollywood. E ultimamente tenho tido muito interesse em me aprofundar um pouco mais neste período tão interessante e rico do cinema americano. SHAMPOO (1975) é um filme que não me interessava tanto em ver, principalmente por uma nota não muito animadora da sessão “videolançamentos” da revista SET (cá estou eu falando da revista novamente). Além do mais, acho que não ia muito com a cara do Warren Beatty. Se o filme fosse visto como algo como uma obra-prima incontestável por muitos críticos, é bem possível que eu já o tivesse visto há muito tempo (ou não, quem sabe).

O que me chamou a atenção para ele agora foi a retomada da leitura de Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock’n’Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind. O filme é destacado pelo autor do livro como uma obra importante na história desse movimento/período, principalmente pelas histórias de bastidores, que envolvem Warren Beatty, o cara que fez acontecer para que o filme se materializasse, inicialmente colocando seu próprio dinheiro e depois fazendo um jogo entre diferentes estúdios (Columbia, Warner, Paramount) para dar a entender que seu projeto estava sendo muito valorizado em Hollywood, que seria um grande sucesso. Depois de conseguir o aval da Columbia, Beatty foi atrás de diretor e roteirista – ele tinha “apenas” os principais nomes do elenco, ele mesmo, Julie Christie, Goldie Hawn, Lee Grant e Jack Warden, além do diretor de fotografia Lászlo Kovacs, de SEM DESTINO e CADA UM VIVE COMO QUER. Só depois seriam contratados o roteirista Robert Towne e o diretor Hal Ashby.

Filme mais interessante do que realmente muito bom, SHAMPOO acabou ficando importante como estudo político e comportamental da sociedade americana da época. A história se passa em 1968, nas vésperas da eleição de Nixon, mas como o filme foi lançado em 1975, o tom pessimista daquele momento contamina naturalmente o humor, que é daquele tipo mais para sorrir do que para rir. Além do mais, como é característico dos filmes da Nova Hollywood do período, há um interesse maior nos personagens do que na trama.

Temos Beatty como um cabeleireiro mulherengo que tem sua namorada atual (Goldie Hawn, um encanto, e sempre trajando microvestidos), mas que segue seu instinto predatório. Em determinado momento, ele chega a transar com a amante, a filha da amante e a amante do marido da amante, vivida por Julie Christie, que já havia sido sua namorada no passado. O interessante é que o contexto político ali presente não é apresentado de maneira tão pesada ou dramática. É como se todos que ali vivem estivessem mais interessados em suas vidas particulares, em manter seus amantes e amores por perto, muito mais por carência afetiva do que por um sentimento mais nobre, por assim dizer.

Há uma cena com a personagem de Julie Christie, bêbada, em que ela fala que seu maior desejo é chupar o pau do personagem de Beatty, um comentário nada comum então nos filmes hollywoodianos. Ou seja, SHAMPOO começa um processo de maior liberdade de mostrar conversas mais explícitas entre as mulheres sobre seus desejos. Há também uma cena bem interessante, numa festa bacana, com gente que tira a roupa e usa muitas drogas ao som do rock daquele fim dos anos 1960 (toca “Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club Band” e “Lucy in the Sky with Diamonds”, dos Beatles, “Mr. Soul”, do Buffalo Springfield, “Manic Depression”, do Jim Hendrix etc.).

Outro aspecto interessante está no quanto o filme não envelhece mal para os dias de hoje, já que é mais um comentário ácido sobre a rotina de adultérios e mentiras da sociedade da época do que uma defesa do estilo galinha de ser do cabeleireiro de Beatty, que em vários momentos se apresenta como alguém perdido e cansado daquilo que construiu para si mesmo. A cena da confissão dele para a personagem de Goldie Hawn traz um pouco do incômodo que ele sente (e a dor dela), por mais que ele tenha dito antes para a personagem de Christie que era ela quem ele amava etc.

Filme visto no box O Cinema da Nova Hollywood 7, que conta, nos extras, com uma entrevista com Beatty e um ótimo bate-papo entre dois críticos de cinema sobre a produção.

+ DOIS FILMES

O MELHOR ESTÁ POR VIR (Il Sol dell'Avvenire)

Depois de dois melodramas, MIA MADRE (2015) e TRE PIANI (2021), e um documentário, SANTIAGO, ITÁLIA (2018), Nanni Moretti volta ao tom mais cômico que tanto alegrou seus fãs, embora certo amargor ainda esteja presente, como é natural da vida. Mas o tom de O MELHOR ESTÁ POR VIR (2023) é de leveza, mesmo quando há algo mais pesado presente, como uma crise conjugal e uma visão de desfecho extremamente pessimista para o cineasta vivido pelo próprio Moretti. Há vários momentos de fazer rir, e a gente percebe que nesses momentos é o próprio diretor fazendo rir de si mesmo, de sua incapacidade de se conformar com as mudanças, inclusive da forma como ele vê o cinema e a política, mas também deixando claros seu entusiasmo e sua paixão pelo cinema. O filme dentro do filme é sobre um fato ocorrido com pessoas ligadas ao Partido Comunista Italiano durante os anos 1950. Mas, nos bastidores, uma de suas atrizes teima em lhe dizer que seu filme é sobre amor, o que lhe deixa confuso. O MELHOR ESTÁ POR VIR vai ficando melhor à medida que pensamos nele. Quanto ao elenco, gosto muito de Margherita Buy, que tem feito filmes com Moretti desde pelo menos O CROCODILO (2006).

TODOS MENOS VOCÊ (Anyone But You)

Bom ver que as comédias românticas não foram de todo extintas em Hollywood. Estão sendo um pouco repensadas para os novos tempos, embora TODOS MENOS VOCÊ (2023) lembre algumas dirigidas pelos irmãos Farrelly. Trata-se também de um veículo para promover o talento de Sydney Sweeney, jovem atriz em ascensão que tem procurado alguns filmes interessantes para seu currículo e aqui parece querer seguir um pouco os passos de Cameron Diaz. O diretor Will Gluck é o mesmo de outra comédia romântica bem simpática, AMIZADE COLORIDA (2011), e aqui brinca com situações envolvendo um desentendimento de um casal que tem uma ótima química no primeiro encontro, mas que depois acabam virando meio que inimigos. Os dois precisam fingir estarem juntos no fim de semana do casamento entre uma amiga e uma familiar em comum. A lembrança que o filme traz de Muito Barulho por Nada, a peça de Shakespeare, é explícita e o formato da trama às vezes lembra essa comédia clássica, inclusive há pouco (ou nenhum) uso do telefone celular. Não sei se isso foi proposital ou apenas necessário para a trama fazer a gente se esquecer do mundo além daquela praia linda da Austrália. Gosto também de como o filme lida com gags um pouco mais apimentadas e físicas, como a cena da aranha, que explora, inclusive, a nudez de Glen Powell e eleva a classificação indicativa. TODOS MENOS VOCÊ é leve, divertido e no final até me fez lembrar HARRY E SALLY – FEITOS UM PARA O OUTRO, embora esteja anos-luz do texto brilhante de Norah Ephron. No mais, foi bom rever Rachel Griffiths, agora no papel coadjuvante da mãe da personagem de Sydney. Nos anos 2000, eu era apaixonado por Brenda, sua personagem da saudosa série A SETE PALMOS. O tempo voa.

sábado, março 30, 2024

CAPACETE DE AÇO (The Steel Helmet)



Uma dos presentes que o saudoso Carlão Reichenbach me deu foi ter me deixado muito interessado em conhecer muitos filmes e cineastas que não faziam parte da minha cultura de cinéfilo até então. Aliás, alguns nomes eu conhecia de certos títulos resenhados na revista SET, mas mesmo esses eu precisava conhecer com mais profundidade. O tempo mais livre que tive durante a pandemia me fez entrar em contato com a filmografia completa de Fritz Lang, por exemplo. Finalmente pude ficar mais íntimo de sua filmografia. Outros cineastas muito queridos por ele eram Samuel Fuller e Valerio Zurlini. O diretor italiano, que até tem uma filmografia muito menor, vou deixar para fazer uma peregrinação com mais calma depois. Agora é o momento de conhecer mais Fuller.

Que, por enquanto, ainda é um diretor que mais me intriga do que me ganha. Pelo menos por enquanto. Ainda gosto bem mais de seu primeiro filme, EU MATEI JESSES JAMES (1949), mas sigo muito interessado em entender mais seu cinema, justamente por que os poucos títulos que vi do realizador me pareceram, de certa forma, pouco palpáveis, mesmo os mais elogiados, como PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) e O BEIJO AMARGO (1964), filmes a que voltarei em breve, com mais atenção.

Em CAPACETE DE AÇO (1951), seu terceiro longa-metragem e primeiro filme de guerra, se percebe logo de cara o baixo orçamento da produção (foi filmado em apenas seis dias), já que a maior parte do filme se passa ou num lugar fechado ou numa selva, ou melhor, no Griffith Park, em Los Angeles, onde foi rodado. Engraçado que no anterior dele, O BARÃO AVENTUREIRO (1950), eu não senti essa questão do orçamento tão de cara, já que havia uma preocupação maior com a direção de arte. E como tenho pouca experiência com produções hollywoodianas mais baratas desse período, ver este Fuller foi como se estivesse vendo uma produção europeia com atores desconhecidos. E talvez esse seja um dos motivos de Godard ter o cineasta americano no coração com tanta paixão.

Uma coisa que me saltou aos olhos vendo, em intervalo de tempo menor, três filmes do realizador em sequência, está no quanto o diretor é um grande humanista. Neste drama de guerra, os homens são apenas homens, às vezes homens que precisam ver sua profissão como um meio de se ganhar dinheiro enquanto se está atirando e correndo o risco de morrer de uma bala de um inimigo que nem é na verdade um inimigo, já que naquela época, a Guerra da Coreia já era problematizada. Não foi uma guerra tão vista como uma batalha do bem contra o mal, como na Segunda Guerra Mundial. Até porque a bomba atômica fez muita gente pensar nos Estados Unidos como uma nação genocida, por mais que esse pensamento não fosse hegemônico dentro do próprio país.

Depois de se mostrar afetuoso com um covarde traidor (no primeiro filme) e com um criminoso falsificador no segundo, é muito mais fácil abraçar agora um sofrido e velho sargento que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e agora sobrevive à Guerra da Coreia, tendo que engolir o choro e ser o mais duro que se pode naquele cenário de dor e morte.

O filme começa com esse sargento se confundindo com um grupo de soldados de seu grupo que foram mortos em batalha. Ele estava vivo e amarrado e com seu característico capacete furado por uma bala. Um garotinho sul-coreano o encontra, lhe dá água e diz que agora se sente responsável por sua vida, por ter lhe salvado. Começa uma relação de amizade entre o velho e a criança naquele cenário sombrio acentuado pela fotografia em preto e branco e pelas sombras das árvores. No meio do caminho, eles são atacados por norte-coreanos disfarçados de mulheres religiosas, e também se encontram com um grupo de soldados no meio da selva. Os grupos se juntam, são alvejados pelo inimigo e depois se reúnem numa espécie de abrigo budista, com uma enorme estátua de Buda. A partir daí, a maior parte do filme se passa dentro desse lugar, onde esses homens conversam sobre a vida, suas experiências, o que querem fazer ao voltarem vivos para casa etc.

Como alguém que viveu na pele o cenário da guerra, CAPACETE DE AÇO é apenas o início de uma série de filmes em que Fuller abordaria o tema. O próximo será BAIONETAS CALADAS (1952). Depois virão ainda NO UMBRAL DA CHINA (1957), PROIBIDO! (1959), MORTOS QUE CAMINHAM (1962) e AGONIA E GLÓRIA (1980). Mas, para falar a verdade, estou mais interessado é nos seus policiais, filmes noir etc. Eu chego lá.

+ DOIS FILMES

NAPOLEÃO (Napoleon)

Quer dizer que Ridley Scott entrega esta versão condensada e vai deixar a versão de 4h10min para o lançamento no streaming, Deus sabe quando? Será que ele está seguro que isso motivará as pessoas a verem o filme novamente na telinha com a certeza de que será melhor? Ou acha que não é bom o suficiente para lançamento com essa duração nos cinemas? Um dos problemas da versão dos cinemas de NAPOLEÃO (2023) é não aprofundar ou não nos fazer conhecer mais o próprio Napoleão (Joaquin Phoenix) idealizado por Scott e pelo roteirista David Scarpa, ainda mais sendo um protagonista que não demonstra ter tanta astúcia política quanto imagino que deveria. De todo modo, é um filme que mantém o nosso interesse do início ao fim, seja quando mostra as cenas de batalha, seja quando aborda o difícil casamento com Josephine (Vanessa Kirby), seja quando apresenta as crises no país - se bem que esse aspecto é um dos mais frágeis do filme. É tudo mostrado muito rapidamente. Ainda assim, gostei da cena do golpe de estado: é ao menos de fácil compreensão e divertida. Senti falta de mais vigor nas cenas de batalha. E de mais cor na fotografia - essa moda atual de se fazer filmes quase sem cores é uma tristeza. De carreira irregular, Scott tem conseguido a proeza de seguir incansável no ofício aos 85 anos, ainda por cima com filmes desse porte. Louvável. Curiosamente, o novo filme remete ao primeiro longa para cinema do diretor, o ótimo OS DUELISTAS (1977), que se passa justamente no tempo de Napoleão Bonaparte.

ZONA DE INTERESSE (The Zone of Interest)

De jeito nenhum um filme como ZONA DE INTERESSE (2023) passaria numa sala de cinema de shopping que costuma exibir produções mais comerciais. Só mesmo uma indicação importante ao Oscar é capaz disso. O que Jonathan Glazer faz aqui é fugir deliberadamente de uma narrativa mais clássica - algo já iniciado em SOB A PELE (2013) - e nos fazer abraçar uma experiência em que o que está fora da tela, ou o que aparece quase que discretamente, é tão ou mais importante quanto aquilo que estamos vendo, aquilo que a câmera deseja mostrar. Ou seja, a beleza da casa grande e arborizada da família Höss é uma espécie de negativo dos horrores que acontecem do outro lado do muro (ainda não entendo bem as cenas do sonho da filha do casal, mas gosto dos efeitos). Acho que uma das cenas de que eu mais gosto é aquela em que o comandante diz que vai precisar sair de Auschwitz para a esposa e eles conversam sobre essa decisão que ele diz ser política. Há tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo em nossa cabeça, na cabeça dos personagens e a poucos metros dali. ZONA DE INTERESSE talvez dê uma boa dobradinha com A FITA BRANCA, de Michael Haneke. E Sandra Hüller, se não é a Rainha de Auschwitz, foi a rainha de Cannes-2023.

domingo, março 24, 2024

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS



Na noite de ontem, fomos, eu e a Giselle, (re)ver DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS (1976) no Cineteatro São Luiz. E foi muito bom irmos até lá, desde a chegada ao local, apesar de vermos a tristeza que está a Praça do Ferreira como um espaço de explicitação de nossa miséria socioeconômica atual. O tempo estava nublado e ameaçando chover, e talvez por isso a organização do espaço tenha deixado as pessoas que estavam dispostas a assistir ao filme naquela sessão especial gratuita (incrivelmente um público pequeno) entrarem meia hora antes do início da projeção.

Lá dentro, tiramos umas fotos e fomos entrevistados por uma moça para uma pesquisa de satisfação do equipamento do Estado. Eu falei a ela do que não gostava, mas, logo que entrei, mesmo as coisas de que reclamei ficaram pequenas diante de minha satisfação de estar ali naquele lugar lindo. Os produtores Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto não puderam comparecer à homenagem que receberiam por um problema de indisposição do hoje lendário produtor. O filme começa e já começamos a ver com muito interesse e deleite.

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS é um dos maiores sucessos do cinema brasileiro. Não me refiro apenas ao público – por décadas foi a nossa maior bilheteria de todos os tempos –, mas também ao fato de que a crítica o tem como uma obra muito querida. A Abraccine, em votação para o livro 100 Melhores Filmes Brasileiros, o colocou na 39ª posição. Já no mais recente livro Cinema Fantástico Brasileiro – 100 Filmes Essenciais, o filme de Bruno Barreto aparece na 13ª posição. Além do mais, Jorge Amado, autor do romance de 1966 que deu origem a esta adaptação, adorou o filme do jovem realizador – Barreto tinha apenas 21 anos quando lançou DONA FLOR e o mais incrível é que já era o seu terceiro longa-metragem.

Sônia Braga está incrível como a doce Flor, a mulher que é um tanto dependente do amor que sente pelo marido Vadinho, um homem irresponsável, que não trabalha, gasta o dinheiro da mulher em jogo, e até bate nela para conseguir dinheiro, numa cena desconfortável, mas não tanto quanto a mostrada na versão dirigida por Pedro Vasconcelos em 2017. Tanto que nem me lembrava dessa cena de agressão. No filme de Barreto, o Vadinho interpretado brilhantemente por José Wilker é visto de maneira mais simpática e moleque, ainda que ganhe dimensões mais sombrias e ambíguas especialmente quando aparece como um espírito ainda louco para satisfazer seu apetite sexual pelo corpo de Flor, que o teria chamado.

Sônia, a intérprete maior das personagens femininas de Jorge Amado no cinema (faria ainda GABRIELA, de 1983, também de Barreto, e TIETA DO AGRESTE, de Cacá Diegues), lida com esse desejo intenso por sexo com a frustração, seja quando tem que aturar as irresponsabilidades do marido boêmio, seja quando se casa com um homem que não corresponde às suas vontades na cama, ainda que a trate com muito respeito, o farmacêutico Teodoro, vivido por Mauro Mendonça. A direção sabe aproveitar muito bem todos esses aspectos de Flor, de maneira muito elegante. Uma cena de que gosto muito é uma que a flagra nua, sozinha, deitada na cama; com a janela da casa aberta, a câmera a larga lá, em estado de luto, mas cheia daquela falta que lhe queima por dentro. Além do mais, a última cena do flashback de Vadinho é cheia desse calor intenso e a fotografia (de Murilo Salles) usa tons avermelhados para enfatizar algo de natureza infernal (no bom sentido, talvez?) na intensidade do desejo do casal.

DONA FLOR é um dos casos raros de filme que deixa muitas lembranças, mesmo passados muitos anos – eu devo ter visto pela última vez nos anos 1990. Ainda assim, fiquei surpreso ao ver coisas que haviam caído no arquivo morto de minha memória, como a visita de Flor a uma mulher que ela acredita ter tido um filho de seu marido. O prólogo, com a morte de Vadinho no carnaval, seguido dos créditos iniciais ao som de Simone cantando "O Que Será?", composta por Chico Buarque exclusivamente para a trilha, já esse início arrepiante é o suficiente para deixar uma grande expectativa para o que virá. Além do mais, Francis Hime faz uma orquestração magnífica a partir da canção, elevando o filme com muita sensibilidade.

Caso perfeito de clássico, o filme de Barreto é tão lembrado que até quem nunca o viu sabe do que se trata, ou lembra de alguma cena ou imagem; é uma obra que ingressou no inconsciente coletivo.

O aspecto fantástico ganha ainda mais força nos dias de hoje, já que não é mais tão eclipsado pelo erotismo (na minha memória, as cenas de sexo eram mais tórridas, mas as vi pela primeira vez muito jovem). Ainda assim, é bem ousado para os padrões da época e para um cinema produzido fora da Boca do Lixo e com um elenco de astros de primeira grandeza (até o elenco de apoio é incrível). Adoro o final, com a decisão de Flor de se sentir finalmente completa com os dois maridos. Talvez seja sobre isso o filme: a busca de completude.

+ DOIS FILMES

NOSSO LAR 2 – OS MENSAGEIROS

Esta sequência de NOSSO LAR (2010) usa o que foi apresentado no primeiro filme a fim de introduzir o ponto de vista dos mensageiros na história de aprendizado, queda e superação de espíritos que descem novamente à Terra. NOSSO LAR 2 – OS MENSAGEIROS (2024), de Wagner de Assis, tem até uma narração que dá um ar mais doutrinador, em comparação com o primeiro, que parecia mais um filme de ficção científica, e por isso era divertido até para não seguidores da doutrina espírita. Incomodou-me um pouco a música que acompanha algumas cenas, especialmente as que mostram o aspecto de perfeição da cidade celestial. Por outro lado, é interessante como às vezes o filme se apropria de elementos do cinema de horror para apresentar a decadência dos espíritos. A própria cena de um dos homens que assiste ao próprio funeral poderia assustar a espectadores da década de 1960, por exemplo. Minha cena favorita é uma em que os mensageiros lutam contra as forças sombrias pelo espírito de um homem.

MINHA IRMÃ E EU

Este filme foi me ganhando aos poucos. Se, no início, eu demorei a embarcar no humor de Ingrid Guimarães e Tatá Werneck, quando se transforma num road movie, o novo trabalho de Susana Garcia (MINHA MÃE É UMA PEÇA 3 - O FILME, 2019) é só alegria, com a química entre as duas atrizes funcionando perfeitamente. Na trama, duas irmãs, depois de terem deixado claro que não queriam cuidar da mãe (Arlete Salles), saem numa viagem em busca da genitora magoada. No meio disso tudo, há a brincadeira com as mentiras da personagem de Werneck, cheia de trambiques, e isso acaba gerando boas situações, como o encontro com o caubói do touro. MINHA IRMÃ E EU (2023) é um tipo de comédia que poderia render um bom público se as pessoas voltassem a frequentar os cinemas. A experiência coletiva na sala foi muito boa, com o público rindo e gargalhando a valer. Ou seja, se temos tradição com a comédia, um bom boca a boca pode ajudar a reconquistar a audiência perdida, nesses tempos em que, até no cinema, vemos propaganda de filmes que estão em cartaz na Netlfix. No mais, parabéns a Tatá Werneck, verdadeira craque do humor físico e rápido.

terça-feira, março 19, 2024

CORISCO & DADÁ



A Mostra Retrospectativa 2024 foi uma das mais diferentes desde que o Cinema do Dragão ressuscitou quando o Governo do Estado do Ceará assumiu o equipamento. Achei mais diferente até do que aquela estranha edição de 2021, com apenas uma sala funcionando e ainda com menos lugares disponíveis, por causa da pandemia e do distanciamento social, que forçou as salas de cinema a adotarem medidas mais protetivas. O diferencial da edição deste ano foi um foco maior no cinema brasileiro. Senti muita falta de pré-estreias internacionais e de filmes estrangeiros com perfil de única sessão, mas foi também muito bom ver a pujança do cinema brasileiro contemporâneo, com sessões antecipadas de grandes filmes que ainda ganharão o circuito ao longo deste ano, casos de O DIA QUE TE CONHECI, SEM CORAÇÃO, ESTRANHO CAMINHO, QUANDO EU ME ENCONTRAR e MAIS PESADO É O CÉU (esses últimos, infelizmente, acabei não vendo, por motivo de força maior). Um exibido e que já ganhou circuito há algumas semanas foi LEVANTE, de Lillah Halla.

Entre as sessões de clássicos, um dos melhores momentos foi a exibição, em glorioso 4K restaurado, de CORISCO & DADÁ (1996), muito provavelmente o filme mais popular de Rosemberg Cariry, e que eu lembro de ter visto na noite de abertura do Cine Ceará de 96, com o Cine São Luiz lotado. Lembro de ter gostado do filme na época, mas, desta vez, na revisão, o hoje clássico de Rosemberg subiu muito mais em meu conceito. Vi finalmente o cineasta como o homem que tomou para si a tarefa de usar o cinema para falar da mitologia cearense e nordestina, o que, aliás, só me mostra o quanto ainda sou devedor da obra do cineasta, especialmente de seus filmes anteriores a este.

Num mesmo filme Rosemberg inclui não apenas personagens lendários como os cangaceiros Corisco, Dadá, Lampião e Maria Bonita, entre outros de seus bandos, mas também o Cego Aderaldo (que ganharia um filme do diretor em 2012), o cineasta Benjamin Abraão e menções a Padre Cícero e a Beata Maria de Araújo. E Rosemberg faz isso com uma elegância formal admirável, com uma poesia visual de dar gosto.

Adoro os planos em que ele usa lentes especiais para filmar o movimento nos espaços abertos, como na cena em que Corisco se aproveita pela primeira vez do corpo da jovem Dadá, recém capturada da casa dos pais, com apenas 12 anos de idade. A violência é não apenas bastante presente no filme, como também é crescente na jornada de descida aos infernos de Corisco, à medida que ele vai ficando mais sedento por sangue. 

Eu estava curioso com o modo como o filme se insere nos dias de hoje, em que as pessoas estão muito mais atentas e talvez mais sensíveis à violência cometida contra a mulher e como isso se inseriria dentro de uma visão de certa forma romântica que muitos têm dos cangaceiros. Mas Rosemberg já deixa bem claro em sua obra o caráter trágico de seus heróis. Eles podem ser vistos como espíritos vivendo numa espécie de purgatório, que é o deserto nordestino da primeira metade do século XX, infestado por policiais em seu encalço, muita fome e gestações interrompidas pela situação em que viviam. 

Tanto Dira Paes quanto Chico Diaz estão fabulosos na caracterização de seus personagens e no modo como apresentam suas visões de mundo com palavras que oscilam entre a desesperança e a força de vontade de agir no meio daquele deserto. As cenas em que os personagens aparecem em espaços totalmente vazios, seja na caatinga ou próximos a um rio, acentuam o teor mitológico da história e daqueles personagens, como se o cineasta quisesse trazê-los de volta à vida com a força do cinema. E os traz.

No mais, ainda quanto à violência (mais uma vez), eu não estava preparado (não recordava, na verdade) para uma cena tão brutal, como uma que envolve a personagem de Virginia Cavendish. Na referida cena, um dos cangaceiros descobre que a esposa o está traindo e, segundo o código de ética deles, esse homem terá direito de matar a mulher. No caso, ele o faz a pauladas. E o diretor faz algo incrivelmente bonito e carregado de tristeza e dor, como se estivesse em prantos ao mostrar tal cena, especialmente no momento em que pétalas de flores brancas caem sobre o corpo morto da mulher.

Se CORISCO & DADÁ ainda não é considerado um dos grandes filmes do cinema brasileiro (o filme não comparece na lista de 100 melhores da Abraccine, por exemplo), acredito que um dia será devidamente percebido como a obra-prima que é.

+ DOIS FILMES

KILA & MAUNA

Acho que o que eu mais gostei de KILA & MAUNA (2023), de Ella Monstra, foi de seu visual a serviço do sentimento das personagens. A começar pelas primeiras imagens de uma delas que encontra, com ajuda de uma tecnologia (futurista?) uma amiga desaparecida. Para isso ela entra em contato com outra amiga em comum para ambas partirem numa missão. Não sei onde o filme foi rodado, se aqueles desertos foram filmados em alguma praia do Ceará ou se é computação gráfica, mas o que importa é que funciona. Pena que lá pelo final, talvez por estar um pouco disperso, tenha me desconectado com a trama, que tem ares lynchianos.

SOB A TERRA DO ENCOBERTO

O curioso deste SOB A TERRA DO ENCOBERTO (2022), de Libra e Xan Marçall, é que o filme bem que poderia aumentar uns três minutinhos de sua metragem para se adequar a um formato de longa-metragem, mas que prefere ser assim, marginal como um média-metragem. É um quase longa. É um filme que considero irregular em sua disposição de apresentar personagens trans ou travestis de diferentes partes do Brasil, enquanto também busca um lugar de cinema-poesia, a partir de construções visuais muito bonitas (direção de arte, figurinos, criação) que nunca deixam de ser essencialmente queer (ou talvez outro adjetivo seja mais apropriado). Entre as personagens do filme, gosto muito do jeito atrevido da travesti do Maranhão, e achei interessante o modo como o filme usa um único homem trans para representar vários. Pareceu pouco e talvez desproporcional, mas a escolha talvez tenha sido acertada, para que o filme flua melhor na duração escolhida.

domingo, março 17, 2024

ERVAS SECAS (Kuru Otlar Üstüne)



A primeira vez que ouvi falar em Nuri Bilge Ceylan foi quando do lançamento de ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA (2011) no Brasil. O filme foi bastante concorrido na reta final do prêmio Abraccine de 2013, mas o longa só havia sido exibido em São Paulo, no CineSesc, e isso talvez tenha prejudicado sua eleição como melhor longa-metragem estrangeiro pela associação, que acabou indo para TABU, de Miguel Gomes. O restante do país só receberia o filme de Ceylan nos cinemas no ano seguinte, como foi o caso de Fortaleza, que contou com uma gloriosa exibição (em película, se não me engano), em maio de 2014, no Cinema do Dragão.

De lá para cá, mais dois filmes do cineasta pintaram: WINTER SLEEP (2014), que recebeu a Palma de Ouro em Cannes, e A ÁRVORE DOS FRUTOS PROIBIDOS (2018). Curiosamente, o próprio cineasta também dirigiu documentários longos sobre o making of desses filmes. Mas creio que o mais novo trabalho do realizador, ERVAS SECAS (2023), seja o que mais me encantou, pelo menos desde ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA. Talvez até mais que esse, eu diria, pois mexeu com questões pessoais minhas, não apenas me deixando deslumbrado com uma direção primorosa e imagens em plano geral e close-up magníficas.

O ideal é chegar ao cinema sabendo o mínimo possível da trama ou dos personagens e se pegar envolvido com as quase 3h20min de projeção, que na verdade passam voando. No entanto, vou tomar a liberdade de encher meu texto de spoilers, já que sinto a necessidade de falar de certas cenas. Por isso, deixo aqui o aviso.

O protagonista de ERVAS ECAS é Samet (Deni̇z Celi̇loğlu), um professor de artes do ensino fundamental que vê a vida com muito amargor e isso é espelhado em suas aulas, pouco interessantes e com frequência criticadas pelos próprios alunos. Esse desgosto com a própria vida que leva faz com que certo grau de maldade o contamine, e faz com que se sinta superior às demais pessoas daquele vilarejo distante e inóspito da Turquia. 

Logo no começo do filme, ao voltar de um recesso escolar, ele presenteia uma de suas alunas favoritas com um espelho. A menina aceita com alegria e simpatia. O espelho, mais adiante, será confiscado por uma espécie de polícia da escola, que passa nas salas de aula verificando tudo o que as crianças trazem em suas mochilas. Entre os outros objetos confiscados, está também uma carta de amor de Sevim, a aluna favorita de Samet. Em determinado momento, Samet e outro colega, Kenan (Musab Eki̇ci̇), são acusados de estarem cometendo comportamentos inadequados com seus alunos e alunas. Eles acabam não sendo punidos pelo diretor da escola, mas saber dessas reclamações faz com que os dois fiquem bastante incomodados e curiosos sobre os exatos motivos das reclamações.  

Se o filme fosse só sobre essa questão, com o pano de fundo de um vilarejo situado onde o Judas perdeu as botas, com gelo por todos os lados e com cachorrinhos abandonados morrendo de frio pelas ruas, se fosse “só” sobre isso, já seria incrível, dada a capacidade de Ceylan de nos colocar naquele universo e fazendo, até então, uma espécie de “anti-filme de professor”. Ou seja, Samet é um sujeito que logo veremos como alguém no mínimo desagradável.

Mas eis que há uma espécie de lado B, algo inesperado e genial, que eleva o filme e o torna ainda mais incrível, em minha percepção, pois novas questões surgem, e o brilho na direção do mestre turco fica mais acentuado. Seu virtuosismo até então parecia contido. A cena do jantar entre o Samet e Nuray (Merve Dizdar, melhor atriz em Cannes), a militante de esquerda que perdeu uma perna numa explosão, já está entre as mais memoráveis do ano, ou da década.

Há um sentimento muito particular ali, que envolve o nosso próprio sentimento em relação a esse protagonista-narrador, mas não isento de nosso julgamento. Num mundo perfeito esse seria um estilo de caracterização vilanesca que gostaríamos de ver com frequência, tal a excelência e o tom mais sutis adotados na dramaturgia. O jantar entre Samet e Nurat era para ter sido a três. A mulher estava muito mais interessada em Kenan, um sujeito mais simpático, acolhedor e positivo que o cínico Samet. Ou seja, Samet, que não estava tão interessado na mulher, talvez por causa da perna amputada, aparece sozinho e entra no jogo de sedução mais para provar certa superioridade, além de fazer questão de magoar o amigo.

A cena do jantar é dividida em alguns momentos, todos pontos altos. A princípio, o realizador, de modo a nos manter interessados na discussão filosófica entre os dois, que guardam pensamentos muito distintos sobre a necessidade de se ter ou não um papel social, mantém um estilo mais discreto de direção. Samet é um homem egoísta, como ele mesmo afirma ser, que acredita que não temos a obrigação de sermos todos heróis. Nurat é idealista, e por isso acredita que a ação individual deve contribuir para a evolução e o bem-estar geral da sociedade. A conversa entre os dois é muito mais profunda do que tentei descrever nesse parágrafo e passa a impressão de que o trabalho de Ceylan é semelhante, de certa forma, ao de um grande novelista. A comparação com Fiodor Dostoiévski não tem sido à toa, já que o próprio protagonista guarda relação com o anti-herói de Crime e Castigo.

Acontece que, logo após a acalorada discussão, toda apresentada na simplicidade clássica do campo e contracampo, Ceylan aponta sua câmera de maneira muito particular, de modo a nos chamar a atenção para outros aspectos do filme, de nos deixar mais atentos a seu trabalho de direção. A câmera é apontada para as costas de cada um dos dois, como se criasse uma espécie de eclipse parcial do rosto deles, e a inquietação em nosso espírito se intensifica, especialmente quando Nurat se senta no sofá. O beijo e o que mais vem naquela noite parecem inevitáveis, mas nunca um beijo me pareceu tão desagradável. As lágrimas de Nurat são quase como lágrimas de uma mulher que estaria fazendo algo contra sua vontade, e o toque de Samet tem algo de repulsivo. Depois disso, há uma cena de natureza metalinguística, quando Nurat pede para que Samet apague as luzes da sala, e depois há a entrada no quarto para os momentos de maior intimidade.

Em determinado momento cheguei a pensar que ela pede para apagar as luzes, não por causa de seu corpo incompleto, mas como uma forma de se sentir menos incômoda em fazer sexo com aquele homem que está ali. Depois disso, há pelo menos uma outra sequência incrível, que é quando Nurat, chega sozinha à residência dos dois companheiros de casa, a fim de saber os motivos de Kenan não estar respondendo às suas ligações. O coitado havia ficado completamente arrasado ao saber da noite de sexo entre ela e Samet. E que espetáculo, a interpretação de Merve Dizdar! E que linda que é a cena dos três voltando de carro, vendo a neve caindo no parachoque. É novamente Ceylan mostrando que também é um mestre das paisagens no cinema.

Não é sempre que somos levados a esse tipo de experiência transcendental no cinema, em que questionamos até mesmo nossos níveis de maldade a partir da introdução de um personagem com toques dostoievskianos como Samet. ERVAS SECAS é uma obra que também nos faz mais empáticos com a dor do outro. Sim, o grande cinema nos encanta e ainda nos faz pessoas melhores.

+ DOIS FILMES

EU, CAPITÃO (Io Capitano)

Conheço pouco da filmografia de Matteo Garrone, mas o pouco que vi não me deixou muito animado. Junte-se isso às críticas negativas que EU, CAPITÃO (2023) tem recebido e o resultado foi algo melhor do que eu esperava, embora no final fique aquela sensação de mal estar que não necessariamente tem a ver com a jornada dura do herói. Garrone parece gostar de contos perversos e talvez por isso tenha feito PINÓQUIO (2019). Este novo filme até tem um quê da história do boneco de madeira, mas voltado muito mais para o mundo cão da vida real. Logo no começo, o jovem Seydou fala com a mãe sobre seu desejo de deixar o Senegal e ir embora para a Europa. A mãe fica revoltada e triste e logo o avisa que ele encontrará morte pelo caminho e coisas do tipo. Mesmo assim, Seydou e Moussa, seu primo, encaram atravessar meio mundo, com pouquíssimo dinheiro e pelo caminho ilegal, a fim de chegar ao continente rico. Garrone não se importa em pesar a mão na maldade humana e o resultado é uma espécie de road movie de sofrimento e dor. Talvez tenha me incomodado um pouco ser a visão de um italiano e não a de um senegalês contando a história. Mais do que a história em si.

A MENINA SILENCIOSA (An Cailín Ciúin / The Quiet Girl)

A simplicidade de A MENINA SILENCIOSA (2022), de Colm Bairéad, me encantou. Acontece que tenho um problema que me incomoda muito, que envolve quase todo filme protagonizado por crianças: acabam me dando sono. Com este não foi diferente, mas fiquei muito envolvido, especialmente na primeira e na última partes. Inclusive, aquele final, é difícil não se emocionar. O filme acompanha uma garotinha de família muito humilde e de educação embrutecedora. Ao ter a chance de ter contato com outra família, um casal mais velho que seus pais, ela passa a perceber outro tipo de sensibilidade, outro cuidar. O diretor, com experiência na televisão, em documentários e em séries, tem um cuidado visual que valoriza tanto os close-ups, trazendo muita ternura nas expressões, quanto na paisagem rural daquela Irlanda que parece um lugar esquecido do mundo.

segunda-feira, março 11, 2024

OSCAR 2024



Foi a melhor cerimônia do Oscar em muito tempo. Ainda vejo muita gente reclamando de uma coisa ou de outra, e talvez essa impressão tenha vindo do gosto ruim que o Oscar 2023 trouxe, especialmente pela premiação daquele filme de nome comprido que acho melhor até esquecer. Agora foi diferente. A raiva que eu tive foi mais do ponto de vista técnico, pessoal: não conseguia assistir à premiação pela MAX através da minha televisão sem pausas constantes no streaming. Muito irritante. E é um problema que preciso ainda resolver - pena que assinei essa joça por um ano. Ainda bem que deu certo ver pelo computador e usar o cabo HDMI. Melhor do que nada, ainda que isso significasse menor qualidade de imagem.

Mas falemos das coisas legais que a cerimônia trouxe. Posso começar logo pelo ponto alto da noite, que foi a apresentação do Ryan Gosling de “I’m Just Ken”, uma das canções de BARBIE, que concorria com duas, mas que acabou ganhando pela cantada por Billie Eilish (a pessoa mais jovem a ter dois Oscar, com apenas 22 anos). E o engraçado é que não via nada demais na canção do Ken no filme, mas a apresentação no Oscar, ao vivo, brincando com todo mundo ali presente, com o Ryan saindo da cadeira atrás da Margot Robbie, e depois aparecendo, até o Slash tocando guitarra no meio da coreografia que contava com os outros Kens do filme. Sensacional. Deu vontade de rever imediatamente.

A cerimônia como um todo não teve nada de muito diferente, nada de tapa na cara, ou alguém dizendo o nome do filme errado, mas, que eu me lembre, essas duas premiações específicas foram chatas e acabaram ganhando repercussão por causa desses eventos. Havia uma espécie de harmonia no ar, em parte pelo host da noite, que é muito tranquilo. Jimmy Kimmel só no final fez uma piada ácida com o ex-presidente Donald Trump, o que até me deixou bem surpreso, mas que trouxe mais uma vez à tona o caráter mais progressista do segmento “indústria de cinema”.

Das premiações, a que eu mais gostei foi a de Emma Stone por POBRES CRIATURAS, de Yorgos Lanthimos. Havia me deitado na cama naquele momento e levantei de alegria com seu prêmio. Já até estava conformado com a premiação de Lily Gladstone por ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES, mas o filme de Martin Scorsese acabou ficando sem nada. A própria Emma não estava acreditando e ficou atordoada e falou o quanto temia ter um ataque de pânico lá no palco. Uma graça, essa menina. Aliás, da categoria principal, o filme de Marty, MAESTRO, de Bradley Cooper, e VIDAS PASSADAS, de Celine Song, foram os únicos a saírem de mãos abanando. Até o mediano FICÇÃO AMERICANA teve o seu prêmio, de roteiro adaptado.

Outro prêmio também animador foi o de GODZILLA MINUS ONE, ganhando efeitos especiais de produções caríssimas realizadas nos Estados Unidos. Foi bacana ver esse grupo de japoneses conseguindo esse Oscar com poucos recursos. Também achei muito legal a estatueta de ator coadjuvante para Robert Downey Jr., um sujeito cheio de carisma e que tem uma trajetória de vida muito tortuosa. Legal ele ter vencido as drogas e conseguido esse sucesso na maturidade. Não sou muito fã de OPPENHEIMER, mas todo mundo já sabia que seria o grande vencedor da noite, e por mim tudo bem. Um bom filme, sim. E feito por um homem que tem ajudado a alavancar o IMAX como formato mais atraente da atualidade.

Aqui no Brasil, houve problemas na transmissão e perdemos até mesmo uma premiação (de curtas). Mas gostei que convidaram a Andrea Horta, essa moça incrível, que veio de família humilde e tem muita sensibilidade, inclusive para falar de cinema. Que ela retorne no próximo ano.

No mais, participei de três bolões e gostei muito da experiência. É divertido e adiciona uma dose extra de excitação e entretenimento para a noite.



Os Premiados

Melhor Filme – OPPENHEIMER
Direção – Christopher Nolan (OPPENHEIMER)
Ator – Cillian Murphy (OPPENHEIMER)
Atriz – Emma Stone (POBRES CRIATURAS)
Ator Coadjuvante – Robert Downey Jr. (OPPENHEIMER)
Atriz Coadjuvante – Da’Vine Joy Randolph (OS REJEITADOS)
Roteiro Original – ANATOMIA DE UMA QUEDA
Roteiro Adaptado – FICÇÃO AMERICANA
Fotografia – OPPENHEIMER
Montagem – OPPENHEIMER
Trilha Sonora Original – OPPENHEIMER
Canção Original – “What Was I Made For?”, por Billie Eilish (BARBIE)
Som – ZONA DE INTERESSE
Efeitos Visuais – GODZILLA MINUS ONE
Direção de arte – POBRES CRIATURAS
Figurino – POBRES CRIATURAS
Maquiagem e cabelos – POBRES CRIATURAS
Filme Internacional – ZONA DE INTERESSE (Reino Unido)
Longa de Animação – O MENINO E A GARÇA
Curta de Animação – WAR IS OVER! INSPIRED BY THE MUSIC OF JOHN & YOKO
Curta-metragem (live action) – A INCRÍVEL HISTÓRIA DE HENRY SUGAR
Documentário – 20 DIAS EM MARIUPOL (Ucrânia)
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