sábado, novembro 23, 2024

HEREGE (Heretic)



Li há pouco um texto do site do jornal britânico The Guardian sobre o quão fiel foi o trabalho dos diretores e roteiristas Scott Beck e Bryan Woods no que se refere à apresentação dos mórmons, tanto as duas jovens personagens missionárias, quanto as próprias discussões teológicas, iniciadas pelo personagem de Hugh Grant. Lembrei-me que namorei uma moça que era mórmon, mas que não me disse nada a respeito durante muito tempo, a não ser em nosso último encontro. E acho que só falou quando perguntei a ela, meio que sem querer, se ela era mórmon e ela disse que sim.

De repente, algumas coisas passaram a fazer sentido, como o não tomar nem Coca-Cola (por causa da cafeína) quanto rejeitar o sexo (antes do casamento). Depois, ela entrou na casa dela e voltou para me mostrar algumas fotos do evento e citou até mesmo o tipo de vestimenta íntima que os mórmons usavam, os chamados garments. Interessante que nunca me interessei a ler detalhes sobre esse aspecto (da vestimenta), até hoje, e li há pouco que é polêmico até entre membros da igreja, que reclamam ser no mínimo desconfortável. Sobre essa “roupa íntima mágica”, há uma cena específica do filme em que uma das meninas sofre humilhação de uma jovem na rua.

2024 está sendo um ano particularmente muito bom em se tratando de bons e ótimos filmes de terror. O gênero está em alta e cheio de ótimos exemplares. Entre os melhores, podemos citar: A PRIMEIRA PROFECIA, LOVE LIES BLEEDING – O AMOR SANGRA, OS OBSERVADORES, ENTREVISTA COM O DEMÔNIO, MAXXXINE, ARMADILHA, ALIEN: ROMULUS, LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL, NÃO FALE O MAL, STRANGE DARLING, A SUBSTÂNCIA, A GAROTA DA VEZ, CONTINENTE, SORRIA 2, TERRIFIER 3, entre outros títulos que tangenciam o terror, como os novos filmes de Jonathan Glazer, Paul Schrader, Guto Parente, Petrus Cariry e Yorgos Lanthimos. E há vários novos do gênero bastante louvados por fãs e críticos que não vi ainda, alguns lançados direto em streaming.

HEREGE (2024) se junta a essa nova safra de filmes de terror no mínimo muito interessantes que parecem trazer fôlego novo para o gênero. Os diretores Beck e Woods até têm uma carreira maior do que eu suspeitava. Não cheguei a ver 65 – AMEAÇA PRÉ-HISTÓRICA (2023), lançado nos cinemas, mas acabou ficando na minha lista de interesse depois de ter visto HEREGE. Assim como outros trabalhos dos realizadores, feitos, em sua maioria, com baixo orçamento, e que serviram como escola para um tipo de direção sofisticada como a apresentada em HEREGE, obra que guarda semelhanças também com o cinema de M. Night Shyamalan, inclusive, tanto visualmente quanto na criação de regras, jogos e surpresas. O amigo e crítico Messias Adriano, ao final da sessão, até comentou comigo que o filme é mais Shyamalan que os próprios Shyamalans (ARMADILHA, OS OBSERVADORES). Mas comentei com ele que Shyamalan talvez não fizesse um trabalho tão cheio de diálogos quanto este de Beck e Woods.

Apesar de gostar bem mais da primeira metade do filme do que de seu desenvolvimento se aproximando da revelação do que guarda o personagem de Grant, não deixa de ser um prazer ver no cinema um filme como este, com uma direção cuidadosa e caprichada (que se destaca até mesmo nos créditos iniciais e na primeira cena) e diálogos muito bem construídos. Aliás, apesar da belíssima construção visual e muito uso da câmera mostrando as costas de suas heroínas, a base do filme está nos diálogos e nas interpretações de Hugh Grant e das jovens Sophie Thatcher e Chloe East. Muito bom ver Grant se aventurando por um papel de vilão e sendo tão perturbadoramente assustador, afastando-se da persona tímida e cínica de protagonista de comédias românticas.

Na trama, duas jovens missionárias mórmons batem de porta em porta numa cidadezinha montanhosa e vão parar na casa de um homem que aparentemente é muito simpático e estaria em casa com a esposa – ela estaria fazendo uma torta. Elas entram, uma vez que supostamente a mulher dele estava em casa, e elas deixam claro a importância de não ficarem num mesmo espaço fechado apenas com um homem. Acontece que elas começam a achar que aquele homem está mentindo para elas e ficam em pânico quando descobrem que a porta da frente não abre para que possam escapar.

As conversas entre os três são muito interessantes e ele questiona bastante tanto a própria religião delas quanto todas as demais religiões, que seriam baseadas em crenças e mitos mais antigos. Quando isso acontece, as meninas começam a ficar um tanto desconcertadas, embora aquilo fosse só o começo. O terror estaria por vir. A comparação que ele faz com músicas pop é ótima e espirituosa. Ainda que não seja um filme para se gargalhar (até pela tensão), há um humor muito interessante que se deve tanto ao roteiro da dupla de diretores quanto ao próprio trabalho dos atores, especialmente de Grant.

Não li nenhuma entrevista dos diretores, mas é possível que a aproximação deles com a jovem Sophie Thatcher tenha se dado com o filme BOOGEYMAN – SEU MEDO É REAL (2023), em que Beck e Woods trabalharam como roteiristas. Aliás, este eu também não vi. Parece interessante.

+ TRÊS FILMES

TERRIFIER 3

Uma das coisas que mais gosto nestes Terrifiers, do Damien Leone, é o quanto às vezes temos a impressão de que estamos vendo alguma coisa muita errada. Isso se dá pelos excessos do gore e da violência aliada a um tipo de humor mais perverso. Mas são filmes que me dão prazer, em especial por terem algo de anacrônico, como se estivéssemos vendo uma produção dos anos 1980, proibida e só liberada agora. O prólogo de TERRIFIER 3 (2024) já chama a atenção pelo caráter transgressor: o palhaço Art chega vestido de Papai Noel numa casa habitada por uma família (homem, mulher e duas crianças de sexos diferentes). A menina acredita que ouviu passos na parte de cima da casa, a mãe não acredita e a menina acaba sendo a testemunha do banho de sangue que o palhaço faz em sua casa, começando pelo pai. Vejo esses filmes como algo que funciona também para satisfazer fãs de slashers que não ficam totalmente contentes com uma violência gráfica mais sutil e finalmente podem ver algo que a escancara, sem dor nem piedade. Talvez a cena que mais me impressionou foi a do Papai Noel no bar, mas a cena dos ratos é igualmente perturbadora. O grafismo no sangue e nos corpos mutilados aqui não tem a elegância e a beleza de um Argento, por exemplo, o que não quer dizer que não seja bonito, dependendo dos olhos de quem vê, como na cena do chuveiro. Aliás, essa cena tem até uma moral interessante, pois faz uma crítica aos fãs entusiasmados de true crime, fãs que perdem um pouco a noção da dor das vítimas. E nisso a cena de Art olhando para os olhos da moça no chuveiro tem algo de moralista. O final do filme, assim como acontece com o segundo, guarda elementos sobrenaturais, que eu acho interessantes e aproxima Art de uma força maligna e amplia a mitologia do personagem. Por outro lado, essas relações que o filme estabelece com os anteriores e com a próxima continuação faz com que ele se torne mais dependente dos demais. Sienna (Laura LaVera), por outro lado, ganha com isso, torna-se uma heroína de fato. E nesse sentido o filme se distancia dos slashers mais misóginos. Tanto pelo empoderamento de Sienna quanto pelo fato de que as vítimas de Art são homens, mulheres e até crianças, sem nenhuma preferência de gênero ou idade.

A ORGIA DA MORTE (The Masque of the Red Death)

Revisto depois de mais de 20 anos, A ORGIA DA MORTE (1964) se mostra mais bonito, mais extravagante e mais sinistro também, uma vez que o personagem de Vincent Price e sua esposa são adoradores de Satã e têm uma visão do mundo muito própria. Ele, como o Príncipe Prospero, se sente superior aos demais, inclusive às pessoas do vilarejo, dotadas de fé cristã, mas agora perecendo com uma peste vermelha. Roger Corman faz aqui um de seus trabalhos mais visualmente bonitos, com cores vivas para cada canto do castelo. Como o conto de Poe é muito curtinho, o filme tem um roteiro até que bem original, usando a história como esqueleto. Continuo não gostando tanto assim da performance de Price, muito espalhafatosa, mas aqui, principalmente perto do final, com o tom mais teatral da narrativa, essa performance fez até mais sentido, combinou bastante. Gosto da cena do anão e do gorila, uma das mais fortes e que mais coloca o filme numa situação de exposição da maldade humana. Não apenas pelo homem sendo morto, mas pelas pessoas assistindo com alegria e satisfação.

MOMENTOS DE PRAZER E AGONIA

Um dos raros casos de produções apelativas brasileiras que teve a sorte de ganhar uma restauração boa o suficiente para que parecesse novo de novo em sua exibição no Canal Brasil. Na época do lançamento, Anthony Steffen havia voltado de sua carreira como ator na Itália, especialmente em westerns. Em MOMENTOS DE PRAZER E AGONIA (1983), de Adnor Pitanga, ele aparece como o namorado maduro de uma professora vivida por Rossana Ghessa, uma mulher que optou por sair da cidade grande e passar uma temporada no interior. Como é um filme já de 1983 as cenas eróticas são um pouco mais gráficas, embora o erotismo em si seja bem pouco eficiente. Uma cena que poderia ter rendido bastante é aquela em que duas mulheres fazem sexo próximo do marido cego de uma delas, mas isso não passa de algo apenas curioso. O lado slasher, ou giallo, melhor dizendo, até causa algum interesse, mas com a conclusão ruim fica difícil guardar um carinho maior pelo filme. Rossana Ghessa, boa atriz que era, felizmente teve a sorte de atuar em ótimos trabalhos de Alfredo Sterheim e Walter Hugo Khouri.

domingo, novembro 17, 2024

CAETANO & BETHÂNIA NO ARENA CASTELÃO – FORTALEZA, 16 DE NOVEMBRO DE 2024



O show de Caetano & Bethânia em 2024 estaria para o show de reunião dos Titãs em 2023, em grau de importância e de escala. Mas a comparação talvez não seja muito justa, levando em consideração que Caetano Veloso e Maria Bethânia estão muito mais tempo entre nós. Estava comentando ontem com a Giselle, depois que saímos do show e sentíamos aquela dificuldade de encontrar um Uber para voltar para casa, o quanto é incrível estarmos em pleno 2024 e vendo um show de dois artistas que já começaram gigantes em meados dos anos 1960. Por isso me emocionou tanto quando os dois cantaram “Oração ao Tempo”, a quarta canção do show, estando eles ali, saudáveis, na faixa dos 70 e 80 anos de idade, como que se tivessem conseguido um acordo com o “tambor de todos os ritmos” e o “compositor de destinos”.

E foi este o momento que meus olhos marejaram, eu me lembrei do meu grande amigo Santiago, que me fez conhecer mais o Caetano. E Giselle também lembrava de um amigo querido, Weliton, fã de Bethânia, falecido neste ano. Ela dedicou o show a ele algumas vezes. Acho bonito e tocante essa relação da Giselle com as pessoas queridas que se foram. Faz-me lembrar François Truffaut, cineasta estimado. No caso dela, especificamente, o que é ainda mais bonito é que isso não passa a ser uma virada de chave para a tristeza, não chega a diminuir a alegria em seus olhos ou o sorriso em seus lábios, nem muito menos a alegria de estar viva e celebrando a vida.

A expectativa para o show era grande. Compramos o ingresso logo no primeiro dia de abertura, com medo que acabasse logo, como aconteceu em algumas cidades. Não esgotou, mas o Arena Castelão é um lugar enorme, de todo modo, e fazia tempo que não via tanta gente reunida. As minhas expectativas quanto ao repertório já haviam sido diminuídas, pois gosto de acompanhar o setlist antecipadamente dos shows nas cidades. Então, já percebia que havia canções que não conhecia ou não gostava tanto e que gostaria que fossem substituídas. Mas não sou eu quem faz o show, são eles. E a Caetano e Bethânia, a gente não reclama; a gente agradece.

O show começa com “Alegria, alegria”, canção da fase inicial de Caetano, de 1967, e que hoje é comumente associada aos movimentos de resistência do Brasil da época da ditadura. É também uma canção do movimento tropicalista e outras três desse período seriam tocadas ao longo do show, “Tropicália”, “Baby” e “Não identificado” Aliás, “Não identificado” foi outra que me emocionou muito. Acho que não havia percebido o quão romântica era; acho que a percebia mais como uma canção inovadora do ponto de vista formal, olhava mais para sua modernidade exuberante. Dessa vez, a ideia de uma canção “dizendo tudo a ela” que brilharia na noite no céu de uma cidade do interior, como um objeto não identificado, isso é lindo demais. E o trabalho de direção de arte do show, nesse momento, mostrou o espaço sideral. De cair o queixo.

A segunda canção da noite foi muito especial, “Os mais doces bárbaros”, da antológica reunião do quarteto fantástico da Bahia – Caetano, Bethânia, Gal e Gil. Ela tem algo de chegar-chegando, e de chegar com amor e com felicidade, mas também como uma invasão, fazendo a união do doce bárbaro Jesus com símbolos do candomblé, como a espada de Ogum, a bênção de Olorum e o raio de Iansã. Seria uma ótima canção para abrir o show, inclusive. Mas entendo a opção por “Alegria, alegria”, justamente por ser mais famosa.

Dessa primeira parte do show, com Caetano e Bethânia no palco, destacaria também, além das já citadas “Oração ao Tempo” e “Não identificado”, duas que considero essenciais: “A tua presença morena” e “Cajuína”, que ganhou um arranjo muito diferente, com bastante percussão, o que me trouxe sentimentos mistos, já que trata-se de uma canção de origem triste, a lembrança de Torquato Neto, a visita de Caetano ao pai do poeta falecido. Algumas canções não me pegaram neste primeiro bloco, tipo “Eu e água” e “Motriz”, mas faz parte.

Eis que Caetano fica sozinho no palco e, de posse unicamente de seu violão, faz todo mundo cantar “Sozinho”, de Peninha, que fez um sucesso estrondoso quando ele regravou a canção em 1998. Acho que foi o momento de maior participação do grande público, em que o cantor podia facilmente deixar as pessoas cantando sozinhas, mas a voz dele é tão boa, ele é um artista tão completo, que é gostoso demais ouvi-lo. Depois vem outro sucesso, “O leãozinho”, que podia muito bem ter ficado de fora. Entrou naquele tipo de música que todo mundo já ouviu tanto que cansou.

A próxima, a cover de Fernando Mendes “Você não me ensinou a te esquecer”, era uma das mais aguardadas por mim. Acho linda a versão original de Mendes e a versão de Caetano é magistral. Senti falta dos violinos e violoncelos da versão de estúdio, mas ficou muito bonita com banda e metais. Acho que é uma canção que já me fez chorar tantas vezes que esperava entrar em prato no momento do show, o que não necessariamente aconteceu. Já havia comentado com a Giselle sobre o quanto fico particularmente tocado com canções em que o eu lírico pede perdão (como “A vida é doce”, do Lobão; “The heart of the matter”, na voz de Renato Russo; “Espumas ao vento”, nas vozes de Fagner e de Ney Matogrosso, “Jealous guy”, de John Lennon etc.).

Depois teve “Você é linda”, que cantei com alegria para a Giselle, feliz de estar do lado dela, e é uma canção incrível na construção poética e na sofisticação da voz do mestre. Caetano batia no peito nas passagens em que cantava “Onda do mar do amor que bateu em mim”, com aquele quê de poesia simbolista que valoriza a repetição de consoantes. 

Em seguida, para encerrar esta fase de Caetano sozinho no palco, ele agradece a Peninha, a Fernando Mendes e fala do aumento do número de evangélicos no país e do quanto achou importante trazer “Deus cuida de mim”, de Kleber Lucas. Nem todos os fãs mais raiz do Caetano devem ter gostado, mas percebi uma boa aceitação de várias pessoas. Lembrei de minha mãe, que cantou com alegria e devoção essa canção no dia que coloquei essa música para tocar no carro. 

O momento Bethânia sozinha começou com “Brincar de viver” (Guilherme Arantes), que achei bem bonita de ouvir, especialmente com o arranjo de metais, mas difícil mesmo é ficar sem se empolgar quando ela canta “Explode coração” (Gonzaguinha), que é uma canção tão curta e lírica quanto explosiva. Emocionei-me, logo em seguida, com “As canções que você fez pra mim” (Roberto e Erasmo), que ficou incrível demais. O que é aquele solo de metais, que muito lembra a própria versão de Roberto? Uma canção avassaladora que só tem a ganhar com a voz e a performance de Bethânia. Depois veio “Negue”, outra tijolada, do repertório de Nelson Gonçalves, mas que hoje em dia todo mundo só lembra da versão de Bethânia, do clássico Álibi (1978). Aliás, bem que os novos artistas podiam resgatar mais essas canções da velha guarda. A canção que fechou este bloco de  Bethânia foi “Vida” (Chico Buarque), que eu desconhecia.

As emoções da noite ainda seguiriam com os dois juntos retornando com uma homenagem à escola de samba Mangueira, seguida de uma homenagem a Gal Costa com “Baby”, que não funcionou muito bem nas vozes nem de Caetano nem de Bethânia, e com “Vaca profana”, esta sim funcionou, principalmente pelo arranjo mais rock’n’roll e pelo barulho que a banda fez, antecipando outro clássico do rock brasileiro dos anos 1970, “Gita”, de Raul Seixas. Acho que fazer cover de Raul é sempre uma tarefa ingrata, especialmente dessas canções mais icônicas, mas ficou no mínimo interessante o novo arranjo. Depois veio “O quereres”, com sua poesia incrível, uma cover de IZA, chamada “Fé”, que mostra o quanto Caetano gosta de se aproximar das novas gerações de cantores e cantoras, e depois “Reconvexo” e “Tudo de novo”.

No encore, a canção especial e exclusiva para o show de Fortaleza foi a lindíssima “Mucuripe” (Fagner/Belchior), que só reclamo por ter sido cantada muito rapidamente. É uma canção que me faz lembrar de meus tempos no Coral do IBEU. E terminaram com a canção-mantra “Odara”, que foi finalizada só com a banda e os backing vocals, enquanto as duas entidades já haviam se despedido discretamente. 

Uma oportunidade dessas, um show como esses, acontece praticamente uma vez na vida. Que bom que tivemos a chance de estar lá. Vi que vários amigos estavam por lá, pela repercussão nas redes. E acredito que todo mundo voltou pra casa odara.

sábado, novembro 09, 2024

AINDA ESTOU AQUI



“A ignorância é vizinha da maldade”
Provérbio arábe com frequência citado por Renato Russo


Uma das coisas mais lamentáveis no cenário atual, em que vemos cada vez mais pessoas aderindo aos valores da extrema direita, é o quanto elas ficam tão cegas diante dos fatos, que até preferem deixar de apreciar o melhor que os intelectuais e os artistas produzem, preferindo a ignorância e a estupidez. E sendo artistas pessoas geralmente sensíveis e humanistas, eles tendem a lamentar tudo que é destrutivo ao ser humano, tudo que pode causar dor e morte em larga escala, como uma ditadura autoritária que faz desaparecer (isso significando torturar, matar e sumir com o corpo) milhares de pessoas, sem assumir o crime, o que soma também outra característica a esses criminosos: a covardia. (Escrevo isso, aliás, com a nova edição caprichada do clássico quadrinho O Eternauta, de Héctor G. Oesterheld e Francisco Solano López. Oesterheld foi um “desaparecido” pela ditadura argentina.)

Não gosto de dizer isso sobre filmes, mas de vez em quando surge algum que meio que nos força a dizer: AINDA ESTOU AQUI (2024), de Walter Salles, é um filme necessário. O Brasil tem um sério problema de memória e é importante que tenhamos um filme que dê rostos a pessoas que foram vítimas de assassinatos cometidos pelo regime militar. O rosto de Rubens Paiva, vivido por Selton Mello, o rosto de sua esposa Eunice, vivida por Fernanda Torres, e o de seus filhos, tão jovens e cheios de vida e depois tendo que lidar com essa tragédia capaz de nos deixar muito indignados, muito putos. E esse foi o sentimento que mais tive ao longo do filme, embora o prazer de ver uma obra tão bem dirigida, encenada, atuada, fotografada, esse prazer também não tem preço.

A primeira parte do filme, que nos leva à casa de Rubens e Eunice, à alegria daquele lar, daquela casa de frente para o mar (a mesma casa onde eles viveram, inclusive), é essencial para que experimentemos um pouco do que foi a vida daquela família antes de três homens armados aparecerem e levarem o pai de família. As meninas dançando ao som de “Je t'aime... moi non plus”, de Serge Gainsbourg, canções de Erasmo Carlos (“É preciso dar um jeito, meu amigo) e de Tom Zé (“Jimmy, Renda-se”), entre outras como que para enfatizar a riqueza musical daquele período e nos trazer orgulho de nossa cultura, o brincar na praia e o cachorrinho que é acolhido pelo pequeno Marcelo, o carinho de Rubens com os filhos e a atenção da mãe Eunice, o entusiasmo da filha mais velha Vera (Valentina Herszage, de MATE-ME POR FAVOR) com a ida para a Europa.

Nesse primeiro momento, também sentimos o gosto da repressão da polícia na cena em que Vera, junto com uns amigos num carro, é parada e revistada agressivamente numa blitz. E também na notícia do sequestro do embaixador suíço pelo grupo de Carlos Lamarca, em dezembro de 1970, anunciado pela voz de Cid Moreira no Jornal Nacional. Uma das filhas de Rubens, Eliana, vivida por Luiza Kosovski (SEM SEU SANGUE) se mostra a mais atenta à tensão política existente no Brasil e presente nos noticiários, que precisam ser sempre lidos nas entrelinhas.

O diretor de fotografia Adrian Teijido é o mesmo de MARIGHELLA, de Wagner Moura, um filme de tons mais escuros. Aqui esses tons escuros se equilibram com o céu azul e solar do Rio de Janeiro, como que escondendo o que acontecia no Brasil. E Walter Salles opta pela película 35 mm, deixando as imagens muito mais próximas de uma ambientação da década de 1970.

Quanto ao registro mais clássico, gosto muito da decisão de Salles de evitar o choro fácil, até como uma maneira de ser fiel à personagem de Fernanda Torres. A cena já conhecida de Eunice querendo que todos sorriam na foto para a revista Manchete é representativa disso. Afinal, é assim que os inimigos os queriam: chorando, tristes, destruídos. E não foi assim que Eunice os ensinou a viver, como mãe e como ativista dos direitos dos povos indígenas.

Fernanda Torres tem aqui o papel da vida dela. E olha que ela já começou muito bem, com INOCÊNCIA, de Walter Lima Jr. e ganhou prêmio de melhor atriz em Cannes por EU SEI QUE VOU TE AMAR, de Arnaldo Jabor, prêmio, aliás, que as pessoas tendem a esquecer. Ou seja, em Veneza 2024 ela concorria a um segundo prêmio de atuação em festival internacional de grande porte. Além disso, recentemente ganhou um prêmio internacional do Critics Choice, por sua atuação em AINDA ESTOU AQUI. Sua interpretação no filme de Salles é incrível, no quanto se destaca especialmente quando precisa esconder os sentimentos de tristeza para os filhos, de modo a não os deixar ainda mais tristes, com o desaparecimento do pai. Como sou muito ruim em analisar interpretações não sei muito o que dizer, mas sei o quanto Fernanda foi/é gigante.

Quanto à simpatia de Walter Salles pelas causas de esquerda, elas já podiam ser percebidas no início da carreira com a adaptação de um autor censurado durante o regime militar, Rubem Fonseca, no subestimado A GRANDE ARTE (1991), feito num momento em que Collor de Mello havia destruído a Embrafilme. Depois os próprios anos Collor seriam contados no ótimo TERRA ESTRANGEIRA (1995), protagonizado por Fernanda Torres, mas talvez o exemplo mais explícito de seu apoio à esquerda, mesmo sendo um dos homens mais ricos do mundo, tenha sido ao mostrar a juventude de Che Guevara em DIÁRIOS DE MOTOCICLETA (2004).

Torço para que AINDA ESTOU AQUI seja bem visto no mundo todo, mas que seja muito visto principalmente no Brasil. É a nossa memória. Sem falar que é também a chance de vermos uma das maiores interpretações da história do cinema brasileiro. Enfim, é tanta coisa junta que o hype é totalmente justificado.

+ TRÊS FILMES

CONTINENTE

Tem dias que a gente vai ao cinema de teimoso, mesmo não estando com a saúde lá muito boa. E se eu ouvi de pessoas da sessão que saíram da experiência de CONTINENTE (2024) com certo mal-estar, ou náusea, há de se imaginar que eu também saí, estando eu um tanto febril. O terceiro longa-metragem de Davi Pretto no início guarda semelhanças com outras obras que abordam a nossa herança escravocrata, como PROPRIEDADE, de Daniel Bandeira, ou O SOM AO REDOR, de Kleber Mendonça Filho. Mas Pretto opta por seguir por um outro caminho, inclusive fazendo referências explícitas a clássicos do cinema de horror mais sangrento, como DESEJO E OBSESSÃO ou POSSESSÃO, ou até mesmo O VÍCIO, do Ferrara. É então que o filme ganha uma aura um pouco mais difícil de penetrar. Sem falar que sua opção não é pelo horror como elemento de conforto pela familiaridade, mas como elemento de mal-estar, pois mais próximo do realismo. É filme para ficar ainda pensando nos dias seguintes.

NINGUÉM SAI VIVO DAQUI

Filme de mal-estar esse NINGUÉM SAI VIVO DAQUI (2023). Apesar de gostar do final, não é fácil acompanhar o desenvolvimento da trama, que foca numa garota de 23 anos que é internada contra sua vontade num hospital psiquiátrico que funciona como uma sucursal do inferno, com direito a trabalho forçado, pessoas morrendo de frio ou enlouquecendo com métodos de eletrochoque. Um hospital que existiu de verdade no interior de São Paulo. O diretor André Ristum opta por uma fotografia em preto e branco estilizada, que não combinaria nem se sua obra fosse de realismo social nem muito menos se se assumisse como um exploitation de prisão, como se fazia antigamente, ou mesmo terror. De todo modo, gosto da atriz principal, Fernanda Marques, que defende bem sua personagem. Augusto Madeira também está odiosamente bem como um dos funcionários mais sádicos do lugar.

SEM CORAÇÃO

Uma alegria perceber o quanto o cinema brasileiro está vivendo um dos melhores momentos de sua história. SEM CORAÇÃO (2023), de Nara Normande e Tião, é um dos títulos que certamente será lembrado no futuro quando pensarmos nesta era de ouro. O filme começa e já ficamos encantados com as imagens em janela scope daqueles jovens desfrutando de uma praia paradisíaca do litoral do nordeste (as locações foram em Alagoas). O longa nasceu do sucesso do curta-metragem de mesmo nome (2014) e tem a habilidade natural de nos afeiçoar a seus personagens. A alguns mais do que a outros, mas o suficiente para que cada cena apresentada seja degustada com muito prazer e alegria. Maya de Vicq (estreando lindamente como a protagonista Tamara) conversando com Maeve Jinkins enquanto ouvem uma canção de Maria Bethânia. As cenas no forró. A conversa final entre Maya e Eduarda Samara (a "Sem Coração" do título). A invasão à casa dos vizinhos. A piscina vazia como local de iniciação sexual dos meninos. O jovem e querido delinquente, triste com sua condição, e o encontro com o pai. Há todo um contexto social que o filme conduz de maneira às vezes rápida o suficiente para que queiramos vê-lo uma segunda ou terceira vez para captar melhor. E há as cenas de sonho que só não são mais lindas que as que apresentam a natureza real, pois essa natureza é representativa de uma quase utopia, até pelo fato de os jovens mais ricos serem amigos dos filhos de pescadores, como se a sociedade ainda não os tivesse corrompido. Exceto pelo perigo que os ronda, especialmente para o rapaz gay que insiste em ser feliz, ou para os mais desfavorecidos. E que luxo poder ver um filme como este numa sala tão bem equipada.

quarta-feira, novembro 06, 2024

CASA DE BAMBU (House of Bamboo)



Acordei hoje sentindo um silêncio incômodo dos amigos nas redes. Ninguém comentando sobre a vitória de Donald Trump nas urnas, seu segundo mandato. É algo tão inacreditável que o calar-se parece ser o melhor a fazer. Pelo menos por enquanto, já que a história nos contou o que aconteceu com o mundo nos anos 1930, com a ascensão dos nazistas e dos fascistas. Ver isso ocorrendo de novo e agora num país extremamente poderoso como os Estados Unidos é de dar medo, até porque as falas xenófobas desse Trump 2.0 parecem ainda mais agressivas.

Coincidência ou não, em casa, de atestado médico, com uma gripe incômoda e que causa cansaço mental, tento escrever algumas linhas, mesmo assim, sobre um diretor que buscou refletir sobre a relação dos americanos com os estrangeiros. Samuel Fuller foi se tornando cada vez mais interessado na Ásia. Lutou na Segunda Guerra e foi também um entusiasta do exército americano e um apaixonado pelo tema da guerra, como podemos perceber em seus filmes, sempre poéticos. Mesmo um filme como A DAMA DE PRETO (1952), que exalta o jornalismo, uma forma de linguagem supostamente mais objetiva, é cheio de paixão. CAPACETE DE AÇO (1951), seu primeiro filme cuja história se passa na Ásia (Coreia), possui um tom humanista encantador.

Mas não estava preparado para CASA DE BAMBU (1955), que se tornou um dos meus favoritos do realizador até o momento, junto com o noir ANJO DO MAL (1953). Uma das graças de CASA DE BAMBU está no quanto o filme vai nos surpreendendo a cada momento. Seja na identidade e nas intenções dos personagens de Robert Stack e Robert Ryan, seja na evolução da trama, de como o líder de quadrilha (Ryan) vai se aproximando e gostando mais daquele homem com suposto histórico de crimes (Stack).

A aproximação dos dois até ganha certa conotação homoerótica, ainda que muito sutil. Li uma crítica que fala da relação dos dois como uma espécie de traição homossexual, e de como isso acaba por enfatizar a relação dos dois homens. E há a mulher japonesa, viúva, Mariko (Shirley Yamaguchi) que se encanta com o personagem de Stack, que esconde uma identidade diferente para se aproximar dela e saber mais de seu marido. Gosto muito de como o relacionamento dos dois vai se tornando mais íntimo, a cada encontro, e de como eles usam a atração que sentem um pelo outro como subterfúgio para se vingar dos assassinos do marido de Mariko.

O filme mistura os gêneros de western, espionagem e aventura com pitadas de romance e suspense e é impressionante como Fuller parece dar conta de todos esses gêneros e ainda trazer profundidade para seus personagens. Talvez seja seu trabalho que melhor explora planos gerais, talvez por ser filmado em scope – o anterior, TORMENTA SOB OS MARES, também era, mas se passava a maior parte do tempo dentro de um submarino, o que não deixa de ser igualmente notável, mas nada como poder apreciar aquele Japão do pós-guerra, como num documentário. Inclusive, esse uso bastante generoso dos planos gerais me fez parar o filme depois de 15 minutos para poder retomá-lo com mais atenção, coisa que recomendo sempre que certo filme exige um pouco mais da gente.

CASA DE BAMBU foi a primeira produção americana a ser rodada no Japão, na época sob controle dos Estados Unidos, num complicado momento do pós-guerra, com os japoneses tendo ódio do povo que os humilhou e que passou a dar as ordens, embora essa relação também vá se tornando mais ambígua e a influência cultural americana se torne muito forte. Fuller sabe muito bem apresentar a figura do americano em território estrangeiro como uma figura muito pouco bem-vinda.

Visto no box A Arte de Samuel Fuller.

+ TRÊS FILMES

PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (Dirty Harry)

Don Siegel foi um diretor que começou sua carreira com filmes noir B nos anos 1940 e fazia milagre com aquelas produções de baixo orçamento. Fez uma transição linda para a Nova Hollywood nos anos 1970, em especial com os filmes estrelados por seu parceiro Clint Eastwood, um discípulo prestes a se tornar maior que o mestre, mas também um ator que esbanja carisma e dá munição para os filmes masculinos e um tanto fascistas do período. É o caso deste PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (1971), que já começa com uma homenagem respeitosa aos policiais de São Francisco, mortos em serviço. Fez-me lembrar os primeiros filmes de guerra de Samuel Fuller. A estrutura deste primeiro título estrelado pelo inspetor Harry Callahan é simples, apresentando de cara o principal vilão, um psicopata chamado scorpio, que vem matando as pessoas usando um rifle de longo alcance. E pessoas do signo de escorpião, embora essa informação me pareça pouco importante. Eu tinha poucas lembranças de PERSEGUIDOR ..., mas a memória veio forte na cena do estádio de futebol, com aquela cena da câmera se afastando do local. Achei interessante o quanto é uma obra que não se importa em ser pouco sutil. Lá pelo final do filme, o vilão já fica passeando todo serelepe para chamar a atenção de seu inimigo. Um dos motivos que me chamou a atenção para revê-lo foi o comentário entusiasmado de Quentin Tarantino em seu livro Especulações Cinematográficas. Segundo Tarantino, Siegel customizou seu filme para as plateias mais velhas, em especial homens rancorosos e muito incomodados com as mudanças que a contracultura trouxe para a sociedade. Hoje certamente encontraria seu público, noutro contexto, embora o personagem de Clint não seja tão simples assim de ler. 

ACERTO FINAL (The Crossing Guard)

Dos três filmes muito masculinos do início da carreira de Sean Penn como diretor, talvez ACERTO FINAL (1995) seja o que menos me agradou, embora tenha um monte de cenas memoráveis e um carinho imenso que sentimos por esses dois personagens atormentados por dores distintas, mas totalmente conectadas. David Morse é o sujeito que dirigiu embriagado, matou uma garotinha de sete anos e passou alguns anos na prisão. Jack Nicholson é o pai da menina, que sonha em matar o sujeito assim que ele sair da prisão, enquanto leva uma vida totalmente errática, depois que seu casamento afundou e sua vida passou a ser sinônimo de beber e sair com prostitutas. Talvez a minha única ressalva com o filme esteja no sentimentalismo da conclusão, logo eu, que sou sentimental. Nicholson abraça um papel difícil, que o leva a situações que fogem um pouco do que estamos acostumados a ver de sua persona, como quando ele liga chorando para a ex-esposa (Anjelica Huston). Gosto muito de como Penn trata essas duas pessoas como dignas de perdão, compreensão, afeto, além de serem homens carismáticos, mesmo quando estão no fundo do poço (em especial, Nicholson, um gigante). Mas uma vez é um filme centrado nos homens, com as personagens femininas (Robin Wright, Huston, Piper Laurie) mais como representativas de um tipo de harmonia e de talvez de compreensão maior da vida que os homens não têm, ocupados tendo que lidar com o enfrentamento de seus próprios demônios.

A PROMESSA (The Pledge)

Não lembrava que A PROMESSA (2001) era tão bom. Talvez na época que o vi (há mais de 20 anos) tenha achado o filme muito arrastado, pois há de fato um andamento menos apressado que faz lembrar o cinema da Nova Hollywood, sensação percebida também em UNIDOS PELO SANGUE, a estreia na direção de Sean Penn. Este seu terceiro filme também conta com um personagem policial e conta com um plot mais delineado, ainda que também seja muito centrado na construção do personagem de Nicholson, o velho policial aposentado que promete pela sua alma que pegará o assassino de uma garotinha. Com o principal suspeito tendo cometido suicídio, o caso é encerrado pelos policiais, mas o nosso velho herói sente que há algo errado ali, que aquele homem não era de fato o assassino. E assim segue, mesmo aposentado, numa busca obsessiva e diária pelo assassino de garotinhas, a partir de pequenas, mas importantes, pistas. Penn consegue um elenco incrível: além de Nicholson (um ícone da Nova Hollywood), há a presença de Aaron Eckhart, Helen Mirren, Robin Wright, Vanessa Redgrave, Sam Shepard, Patricia Clarkson, Benicio Del Toro e Harry Dean Stanton. Trata-se também de um filme sobre a solidão, mais especialmente sobre a solidão na velhice, um tema de certa forma comum em filmes policiais que abordam detetives de polícia que se aposentam. Assim como UNIDOS PELO SANGUE, A PROMESSA termina com um fechamento para o espectador, mas com um não-fechamento para o protagonista, o que provoca sentimentos no mínimo melancólicos. No caso de A PROMESSA, há algo de fabular na narrativa, o que tem tudo a ver com as pistas e as histórias infantis contadas pelo ex-policial para a garotinha. Como um "Chapeuzinho Vermelho" para adultos.

sábado, novembro 02, 2024

O QUARTO AO LADO (The Room Next Door)



Senti falta em O QUARTO AO LADO (2024) daquele momento que comumente acontece nos filmes de Pedro Almodóvar em que ele nos ataca direto no nervo, com um tipo de emoção às vezes inesperada, como o encontro dos ex-amantes em DOR E GLÓRIA (2019), o reencontro do filho com a mãe no final de A PELE QUE HABITO (2011), as palavras duras ao marido traído em CARNE TRÊMULA (1997), a dor da mãe ao perder o filho num acidente no início de TUDO SOBRE MINHA MÃE (1999), ou um estado de sensibilidade à flor da pele tal que uma canção na voz de Caetano Veloso faz aflorar muita emoção em FALE COM ELA (2002).

No entanto, imagino que essa falta de um momento mais aproximado de um melodrama seja necessária para dar uma voz mais sóbria e respeitosa à decisão da personagem de Tilda Swinton – até mais que em MAR ADENTRO, de Alejandro Amenábar. Em O QUARTO AO LADO, Swinton é Martha, uma mulher que está com câncer estágio 3, se submetendo a testes experimentais quando encontra a amiga que há tempos não via, Ingrid, vivida por Julianne Moore. A amizade das duas, um tanto afastada talvez por motivos profissionais, passa a ganhar força novamente. Ingrid é romancista; Martha é jornalista especializada em guerras. São duas mulheres que veem a vida de maneira diferente e isso é simbolizado por seus próprios ofícios.

Ingrid é pega de surpresa quando Martha pede a ela que lhe faça um grande favor. Martha havia comprado uma pílula para a eutanásia na deep web e só precisava de alguém que estivesse no quarto ao lado, no momento em que ela resolvesse partir. Nem seria preciso alguém que segurasse sua mão, algo que geralmente se imagina que alguém que está prestes a morrer deseje. Inclusive, é difícil não lembrar de caso recente, da notícia que recebemos da morte de Antonio Cicero, poeta, filósofo, letrista, crítico literário, que decidiu se submeter a um suicídio assistido na Suíça, depois um tempo convivendo com o Alzheimer. Para Cicero, isso seria uma forma digna de deixar a vida, pois já se sabe o que acontece com o corpo e a mente com a progressão da doença.

Esse tipo de decisão é muito polêmico e já vimos outros filmes que tratam da interrupção da vida e que nos pegaram até com mais força, com bem menos misericórdia, como MENINA DE OURO, de Clint Eastwood, e AMOR, de Michael Haneke. Poderíamos citar outros filmes com a temática do suicídio, como O VENTO DA NOITE e A FRONTEIRA DA ALVORADA, ambos de Philippe Garrel, mas sabemos que Garrel é um homem assombrado pela depressão. Já Almodóvar é um homem apaixonado pela vida e deixa bastante claro isso em cada uma de suas obras. Por isso a partida deste mundo é até relativamente postergada por Martha, que, na casa onde fica com Ingrid, aproveita alguns dias para apreciar a beleza e o cheiro da natureza ao redor.

Em DOR E GLÓRIA (2019), talvez o seu trabalho mais pessoal, o cineasta já falava sobre o quanto as dores no corpo interferem no prazer estético e no processo criativo. E desta vez esse assunto aparece de maneira muito mais forte ao tratar da mente drenada pelo câncer e dos tratamentos de quimioterapia. Mas o que eu mais temia quanto ao filme era perder a essência almodovariana por causa da língua inglesa, até por não ter gostado muito dos curtas A VOZ HUMANA (2020) e ESTRANHA FORMA DE VIDA (2023), e felizmente isso não acontece em O QUARTO AO LADO. Além do mais, de que outra maneira Almodóvar poderia realizar um sonho que é trabalhar com duas gigantes como Tilda Swinton e Julianne Moore?

Senti algumas travas nos diálogos, mas tudo bem. E as atrizes extraordinárias brilham muito num dueto que nos remete a PERSONA, de Ingmar Bergman. Mas eu até diria que o cineasta que ele mais faz referência desta vez é Alfred Hitchcock, tanto o de DISQUE M PARA MATAR (pela preparação da situação) quanto o de UM CORPO QUE CAI (em certas cenas finais). Além do mais, Almodóvar exercita muito bem o suspense nas cenas em que Ingrid acorda e olha para a porta (vermelha) para ver se está aberta ou fechada. 

E mais uma vez aqui Almodóvar deixa claras suas posições políticas, alfinetando através do personagem de John Turturro a extrema direita e o liberalismo como males imensos de nossa sociedade. E isso parece ser uma tendência do cinema recente do realizador: em MÃES PARALELAS (2021) ele havia tratado das pessoas desaparecidas durante o franquismo. Que bom ver que estamos do lado das melhores pessoas deste mundo.

+ TRÊS FILMES

TUESDAY – O ÚLTIMO ABRAÇO (Tuesday)

Achei curioso este filme ter ganhado espaço no circuito exibidor, ainda mais em cinemas de shopping. Não sei o quanto a presença de Julia Louis-Dreyfus pode ser um chamariz ou se a produtora A24 já está com essa popularidade toda. TUESDAY – O ÚLTIMO ABRAÇO (2023), o longa-metragem de estreia da croata Daina O. Pusić, é bem estranho, já que entre os três personagens principais está um pássaro, uma espécie de anjo da morte, que fala e muda de tamanho, de quase invisível para gigante. Ele chega para dar o fim definitivo à jovem filha da personagem de Louis-Dreyfus, vivendo sob os cuidados de uma enfermeira diariamente, e com a saúde muito delicada. Curiosamente, eu gosto mais da interpretação da ex-Elaine de SEINFELD mais perto do final. Gosto muito da última conversa que ela tem com o pássaro, talvez a minha favorita. Eu costumo gostar de filmes sobre luto e nem sei se é possível dizer que este é exatamente sobre luto; seria mais sobre o adiamento da morte e do posterior luto.

AQUELA SENSAÇÃO QUE O TEMPO DE FAZER ALGO PASSOU (The Feeling That the Time for Doing Something Has Passed)

Enquanto via este filme de Joanna Arnow me lembrava de Lena Dunham e sua maravilhosa série GIRLS. Isso porque a criadora da série também não se importava em aparecer nua em sua criação, além de se mostrar num relacionamento um tanto estranho com o personagem de Adam Driver. Joanna Arnow estreia no longa-metragem – se não contarmos com o filme de 56 min I HATE MYSELF (2013) – fazendo algo novo: aborda uma vida próxima do tédio de uma garota que tem por hábito ser a submissa em relações BDSM. AQUELA SENSAÇÃO QUE O TEMPO DE FAZER ALGO PASSOU (2023) não chega a ser exploratório na violência consentida desse tipo de relação (até pega bem leve), mas também não há a intenção de esconder detalhes das situações. Além do mais, a diretora faz questão de mostrar a vida profissional de sua personagem como algo bem pouco atraente, para não dizer ridículo, e de certa forma faz lembrar um pouco o recente ÀS VEZES QUERO SUMIR, de Rachel Lambert, que é mais romântico, enquanto o filme de Arnow é mais amargo e cheio de desencanto. Até a fotografia carece de mais cor, o que tem tudo a ver com o mundo da protagonista.

ÀS VEZES QUERO SUMIR (Sometimes I Think about Dying)

Saída do cinema bem indie americano, Rachel Lambert já está em seu quarto longa-metragem, demonstrando rigor formal e sensibilidade. Aparentemente o filme começa dentro de um ambiente que faz lembrar a série THE OFFICE, e temos ali uma personagem muito tímida e cheia de medos e desejos, vivida por Daisy Ridley, que fica ali no cantinho dela, mal falando qualquer palavra. Ela tem pensamentos sobre diferentes maneiras de morrer, e isso é ao mesmo tempo uma obsessão e um desejo. Seu campo de desejo muda quando surge em cena um novo funcionário na empresa. É quando a personagem também nos apresenta um pouquinho mais de si, daquilo que é capaz de fazer e de (se) surpreender. Um filme claramente pequeno, no melhor sentido do termo, ÀS VEZES QUERO SUMIR (2023) não é exatamente um filme sobre a rotina, mas sobre aquilo que acontece de especial, de diferente, na vida da personagem feminina, como ir ao cinema ou compartilhar um doce com o sujeito por quem se sente atraída. Dá para notar que a diretora é fã de David Lynch, pois quem conhece TWIN PEAKS vai perceber uma das canções mais lindas cantadas por Julee Cruise em determinado momento. E que final bonito, mostrando que é possível usar a simplicidade para criar algo brilhante.