sábado, novembro 02, 2024

O QUARTO AO LADO (The Room Next Door)



Senti falta em O QUARTO AO LADO (2024) daquele momento que comumente acontece nos filmes de Pedro Almodóvar em que ele nos ataca direto no nervo, com um tipo de emoção às vezes inesperada, como o encontro dos ex-amantes em DOR E GLÓRIA (2019), o reencontro do filho com a mãe no final de A PELE QUE HABITO (2011), as palavras duras ao marido traído em CARNE TRÊMULA (1997), a dor da mãe ao perder o filho num acidente no início de TUDO SOBRE MINHA MÃE (1999), ou um estado de sensibilidade à flor da pele tal que uma canção na voz de Caetano Veloso faz aflorar muita emoção em FALE COM ELA (2002).

No entanto, imagino que essa falta de um momento mais aproximado de um melodrama seja necessária para dar uma voz mais sóbria e respeitosa à decisão da personagem de Tilda Swinton – até mais que em MAR ADENTRO, de Alejandro Amenábar. Em O QUARTO AO LADO, Swinton é Martha, uma mulher que está com câncer estágio 3, se submetendo a testes experimentais quando encontra a amiga que há tempos não via, Ingrid, vivida por Julianne Moore. A amizade das duas, um tanto afastada talvez por motivos profissionais, passa a ganhar força novamente. Ingrid é romancista; Martha é jornalista especializada em guerras. São duas mulheres que veem a vida de maneira diferente e isso é simbolizado por seus próprios ofícios.

Ingrid é pega de surpresa quando Martha pede a ela que lhe faça um grande favor. Martha havia comprado uma pílula para a eutanásia na deep web e só precisava de alguém que estivesse no quarto ao lado, no momento em que ela resolvesse partir. Nem seria preciso alguém que segurasse sua mão, algo que geralmente se imagina que alguém que está prestes a morrer deseje. Inclusive, é difícil não lembrar de caso recente, da notícia que recebemos da morte de Antonio Cicero, poeta, filósofo, letrista, crítico literário, que decidiu se submeter a um suicídio assistido na Suíça, depois um tempo convivendo com o Alzheimer. Para Cicero, isso seria uma forma digna de deixar a vida, pois já se sabe o que acontece com o corpo e a mente com a progressão da doença.

Esse tipo de decisão é muito polêmico e já vimos outros filmes que tratam da interrupção da vida e que nos pegaram até com mais força, com bem menos misericórdia, como MENINA DE OURO, de Clint Eastwood, e AMOR, de Michael Haneke. Poderíamos citar outros filmes com a temática do suicídio, como O VENTO DA NOITE e A FRONTEIRA DA ALVORADA, ambos de Philippe Garrel, mas sabemos que Garrel é um homem assombrado pela depressão. Já Almodóvar é um homem apaixonado pela vida e deixa bastante claro isso em cada uma de suas obras. Por isso a partida deste mundo é até relativamente postergada por Martha, que, na casa onde fica com Ingrid, aproveita alguns dias para apreciar a beleza e o cheiro da natureza ao redor.

Em DOR E GLÓRIA (2019), talvez o seu trabalho mais pessoal, o cineasta já falava sobre o quanto as dores no corpo interferem no prazer estético e no processo criativo. E desta vez esse assunto aparece de maneira muito mais forte ao tratar da mente drenada pelo câncer e dos tratamentos de quimioterapia. Mas o que eu mais temia quanto ao filme era perder a essência almodovariana por causa da língua inglesa, até por não ter gostado muito dos curtas A VOZ HUMANA (2020) e ESTRANHA FORMA DE VIDA (2023), e felizmente isso não acontece em O QUARTO AO LADO. Além do mais, de que outra maneira Almodóvar poderia realizar um sonho que é trabalhar com duas gigantes como Tilda Swinton e Julianne Moore?

Senti algumas travas nos diálogos, mas tudo bem. E as atrizes extraordinárias brilham muito num dueto que nos remete a PERSONA, de Ingmar Bergman. Mas eu até diria que o cineasta que ele mais faz referência desta vez é Alfred Hitchcock, tanto o de DISQUE M PARA MATAR (pela preparação da situação) quanto o de UM CORPO QUE CAI (em certas cenas finais). Além do mais, Almodóvar exercita muito bem o suspense nas cenas em que Ingrid acorda e olha para a porta (vermelha) para ver se está aberta ou fechada. 

E mais uma vez aqui Almodóvar deixa claras suas posições políticas, alfinetando através do personagem de John Turturro a extrema direita e o liberalismo como males imensos de nossa sociedade. E isso parece ser uma tendência do cinema recente do realizador: em MÃES PARALELAS (2021) ele havia tratado das pessoas desaparecidas durante o franquismo. Que bom ver que estamos do lado das melhores pessoas deste mundo.

+ TRÊS FILMES

TUESDAY – O ÚLTIMO ABRAÇO (Tuesday)

Achei curioso este filme ter ganhado espaço no circuito exibidor, ainda mais em cinemas de shopping. Não sei o quanto a presença de Julia Louis-Dreyfus pode ser um chamariz ou se a produtora A24 já está com essa popularidade toda. TUESDAY – O ÚLTIMO ABRAÇO (2023), o longa-metragem de estreia da croata Daina O. Pusić, é bem estranho, já que entre os três personagens principais está um pássaro, uma espécie de anjo da morte, que fala e muda de tamanho, de quase invisível para gigante. Ele chega para dar o fim definitivo à jovem filha da personagem de Louis-Dreyfus, vivendo sob os cuidados de uma enfermeira diariamente, e com a saúde muito delicada. Curiosamente, eu gosto mais da interpretação da ex-Elaine de SEINFELD mais perto do final. Gosto muito da última conversa que ela tem com o pássaro, talvez a minha favorita. Eu costumo gostar de filmes sobre luto e nem sei se é possível dizer que este é exatamente sobre luto; seria mais sobre o adiamento da morte e do posterior luto.

AQUELA SENSAÇÃO QUE O TEMPO DE FAZER ALGO PASSOU (The Feeling That the Time for Doing Something Has Passed)

Enquanto via este filme de Joanna Arnow me lembrava de Lena Dunham e sua maravilhosa série GIRLS. Isso porque a criadora da série também não se importava em aparecer nua em sua criação, além de se mostrar num relacionamento um tanto estranho com o personagem de Adam Driver. Joanna Arnow estreia no longa-metragem – se não contarmos com o filme de 56 min I HATE MYSELF (2013) – fazendo algo novo: aborda uma vida próxima do tédio de uma garota que tem por hábito ser a submissa em relações BDSM. AQUELA SENSAÇÃO QUE O TEMPO DE FAZER ALGO PASSOU (2023) não chega a ser exploratório na violência consentida desse tipo de relação (até pega bem leve), mas também não há a intenção de esconder detalhes das situações. Além do mais, a diretora faz questão de mostrar a vida profissional de sua personagem como algo bem pouco atraente, para não dizer ridículo, e de certa forma faz lembrar um pouco o recente ÀS VEZES QUERO SUMIR, de Rachel Lambert, que é mais romântico, enquanto o filme de Arnow é mais amargo e cheio de desencanto. Até a fotografia carece de mais cor, o que tem tudo a ver com o mundo da protagonista.

ÀS VEZES QUERO SUMIR (Sometimes I Think about Dying)

Saída do cinema bem indie americano, Rachel Lambert já está em seu quarto longa-metragem, demonstrando rigor formal e sensibilidade. Aparentemente o filme começa dentro de um ambiente que faz lembrar a série THE OFFICE, e temos ali uma personagem muito tímida e cheia de medos e desejos, vivida por Daisy Ridley, que fica ali no cantinho dela, mal falando qualquer palavra. Ela tem pensamentos sobre diferentes maneiras de morrer, e isso é ao mesmo tempo uma obsessão e um desejo. Seu campo de desejo muda quando surge em cena um novo funcionário na empresa. É quando a personagem também nos apresenta um pouquinho mais de si, daquilo que é capaz de fazer e de (se) surpreender. Um filme claramente pequeno, no melhor sentido do termo, ÀS VEZES QUERO SUMIR (2023) não é exatamente um filme sobre a rotina, mas sobre aquilo que acontece de especial, de diferente, na vida da personagem feminina, como ir ao cinema ou compartilhar um doce com o sujeito por quem se sente atraída. Dá para notar que a diretora é fã de David Lynch, pois quem conhece TWIN PEAKS vai perceber uma das canções mais lindas cantadas por Julee Cruise em determinado momento. E que final bonito, mostrando que é possível usar a simplicidade para criar algo brilhante.

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