sábado, novembro 09, 2024

AINDA ESTOU AQUI



“A ignorância é vizinha da maldade”
Provérbio arábe com frequência citado por Renato Russo


Uma das coisas mais lamentáveis no cenário atual, em que vemos cada vez mais pessoas aderindo aos valores da extrema direita, é o quanto elas ficam tão cegas diante dos fatos, que até preferem deixar de apreciar o melhor que os intelectuais e os artistas produzem, preferindo a ignorância e a estupidez. E sendo artistas pessoas geralmente sensíveis e humanistas, eles tendem a lamentar tudo que é destrutivo ao ser humano, tudo que pode causar dor e morte em larga escala, como uma ditadura autoritária que faz desaparecer (isso significando torturar, matar e sumir com o corpo) milhares de pessoas, sem assumir o crime, o que soma também outra característica a esses criminosos: a covardia. (Escrevo isso, aliás, com a nova edição caprichada do clássico quadrinho O Eternauta, de Héctor G. Oesterheld e Francisco Solano López. Oesterheld foi um “desaparecido” pela ditadura argentina.)

Não gosto de dizer isso sobre filmes, mas de vez em quando surge algum que meio que nos força a dizer: AINDA ESTOU AQUI (2024), de Walter Salles, é um filme necessário. O Brasil tem um sério problema de memória e é importante que tenhamos um filme que dê rostos a pessoas que foram vítimas de assassinatos cometidos pelo regime militar. O rosto de Rubens Paiva, vivido por Selton Mello, o rosto de sua esposa Eunice, vivida por Fernanda Torres, e o de seus filhos, tão jovens e cheios de vida e depois tendo que lidar com essa tragédia capaz de nos deixar muito indignados, muito putos. E esse foi o sentimento que mais tive ao longo do filme, embora o prazer de ver uma obra tão bem dirigida, encenada, atuada, fotografada, esse prazer também não tem preço.

A primeira parte do filme, que nos leva à casa de Rubens e Eunice, à alegria daquele lar, daquela casa de frente para o mar (a mesma casa onde eles viveram, inclusive), é essencial para que experimentemos um pouco do que foi a vida daquela família antes de três homens armados aparecerem e levarem o pai de família. As meninas dançando ao som de “Je t'aime... moi non plus”, de Serge Gainsbourg, canções de Erasmo Carlos (“É preciso dar um jeito, meu amigo) e de Tom Zé (“Jimmy, Renda-se”), entre outras como que para enfatizar a riqueza musical daquele período e nos trazer orgulho de nossa cultura, o brincar na praia e o cachorrinho que é acolhido pelo pequeno Marcelo, o carinho de Rubens com os filhos e a atenção da mãe Eunice, o entusiasmo da filha mais velha Vera (Valentina Herszage, de MATE-ME POR FAVOR) com a ida para a Europa.

Nesse primeiro momento, também sentimos o gosto da repressão da polícia na cena em que Vera, junto com uns amigos num carro, é parada e revistada agressivamente numa blitz. E também na notícia do sequestro do embaixador suíço pelo grupo de Carlos Lamarca, em dezembro de 1970, anunciado pela voz de Cid Moreira no Jornal Nacional. Uma das filhas de Rubens, Eliana, vivida por Luiza Kosovski (SEM SEU SANGUE) se mostra a mais atenta à tensão política existente no Brasil e presente nos noticiários, que precisam ser sempre lidos nas entrelinhas.

O diretor de fotografia Adrian Teijido é o mesmo de MARIGHELLA, de Wagner Moura, um filme de tons mais escuros. Aqui esses tons escuros se equilibram com o céu azul e solar do Rio de Janeiro, como que escondendo o que acontecia no Brasil. E Walter Salles opta pela película 35 mm, deixando as imagens muito mais próximas de uma ambientação da década de 1970.

Quanto ao registro mais clássico, gosto muito da decisão de Salles de evitar o choro fácil, até como uma maneira de ser fiel à personagem de Fernanda Torres. A cena já conhecida de Eunice querendo que todos sorriam na foto para a revista Manchete é representativa disso. Afinal, é assim que os inimigos os queriam: chorando, tristes, destruídos. E não foi assim que Eunice os ensinou a viver, como mãe e como ativista dos direitos dos povos indígenas.

Fernanda Torres tem aqui o papel da vida dela. E olha que ela já começou muito bem, com INOCÊNCIA, de Walter Lima Jr. e ganhou prêmio de melhor atriz em Cannes por EU SEI QUE VOU TE AMAR, de Arnaldo Jabor, prêmio, aliás, que as pessoas tendem a esquecer. Ou seja, em Cannes 2024 ela concorria a seu segundo prêmio de atuação e recentemente ganhou um prêmio internacional do Critics Choice, por sua atuação em AINDA ESTOU AQUI. Sua interpretação no filme de Salles é incrível, no quanto se destaca especialmente quando precisa esconder os sentimentos de tristeza para os filhos, de modo a não os deixar ainda mais tristes, com o desaparecimento do pai. Como sou muito ruim em analisar interpretações não sei muito o que dizer, mas sei o quanto Fernanda foi/é gigante.

Quanto à simpatia de Walter Salles pelas causas de esquerda, elas já podiam ser percebidas no início da carreira com a adaptação de um autor censurado durante o regime militar, Rubem Fonseca, no subestimado A GRANDE ARTE (1991), feito num momento em que Collor de Mello havia destruído a Embrafilme. Depois os próprios anos Collor seriam contados no ótimo TERRA ESTRANGEIRA (1995), protagonizado por Fernanda Torres, mas talvez o exemplo mais explícito de seu apoio à esquerda, mesmo sendo um dos homens mais ricos do mundo, tenha sido ao mostrar a juventude de Che Guevara em DIÁRIOS DE MOTOCICLETA (2004).

Torço para que AINDA ESTOU AQUI seja bem visto no mundo todo, mas que seja muito visto principalmente no Brasil. É a nossa memória. Sem falar que é também a chance de vermos uma das maiores interpretações da história do cinema brasileiro. Enfim, é tanta coisa junta que o hype é totalmente justificado.

+ TRÊS FILMES

CONTINENTE

Tem dias que a gente vai ao cinema de teimoso, mesmo não estando com a saúde lá muito boa. E se eu ouvi de pessoas da sessão que saíram da experiência de CONTINENTE (2024) com certo mal-estar, ou náusea, há de se imaginar que eu também saí, estando eu um tanto febril. O terceiro longa-metragem de Davi Pretto no início guarda semelhanças com outras obras que abordam a nossa herança escravocrata, como PROPRIEDADE, de Daniel Bandeira, ou O SOM AO REDOR, de Kleber Mendonça Filho. Mas Pretto opta por seguir por um outro caminho, inclusive fazendo referências explícitas a clássicos do cinema de horror mais sangrento, como DESEJO E OBSESSÃO ou POSSESSÃO, ou até mesmo O VÍCIO, do Ferrara. É então que o filme ganha uma aura um pouco mais difícil de penetrar. Sem falar que sua opção não é pelo horror como elemento de conforto pela familiaridade, mas como elemento de mal-estar, pois mais próximo do realismo. É filme para ficar ainda pensando nos dias seguintes.

NINGUÉM SAI VIVO DAQUI

Filme de mal-estar esse NINGUÉM SAI VIVO DAQUI (2023). Apesar de gostar do final, não é fácil acompanhar o desenvolvimento da trama, que foca numa garota de 23 anos que é internada contra sua vontade num hospital psiquiátrico que funciona como uma sucursal do inferno, com direito a trabalho forçado, pessoas morrendo de frio ou enlouquecendo com métodos de eletrochoque. Um hospital que existiu de verdade no interior de São Paulo. O diretor André Ristum opta por uma fotografia em preto e branco estilizada, que não combinaria nem se sua obra fosse de realismo social nem muito menos se se assumisse como um exploitation de prisão, como se fazia antigamente, ou mesmo terror. De todo modo, gosto da atriz principal, Fernanda Marques, que defende bem sua personagem. Augusto Madeira também está odiosamente bem como um dos funcionários mais sádicos do lugar.

SEM CORAÇÃO

Uma alegria perceber o quanto o cinema brasileiro está vivendo um dos melhores momentos de sua história. SEM CORAÇÃO (2023), de Nara Normande e Tião, é um dos títulos que certamente será lembrado no futuro quando pensarmos nesta era de ouro. O filme começa e já ficamos encantados com as imagens em janela scope daqueles jovens desfrutando de uma praia paradisíaca do litoral do nordeste (as locações foram em Alagoas). O longa nasceu do sucesso do curta-metragem de mesmo nome (2014) e tem a habilidade natural de nos afeiçoar a seus personagens. A alguns mais do que a outros, mas o suficiente para que cada cena apresentada seja degustada com muito prazer e alegria. Maya de Vicq (estreando lindamente como a protagonista Tamara) conversando com Maeve Jinkins enquanto ouvem uma canção de Maria Bethânia. As cenas no forró. A conversa final entre Maya e Eduarda Samara (a "Sem Coração" do título). A invasão à casa dos vizinhos. A piscina vazia como local de iniciação sexual dos meninos. O jovem e querido delinquente, triste com sua condição, e o encontro com o pai. Há todo um contexto social que o filme conduz de maneira às vezes rápida o suficiente para que queiramos vê-lo uma segunda ou terceira vez para captar melhor. E há as cenas de sonho que só não são mais lindas que as que apresentam a natureza real, pois essa natureza é representativa de uma quase utopia, até pelo fato de os jovens mais ricos serem amigos dos filhos de pescadores, como se a sociedade ainda não os tivesse corrompido. Exceto pelo perigo que os ronda, especialmente para o rapaz gay que insiste em ser feliz, ou para os mais desfavorecidos. E que luxo poder ver um filme como este numa sala tão bem equipada.

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