sábado, setembro 30, 2023
ESTRANHA FORMA DE VIDA (Extraña Forma de Vida / Strange Way of Life)
Meu respeito e admiração por Pedro Almodóvar remonta ao início de minha cinefilia. Lembro-me de quando a revista SET fez uma eleição dos melhores filmes da década de 1980, na edição de dezembro de 1989 (se não me engano), e MULHERES À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS (1988) ficou na décima posição. [Para dar a informação completa, o primeiro lugar ficou com ASAS DO DESEJO, de Wim Wenders; seguido de OS ELEITOS, de Phillip Kaufman (2º colocado); FANNY E ALEXANDER, de Ingmar Bergman (3º); TOURO INDOMÁVEL, de Martin Scorsese (4º); RAN, de Akira Kurosawa (5º); OS INTOCÁVEIS, de Brian De Palma (6º); CABRA MARCADO PARA MORRER, de Eduardo Coutinho (7º); UMA CILADA PARA ROGER RABBIT, de Robert Zemeckis (8º); e CASANOVA E A REVOLUÇÃO, de Ettore Scola (9º).]
Ou seja, desde o início fui convidado a celebrar o cinema do diretor, mesmo sem conhecê-lo o bastante. Lembro-me com carinho do meu primeiro Almodóvar no cinema, que aconteceu um pouco depois dessa eleição. Foi com ATA-ME (1989), visto provavelmente em 1990, no saudoso Cine Center Um. Ali o cineasta já havia me ganhado, mas acredito que não totalmente, já que só comecei a ficar de fato apaixonado pelo seu trabalho quando compreendi que as comédias da fase inicial são tão derramadas de emoção e sentimento quanto seus melodramas da fase mais madura, a partir de A FLOR DO MEU SEGREDO (1995).
Infelizmente ESTRANHA FORMA DE VIDA (2023) me fez voltar alguns passos, me fez perder um pouco a fé no cineasta, por assim dizer, já que não ingressei no drama dos personagens, nem ri com os aspectos supostamente cômicos que ele promove, ao tentar virar o western do avesso, trazendo personagens homossexuais dentro do ambiente árido do velho oeste, normalmente dotado de uma masculinidade de linha mais tradicional. Na verdade, nunca saí da sessão de um Almodóvar tão decepcionado. Não conto outro curta, LA CONCEJALA ANTROPÓFAGA (2009), pois considero esse apenas uma brincadeira surgida a partir de ABRAÇOS PARTIDOS (2009).
Mas talvez o segredo esteja aí: considerar ESTRANHA FORMA DE VIDA uma brincadeira. O próprio diretor, na entrevista de cerca de 40 minutos que se segue ao curta, conta do quanto para ele foi importante dirigir atores em língua inglesa, trazendo como molde um gênero tipicamente americano, e do quanto sentiu mais liberdade com o formato do curta-metragem, quando pôde experimentar mais. Na verdade, ele parece se esquecer que é Pedro Almodóvar, um gigante que tem cacife suficiente para fazer um longa-metragem bem experimental, se assim o quiser.
Em ESTRANHA FORMA DE VIDA, em nenhum momento me senti envolvido pelos personagens, pelos aspectos visuais ou pela trama, que narra a reunião de dois caubóis que viveram momentos de intimidade no passado apó 25 anos. As circunstâncias, porém, não os beneficiam. E nem se trata aqui de não se identificar com a orientação sexual dos personagens, já que eu me emocionei bastante com a cena do reencontro dos dois namorados do passado em DOR E GLÓRIA (2019). Ou seja, fiquei com a má impressão de que Almodóvar estava um tanto preguiçoso, até. Claro que está lá na marcas do autor, como a questão da prisão, uma espécie de fetiche já apresentada no já citado ATA-ME, mas também de maneira mais perigosa, em A PELE QUE HABITO (2011), ou dramática, em CARNE TRÊMULA (1997). No novo filme, depois de ficar ferido de bala pelo personagem de Pedro Pascal, o personagem do xerife de Ethan Hawke, é tratado na cama pela pessoa que o feriu, mas que também o ama e deseja.
Embora não tenha gostado o tanto que gostaria, achei interessante ver o quanto Almodóvar chegou em tão alto prestígio que conseguiu vender um curta-metragem em salas de cinema no mundo todo, quando sabemos que se trata de um formato rejeitado, muito pouco comercial. Mas o que eu quero mesmo é ver o novo filme falado em espanhol do mestre. Almodóvar em inglês até agora não funcionou para mim. A boa notícia (e talvez com uma má notícia junto) é que ele tem dois projetos de longa-metragem em andamento: um em espanhol, outro em inglês. Estou também ansioso para que saia a edição brasileira de El Último Sueño, o livro de textos autobiográficos escritos pelo cineasta.
Quanto à entrevista que vem como bônus, o que acharam dele dizer que os filmes do western spaghetti, exceto os de Sergio Leone, e um ou outro do Sergio Corbucci, não são bons? Não sou um grande conhecedor do subgênero, mas imagino que é uma opinião controversa, especialmente entre os fãs. Confere? Além do mais, que entrevista mal editada, com uma moça que não parecia interessada em ouvir o entrevistador. Podiam ter entregado a algum crítico francês que o resultado sairia bem melhor.
+ DOIS FILMES
O JOGO DA GUERRA (The War Game)
Não deixa de ser uma ironia um falso documentário ganhar o Oscar de melhor documentário. E uma vez que sabemos da longa trajetória de tentativas de exibição de O JOGO DA GUERRA (1966), especialmente na televisão britânica, e do quanto foi considerado perigoso pelo governo do país, ganhar "documentário" foi uma vitória e tanto, já que o que é mostrado – cidades da Inglaterra sofrendo um ataque nuclear – era bastante realista naquele cenário da guerra fria, ainda mais que fazia apenas 20 anos que as duas bombas atômicas haviam devastado Hiroshima e Nagasaki. O tom deliberado de narração radiofônica, ou de cinejornais, proposto por Peter Watkins, junto com o realismo das imagens, certamente causou muito impacto em que o viu na época. Chamou-me muito a atenção o humor ácido, especialmente quando há comentários sobre a igreja católica, mas também quando deixa bem evidente o racismo dos ingleses. Filme visto no box Clássicos Sci-Fi – Pós-Apocalipse.
NINGUÉM VAI TE SALVAR (No One Will Save You)
Esta sci-fi/horror tem um pouco a cara das produções do(s) gênero(s) que surgiram durante a pandemia, ao mostrar uma pessoa isolada passando por situações de perigo e provação. Somos apresentados à jovem Brynn (Kaitlyn Dever, de FORA DE SÉRIE), que tem uma rotina de vida em que prefere a solidão. Só aos poucos saberemos o que a motivou a se desligar das pessoas e a estar sempre escrevendo cartas para uma moça que teria morrido. A trama de NINGUÉM VAI TE SALVAR (2023) começa pra valer até que bem rápido, com a chegada de um alienígena em sua casa. Um dos grandes méritos do filme de Brian Duffield (ESPONTÂNEA, 2020) foi ter conseguido contar uma história com quase zero de diálogo. Nesse sentido, vale destacar também a bela performance de Dever, numa interpretação bastante física, inclusive do ponto de vista da violência do próprio corpo.
quinta-feira, setembro 28, 2023
NOSSO SONHO
Impressionante como alguns filmes batem forte na gente. E batem de múltiplas maneiras, às vezes, como é o caso de NOSSO SONHO (2023), a cinebiografia de Claudinho e Buchecha, dirigida por Eduardo Albergaria. Vi o filme no sábado, numa sessão com pouco público para uma obra com personagens tão populares de nosso cancioneiro, e só não voltei para casa em prantos, pois não queria passar muita vergonha. A Giselle, que estava comigo na sessão, já havia percebido o quanto eu chorava, especialmente nos 30 minutos finais, e estava lá para me dar aquele apoio. Até levei o filme para minha sessão de terapia na segunda-feira, sem conseguir expressar verbalmente tudo o que senti. Os dois eixos principais me fizeram lembrar imediatamente de duas pessoas importantes que não estão mais em nosso plano de existência: meu grande amigo Santiago, quando o filme aborda a amizade; e meu pai, quando trata de uma questão paterna de Buchecha.
NOSSO SONHO tem um quê de fábula, e isso vai se evidenciando à medida que se aproxima de sua conclusão. Quem não conhece nada da história da dupla vai se impressionar ainda mais com as surpresas. O diretor opta por se distanciar um pouco do realismo, embora as interpretações sejam naturalistas. Quem viu LEGALIZE JÁ – AMIZADE NUNCA MORRE, que conta a gênese da amizade e da construção musical de Marcelo D2 e Skunk, vai encontrar no filme de Albergaria uma espécie de espelho. Mas diria que NOSSO SONHO é ainda mais interessante do ponto de vista narrativo, visual e das escolhas temáticas. E há o mistério. Um mistério que ronda o personagem de Claudinho, cuja família não é tão apresentada quanto à de Buchecha e, portanto, dá ao personagem um ar mais etéreo, mais próximo de um anjo. Nisso, a semelhança com o Skunk em LEGALIZE JÁ... se explicita.
Mas não se trata apenas de termos um personagem do mundo real ganhando ares fantásticos. Muitas cenas e cenários causam uma bem-vinda estranheza, como as próprias cenas dos shows da banda, mostrados sem muita intenção de trazer realismo, mais próximos de um sonho. A própria brincadeira dos dois de chegarem a uma gravadora usando um orelhão comunitário (cena bem engraçada, aliás), sem o intermédio de um empresário, deixa claro o interesse do realizador em acentuar certos aspectos, e deixar de lado outros, como os interesses amorosos dos rapazes ou a própria relação mais profissional dos artistas. O mais importante está na força da amizade, na influência decisiva e quase mágica de Claudinho na criação da ideia da dupla e no problema de alcoolismo do pai de Buchecha, que tanto o incomoda, e afeta o relacionamento dos dois.
Sobre a amizade da dupla, há um flashback mais distante, da infância dos garotos, em que um simples gesto é mostrado com tanto amor e carinho que é difícil não se enternecer: o momento do abraço dos dois. O abraço, esse gesto capaz de desarmar, não é apenas essencial nesse momento: ele terá uma ligação com uma das últimas cenas do filme. Os dois atores, Juan Paiva no papel de Buchecha (e também narrador), e Lucas Penteado no papel de Claudinho, transmitem a alegria que ficou marcada nas apresentações da dupla.
Grato fiquei pelas lágrimas, pelo carinho, pelo mistério e pelo amor recebido. No mais, nunca mais ouvirei a canção “Fico Assim sem Você” da mesma maneira. Ela passará a ser uma dessas criações musicais mágicas, legítima herdeira do pop de Lulu Santos, mas com algo de sombrio em seu tom profético.
+ DOIS FILMES
ELIS & TOM – SÓ TINHA QUE SER COM VOCÊ
Por alguns momentos, fiquei me perguntando se o formato tradicional, com entrevistas emoldurando o principal, que são as imagens riquíssimas de Elis e Tom em 1974 em Los Angeles, principalmente em estúdio, não atrapalharia o que já era perfeito. ELIS & TOM – SÓ TINHA QUE SER COM VOCÊ (2022), de Roberto de Oliveira, seria o nosso THE BEATLES – GET BACK. Mas é possível que "apenas" o material bruto (as filmagens de Jom Tob Azulay) não tenha sido suficiente para contar a história de modo compreensível para plateias maiores. Gosto de como ficou, gosto dos depoimentos dos convidados, entrecortando o principal, mas o que conta é mesmo o encanto de ver esses dois gigantes juntos. Eu nunca fiquei tão impressionado com a voz de Elis quanto neste filme (talvez por não ser íntimo do álbum, mas acompanhar a trajetória ajuda a perceber a evolução no canto dela). E Tom, com aquele quê de gênio egocêntrico e arrogante, se rende não apenas ao canto de Elis, mas até ao trabalho da equipe que ela traz consigo. Cada vez mais a década de 1970 vem sendo vista como a era mais rica da nossa música. Segundo eleição feita recentemente por centenas de críticos e profissionais de música, organizada pelo podcast Discoteca Básica, o álbum Elis & Tom ficou entre os 10 maiores da música brasileira.
SÃO MIGUEL ARCANJO – O ANJO MAIOR (Saint Michael – Meet the Angel)
O documentário segue uma estrutura bem tradicional e meu interesse maior foi conhecer um pouco mais da relação de adoração da Igreja Católica por Miguel, o Arcanjo. Na verdade, costumava estranhar o chamarem de "São Miguel", sendo ele um anjo e não um homem, mas hoje compreendo, levando em consideração que "santo" também tem o sentido de "divino", "sagrado". O documentário SÃO MIGUEL ARCANJO – O ANJO MAIOR (2022), dirigido por Wincenty Podobiński, não tem o tom didático que eu esperava (para o bem e para o mal), e traz um bom número de padres que comentam sua figura como o anjo vitorioso que combateu Satanás e venceu, e que é comumente invocado por muitos fiéis que se encontram em situação difícil - até mesmo necessitando de um exorcismo. Ah, gostei de o filme ter feito menção a Padre Pio, ainda que de maneira bem rápida, mas o suficiente para reacender em mim a vontade de ver a cinebiografia que Abel Ferrara dirigiu sobre o venerado sacerdote.
sábado, setembro 16, 2023
ENTRE DEUS E O PECADO (Elmer Gantry)
O pouco tempo que tenho acaba por me privar de algumas coisas incríveis que sequer estavam no meu radar nesses mais de trinta anos de cinefilia. No começo minha formação cinéfila se deu quase que exclusivamente pela revista SET, que trazia holofotes para muitos cineastas, mas, obviamente, por falta de espaço ou mesmo de lançamentos de certas obras no Brasil, muita coisa passou batida. Depois, nos anos 2000, as fontes de conhecimento foram ampliadas imensamente pela internet, pelos blogs de cinema, pelas listas de discussão, pela gentileza de amigos de gravarem fitinhas para mim de certos filmes inéditos em nosso circuito e só conseguidos através de cópias clandestinas gravadas de DVDs e laserdiscs estrangeiros. Muitas maravilhas do cinema de horror, eu conheci nesses anos.
E agora vivo um outro momento, a partir do primeiro ano da pandemia, quando passei a prestar atenção na curadoria e nos filmes distribuídos pela Versátil Home Video. Vejam bem: não estou fazendo propaganda, não. A questão é que ter parado para ver, só para citar exemplos deste ano, filmes como OS NOVOS CENTURIÕES, de Richard Fleischer, e À PROCURA DE MR. GOODBAR (1977), de Richard Brooks, foi essencial. Sobre esse último, com o convite de escrever um texto a respeito para um dos novos livros temáticos da Versátil, me vi na obrigação de conhecer um pouco mais da carreira de Brooks, cineasta que me era conhecido apenas por GATA EM TETO DE ZINCO QUENTE (1958) e OS PROFISSIONAIS (1966), mas já faz tanto tempo que os vi, que nem dá para contar como vistos.
E por mais que À PROCURA DE MR. GOODBAR seja uma obra muito alinhada com a Nova Hollywood, ela já faz parte dos últimos trabalhos de Brooks. O realizador pertenceria mais à geração dos anos 1950, e está entre os 31 cineastas que ganharam textos de Olivier-René Veillon para o livro O Cinema Americano dos Anos Cinquenta, publicado pela editora Martins Fontes. O livro é uma delícia, aliás, com textos que destacam as obras mais importantes, as obsessões dos diretores e sua trajetória em cerca de sete páginas. E Veillon destaca a obra máxima de Brooks como sendo ENTRE DEUS E O PECADO (1960).
Como alguém que veio do jornalismo, o olhar de Brooks é um olhar de curiosidade e interesse. Por isso o personagem cético e ao mesmo tempo humanista de Arthur Kennedy, vivendo o jornalista, parece tão próximo do perfil do cineasta. Kennedy interpreta um profissional da comunicação que está fazendo um trabalho de observação da atuação de uma jovem mulher que está arrebanhando multidões com cultos de avivamento em cidades do interior dos Estados Unidos. A mulher, a irmã Sharon Falconer (Jean Simmons), parece de fato acreditar naquilo que está pregando. As coisas mudam um bocado com o aparecimento de um homem chamado Elmer Gantry (Burt Lancaster), com seu sorriso resplandecente, palavras bonitas, incrível eloquência (embora não exatamente sofisticada) e seu conhecimento e experiência com o evangelismo, faz com que a caravana de Sharon Falconer alcance ainda mais multidões. Só na primeira pregação de Gantry, centenas de pessoas se converteram.
Isso chama a atenção dos demais pastores e das demais igrejas evangélicas dos Estados Unidos, e logo a caravana de Falconer é chamada para estrear numa cidade grande, ou seja, um lugar com mais pessoas sofridas, mas também com mais pessoas céticas, menos ingênuas. A primeira meia hora de filme nos acompanha a Gantry sozinho e sua dificuldade para conseguir vender aspiradores de pó. Pouco sabemos de seu passado, mas, numa cena num bar, já percebemos sua habilidade com as palavras e sua capacidade de persuasão, ao conseguir arrecadar dinheiro para o natal de duas jovens. O rosto sempre sorridente de Gantry, mesmo quando tem que andar de trem às escondidas num vagão, é um convite para aceitarmos o personagem como um querido e irresistível charlatão. Até porque ele de fato acredita em Deus, e a cena em que ele adentra uma igreja evangélica constituída basicamente por pessoas negras, cantando o clássico gospel “I’m on my way to Canaan land”, é de arrepiar.
Abro um parêntese aqui para falar um pouco de minha experiência nas igrejas evangélicas e no quanto os filmes que lidam com o assunto me trazem sentimentos mistos. Em geral, os filmes costumam tratar essas pessoas com um ar de desdém e julgamento. Quando vejo filmes que tratam isso com respeito, como numa cena linda de conversão em CARANDIRU, de Hector Babenco, ou a cena mais representativa da força da fé já feits no cinema, em A PALAVRA, de Carl Th. Dreyer, vejo o quanto ainda tenho em mim essa relação de proximidade com a fé, embora tenha me tornado mais humanista e mais desapontado com as igrejas evangélicas, especialmente quando elas passaram a abraçar o dinheiro como bem mais precioso, e mais ainda durante a ascensão do bolsonarismo. Na época que participava (na verdade, mais testemunhava) os avivamentos na igreja (Assembleia de Deus), ficava bastante incomodado e perturbado com todo aquele barulho e percebia que havia algo errado, percebia que havia portas abertas para o charlatanismo e para a hipocrisia. Por outro lado, tenho um carinho imenso pela lembrança da primeira vez que fui a um culto dominical e vi a igreja cantando aquelas canções do hinário e senti que aquele ambiente estava cheio de uma energia muito boa e feliz. Enfim, é uma história feita de bons e de maus momentos. Fecho o parêntese mais pessoal, por ora.
No caso de ENTRE DEUS E O PECADO, acredito que a hipocrisia parece estar mais presente na sociedade, especialmente nos líderes evangélicos, do que nos crentes, que de fato acreditavam no poder da fé e da força das palavras. As palavras são poderosas e servem a advogados, políticos e líderes religiosos quando ganham essa necessidade de persuadir determinada parcela de pessoas. E outra coisa que Jesus condenava é mostrada na multidão: o ato de julgar as pessoas.
Gosto particularmente do último ato, embora tenha percebido que a personagem da jovem prostituta compareça de maneira quase brusca no enredo, o que pode ser evidência da adaptação do romance de Sinclair Lewis e de possíveis cortes na montagem final. É grande a performance de Lancaster e há momentos muito emocionantes ao longo de sua jornada, que termina de maneira incendiária, catártica. Diferente, aliás, da catarse vista em À PROCURA DE MR. GOODBAR, já é que alinhada a um cinema mais clássico-narrativo. E por mais que o filme funcione como uma espécie de denúncia dos bastidores um tanto sujos das igrejas evangélicas, sendo até hoje uma obra um tanto controversa, ela celebra a humanidade de seu personagem-título.
+ DOIS FILMES
CEDDO
Oportunidade incrível esta que o Cinema do Dragão proporcionou de podermos conhecer boa parte da filmografia de Ousmane Sembène no cinema. CEDDO (1977) é uma obra um pouco mais "difícil" do que MANDABI (1968), no sentido de ser bastante apoiada em diálogos, que às vezes parecem se repetir, e soam quase teatrais, mas há uma clara intenção de causar inquietação, pois não apenas vemos, além da escravidão acontecendo no território senegalês, a invasão da religião muçulmana que, a princípio, parece pedir apenas a conversão pacífica das pessoas, para em seguida instalar uma espécie de teocracia violenta, que é uma realidade em vários países do norte da África e do Oriente Médio. O fato de termos apenas uma personagem feminina, e que é vista em toda sua glória, mas capturada, enquanto os homens tomam todas as decisões, é também um elemento que chama a atenção. Os ceddo do título são o grupo de pessoas que procuram ceder à dominação islâmica.
MOOLAADÉ
Ver MOOLAADÉ (2004), derradeiro filme de Ousmane Sembène, logo após CEDDO (1977) ajuda a deixar bem claro o quanto o diretor era um militante de causas difíceis de seu país. Aqui temos um filme que protesta contra a excisão, um nome bonito para o ato de mutilar a genitália feminina, cortando o clitóris e costurando a área, e gerando inclusive problemas urinários. Trata-se de uma prática antiga de várias regiões da África e que foi "incluída" como parte das leis islâmicas de certos países, como é o caso de Senegal. MOOLAADÉ começa com a fuga de quatro crianças desse rito que chamam de purificação. Elas procuram a casa de uma mulher que é conhecida no vilarejo por ter conseguido impedir o tal ritual em sua filha. Ao contrário do que se poderia pensar, não se trata de um filme de patriarcado versus mulheres, já que a maior parte das mulheres do lugar aceita a prática. Lá pelo terceiro ato, o grupo de personagens masculinos vai ficando mais ativo, depois que percebe que está havendo uma clara rebelião a esse costume. O filme é um tanto didático naquilo que quer combater e o final parece uma fuga do realismo até então reinante, mas isso não deixa de ser algo também revolucionário, com a intenção de mudar o mundo, de fato.
sexta-feira, setembro 15, 2023
OPPENHEIMER
Pelo visto, os filmes vistos no mês de julho passado ainda estão rendendo. É que acredito que seja necessário falar sobre alguns deles um pouco mais aqui para o blog. As pequenas pílulas que escrevo para o Facebook e Letterboxd funcionam mais como primeiras impressões e que eu, muito inteligentemente (“não contavam com minha astúcia”), aproveito como um P.S. do texto principal. E OPPENHEIMER (2023), de Christopher Nolan, não podia ficar de fora, pois, gostando-se ou não do filme ou do diretor, trata-se, sim, de uma das produções mais importantes do ano, principalmente no quanto repercutiu na já histórica estreia simultânea com BARBIE, de Greta Gerwig.
Pois bem. A estreia de OPPENHEIMER coincidiu com minha chegada a São Paulo durante as férias. E guardo com carinho as circunstâncias em que o vi, ao lado dos queridos Michel e Cris. Digo, não tão ao lado assim, pois não havia mais assento próximo a eles no ato da compra do ingresso, mas passei por todo o corre-corre de chegar em cima da hora à sessão, com Michel correndo contra o tempo como num suspense automobilístico a fim de pegar a Cris e chegarmos na hora no Shopping JK Iguatemi, espaço de vendas mais elitizado da megalópole e possível detentora da melhor projeção do Brasil (será?): a sala IMAX de lá, pertencente ao grupo Cinépolis. A disposição das cadeiras de lá é perfeita, mas acho que já escrevi sobre isso no texto sobre a viagem a Sampa. E foi muito legal ver tanta gente fazendo do cinema uma prioridade para suas vidas.
Quanto ao filme, e principalmente quanto a Nolan, costumo brincar dizendo que divido os títulos do diretor entre aqueles que me fazem dormir e aqueles que conseguem me deixar acordado. Claro que há toda uma questão envolvendo minhas crises alérgicas, mas não deixa de ser curioso o número grande de produções que funcionaram como soporífero para mim. São elas: BATMAN BEGINS (2005), O GRANDE TRUQUE (2006), BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS (2008), A ORIGEM (2010) e DUNKIRK (2017). Os demais são filmes que me atraem ou me repelem – lembro de ter saído muito irritado da sessão de AMNÉSIA (2000), por exemplo.
Felizmente, OPPENHEIMER não me deu sono e por isso já dou um crédito ao filme. E nem sei dizer se é mérito da montagem, que tenta o tempo todo deixar o espectador interessado numa trama cheia de conversas (a maioria, entre homens engravatados) sobre física, política e ética. Nada mais justo para um filme que quer contar a história de um dos mentores da bomba atômica, J. Robert Oppenheimer (1904-1967), um homem que tem uma história interessante de vida, se pensarmos no horror que foram as terríveis bombas em Hiroshima e Nagazaki, e quando ele foi “cancelado” pelo macarthismo, depondo perante a Comissão de Atividades Antiamericanas. Um simples passeio pelo Wikipedia pelo verbete do cientista nos dá uma ideia da quantidade de detalhes e do grande número de pessoas envolvidas, o que não deixa de ser uma ótima desculpa para as três horas de duração do filme e pela montagem que no início causa um pouco de enjoo. Aliás, interessante como Nolan é obcecado por questões narrativas complexas, embora ele nem sempre seja bem-sucedido nisso. No fundo, ele é só mais um cineasta ligado à narrativa clássica mesmo. Não que isso seja um problema: longe disso.
Uma das coisas que mais passei a apreciar em Nolan, porém, foi sua cruzada pela valorização da experiência do cinema na sala escura. E isso me ajudou até a gostar mais de seus trabalhos – fui na contramão de quase todo mundo e gostei de TENET (2020), talvez por vê-lo durante aquele período difícil que foi o primeiro ano da pandemia. De uns tempos para cá, ele ganhou a alcunha de grande guardião do IMAX e do uso da película em 70 mm, o que resulta em imagens que se diferenciam das que estamos acostumados a ver no cinema contemporâneo.
Sobre o filme em si, Cillian Murphy está ótimo no papel-título, ora passando um ar quase psicopata de anjo da destruição, ora carregando nos ombros a culpa pela destruição de duas cidades inteiras do Japão. Há uma cena em que um grupo de homens discute quais cidades destruir que me impressionou muito, me causou mal-estar. Um deles diz que simpatiza com a cidade tal, pois passou férias agradáveis com sua família um tempo atrás.
Senti falta de um maior aprofundamento nas questões afetivas do protagonista com as duas mulheres que passam por sua vida (vividas por Florence Pugh e Emily Blunt), mas já é de se esperar de alguém que age mais de maneira racional que emocional, como Nolan. Outra coisa muito esperada era o momento do lançamento das bombas em si, que o filme não mostra, o que considero pelo menos ético, mas há toda a repercussão nos jornais, com notícias que demoram a chegar. O que havia também era a expectativa pela cena da explosão da bomba no deserto americano, nos testes em Los Alamos. Outro ponto positivo do filme – talvez o maior – é o quanto ele explora bem o espírito da época, os sombrios anos 1940, tão carregados de medos ocasionados por guerra, bomba atômica, corrida armamentista, espionagem, caça às bruxas etc., que mataram, destruíram e traumatizaram gerações.
No quesito dinheiro, OPPENHEIMER ultrapassou GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 e se tornou a terceira maior bilheteria de 2023. Os primeiros lugares seguem pertencendo a BARBIE e SUPER MAIOR BROS. Não creio que o filme de Nolan teria um resultado tão bom se não fosse o “efeito Barbenheimer”.
+ DOIS FILMES
OLDBOY (Oldeuboi)
Algumas coisas me incomodaram nesta revisão de OLDBOY (2003), de Park Chan-woo. Primeiro, usar um clássico de Vivaldi para ilustrar aquelas duas cenas de retiradas de dentes à força me pareceu meio de mau gosto. Também vi como desproporcional o gesto do protagonista no final, embora ache válido querer fazer uma espécie de "atualização" de um certo mito grego. Assim, aproximar o filme de uma tragédia grega é louvável. Sou, talvez, voto vencido quando digo que Park teve uma evolução ao longo dos anos: prefiro seus filmes dos anos 2010 que os da década anterior. Ele foi afinando seu estilo e trabalhando melhor a beleza plástica. Mas é inegável o quanto várias cenas tornaram o filme um clássico e um dos mais importantes do que podemos chamar de era de ouro do cinema sul-coreano. Como minha opinião sobre o filme não mudou muito com relação à primeira vez que o vi, o texto de 2005 ainda segue valendo.
CASEI-ME COM UM MONSTRO (I Married a Monster from Outer Space)
Óbvio herdeiro do maravilhoso VAMPIROS DE ALMAS, de Don Siegel, que também era uma produção B, mas com muito mais ambição. Este aqui é mais modesto até na ambientação: a trama se passa exclusivamente numa pequena cidade do interior, onde um grupo de extraterrestres se apossa do corpo de homens. CASEI-ME COM UM MONSTRO (1958), de Gene Fowler Jr., mostra o ponto de vista de uma das mulheres, que percebe que seu marido não é mais o mesmo e busca ajuda. O que me deixou mais surpreso no filme foi o quanto ele pode ter inspirado as ideias que a Marvel trouxe para a invasão dos skrulls, que guardam os corpos humanos num suporte de vida. Nem sei se outro filme ou outra ficção em literatura teve essa ideia antes, mas se foi esta sci-fi modesta, eu tiro o chapéu. Além do mais, gosto de como o filme chega perto de aprofundar uma relação próxima de apego da mulher com aquele homem modificado e aprendendo com os sentimentos dos seres humanos. Filme visto no box Clássicos Sci-Fi – Anos 50 Vol. 2.
quinta-feira, setembro 14, 2023
CAPITU E O CAPÍTULO
Sou professor de escola pública. Esse é o meu ganha-pão. Se nas redes sociais não me apresento com frequência como professor talvez seja porque eu seja, antes de professor, um cinéfilo, um amante das leituras, seja a literatura, sejam os quadrinhos, e também um amante da música que tem cada vez escutado menos música em casa, e apenas no carro, justamente pela falta de tempo. Veja bem: não reclamo. E adoro o meu ambiente de trabalho, adoro meu grupo de colegas da escola, e também amo as pequenas conquistas educacionais quando consigo tocar meus alunos através da arte (da música, principalmente), aproveitando o fato de minha disciplina ser o inglês.
CAPITU E O CAPÍTULO (2021) funcionou como um lembrete do quanto eu gostaria de estar com mais tempo (e energia) para me dedicar à alta literatura, ainda mais que tenho título de mestre em literatura comparada. E quando falo de tempo para os livros, também falo de tempo para os filmes, para os quadrinhos etc. Para os estudos daquilo que amo, enfim. Sair da sessão do filme do Bressane é sair convicto de que você não entendeu nem um décimo das referências, mas ainda assim adorar tudo aquilo que foi encenado e dito com imagens e palavras. Mais ou menos como ler contos de Jorge Luis Borges.
Bressane vem, já faz umas décadas, exercitando sua erudição nos filmes. Brinca com ela usando um estilo de cinema que remonta a Godard, com um interesse menor pela trama em comparação com o interesse pelo que quer ser comunicado em linguagem cinematográfica de sofisticação visual, com o compartilhamento de maneira pouco didática da cultura do cineasta nas mais variadas áreas do conhecimento – história, literatura, filosofia, cinema, teatro, pintura, música etc.
Em seu cinema, já passearam nomes como Padre Antônio Vieira, Nietzsche, São Jerônimo, Cleópatra, Fernando Pessoa, Mário Reis, Lamartine Babo, Oswald de Andrade e Machado de Assis, que já foi adaptado em três ocasiões: BRÁS CUBAS (1985), A ERVA DO RATO (2008) e agora em CAPITU E O CAPÍTULO.
A oportunidade de ver um Júlio Bressane no cinema é um presente inenarrável. Em casa, é mais fácil se dispersar com sua obra um pouco mais hermética, principalmente as mais fragmentadas. CAPITU E O CAPÍTULO tem uma sintonia incrível com Dom Casmurro, seu ponto de partida de inspiração. Se não me engano, foi a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas que Machado de Assis trabalhou com capítulos pequenos (e alguns poucos maiores). Aliás, eu diria que essa coisa dos capítulos pequenos desses romances, além de ser um charme, é também uma ótima maneira de fazer com que o leitor passe rapidamente para o próximo capítulo.
Em seu cinema, já passearam nomes como Padre Antônio Vieira, Nietzsche, São Jerônimo, Cleópatra, Fernando Pessoa, Mário Reis, Lamartine Babo, Oswald de Andrade e Machado de Assis, que já foi adaptado em três ocasiões: BRÁS CUBAS (1985), A ERVA DO RATO (2008) e agora em CAPITU E O CAPÍTULO.
A oportunidade de ver um Júlio Bressane no cinema é um presente inenarrável. Em casa, é mais fácil se dispersar com sua obra um pouco mais hermética, principalmente as mais fragmentadas. CAPITU E O CAPÍTULO tem uma sintonia incrível com Dom Casmurro, seu ponto de partida de inspiração. Se não me engano, foi a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas que Machado de Assis trabalhou com capítulos pequenos (e alguns poucos maiores). Aliás, eu diria que essa coisa dos capítulos pequenos desses romances, além de ser um charme, é também uma ótima maneira de fazer com que o leitor passe rapidamente para o próximo capítulo.
É ótimo poder ler Machado em voz alta, como o faz o personagem vivido por Enrique Diaz no filme. Ele é ao mesmo tempo Machado e Casmurro, a versão mais madura de Bentinho, o jovem retratado da narrativa. (Ler em voz um texto bem escrito é tão gostoso quanto saborear uma comida fina e é algo que faço com muito gosto, sempre que consigo tempo, na privacidade de meu quarto.) Quando saí da minha segunda sessão do filme, aliás, falei para um amigo que o veria com muito prazer se fosse inteirinho o Enrique Diaz lendo textos do século XIX.
O que mais se aproxima de uma história no filme é o conflito clássico entre Bentinho (Wladimir Brichta) e Capitu (Mariana Ximenes). Capitu é uma mulher manipuladora (?), que tem consciência de sua sensualidade atraente, mas que, mesmo assim, quer ter certeza de que é amada (muito divertido o diálogo em que ela pergunta ao marido se ele abandonaria a mãe por ela). Bentinho é um homem inseguro, paranoico (?) e meio bobão e Brichta está ótimo como esse homem meio paspalho e responsável pelos momentos mais engraçados do filme. Mais do que questionar a suposta traição de Capitu e o suposto engano de Bentinho, o filme brinca com seu próprio estilo de encenação, com sua dramaturgia peculiar, com uma direção de arte tão sofisticada e bela que nem parece uma produção modesta. Vale lembrar que Djin Sganzerla é outra atriz que contribui para momentos muito divertidos. Há uma fala sobre a capacidade atlética do marido que tem uma dupla conotação impagável.
Se fosse só por um incentivo cultural, nesses tempos de TikTok e outras redes sociais que consomem nosso tempo com coisas inúteis e que fritam nosso cérebro, Bressane já mereceria nosso mais profundo respeito. Mas não: o filme nos deixa felizes até com as lacunas do que não conhecemos ou não entendemos, e isso se transforma em delicioso mistério e grande cinema. E vejam só: CAPITU E O CAPÍTULO traz o melhor cineasta brasileiro vivo adaptando de maneira muito própria o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
O que mais se aproxima de uma história no filme é o conflito clássico entre Bentinho (Wladimir Brichta) e Capitu (Mariana Ximenes). Capitu é uma mulher manipuladora (?), que tem consciência de sua sensualidade atraente, mas que, mesmo assim, quer ter certeza de que é amada (muito divertido o diálogo em que ela pergunta ao marido se ele abandonaria a mãe por ela). Bentinho é um homem inseguro, paranoico (?) e meio bobão e Brichta está ótimo como esse homem meio paspalho e responsável pelos momentos mais engraçados do filme. Mais do que questionar a suposta traição de Capitu e o suposto engano de Bentinho, o filme brinca com seu próprio estilo de encenação, com sua dramaturgia peculiar, com uma direção de arte tão sofisticada e bela que nem parece uma produção modesta. Vale lembrar que Djin Sganzerla é outra atriz que contribui para momentos muito divertidos. Há uma fala sobre a capacidade atlética do marido que tem uma dupla conotação impagável.
Se fosse só por um incentivo cultural, nesses tempos de TikTok e outras redes sociais que consomem nosso tempo com coisas inúteis e que fritam nosso cérebro, Bressane já mereceria nosso mais profundo respeito. Mas não: o filme nos deixa felizes até com as lacunas do que não conhecemos ou não entendemos, e isso se transforma em delicioso mistério e grande cinema. E vejam só: CAPITU E O CAPÍTULO traz o melhor cineasta brasileiro vivo adaptando de maneira muito própria o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
A propósito, o filme me fez comprar uma edição de Dom Casmurro (escolhi a da Penguim). Estou relendo com muito prazer.
+ DOIS FILMES
O PORTEIRO
Talvez um diretor melhor soubesse aproveitar o texto e os ótimos atores e transformá-lo em algo com um timing mais acertado. Ainda assim, O PORTEIRO (2023), de Paulo Fontenelle, é um filme bem simpático que garante algumas boas risadas, embora seu ritmo irregular atrapalhe em alguns momentos. A história é narrada pelo porteiro do título, o Waldisney (Alexandre Lino), numa delegacia de polícia. Assim, ficamos sabendo da confusão ocorrida durante um dia na vida do protagonista e dos moradores de seu condomínio. É o tipo de comédia popular que mira um público mais simples, e que já parece não ter interesse nas comédias brasileiras. Na verdade, parece não ter interesse (ou dinheiro) em voltar a frequentar as salas de cinema. Espero que a situação se reverta, e que novas e melhores comédias voltem a ser benquistas pela audiência.
CANTANDO NO CHUVEIRO
A proposta é bem interessante e as pessoas que aceitaram fazer parte do projeto são certamente felizes com seus corpos. O curta CANTANDO NO CHUVEIRO (2022), de Fábio Rogério, apresenta uma série de imagens de homens e mulheres cantando nuas no chuveiro – há, inclusive, o crítico de cinema e ator Jean-Claude Bernadet, cuja performance tem um diferencial divertido. Dedicado ao amigo e crítico de cinema Wesley Pereira de Castro, que vez ou outra gosta de testar os limites das redes sociais com fotos suas provocantes (para os padrões dessas redes), é possível pensar que o diretor tenha se inspirado nos arroubos de inteligência e sentimentalidade de Wesley para compor seu filme. Simples e provocativo, imagino o quanto pode ser divertido vê-lo junto a um grande público, em meio a outros curtas.
+ DOIS FILMES
O PORTEIRO
Talvez um diretor melhor soubesse aproveitar o texto e os ótimos atores e transformá-lo em algo com um timing mais acertado. Ainda assim, O PORTEIRO (2023), de Paulo Fontenelle, é um filme bem simpático que garante algumas boas risadas, embora seu ritmo irregular atrapalhe em alguns momentos. A história é narrada pelo porteiro do título, o Waldisney (Alexandre Lino), numa delegacia de polícia. Assim, ficamos sabendo da confusão ocorrida durante um dia na vida do protagonista e dos moradores de seu condomínio. É o tipo de comédia popular que mira um público mais simples, e que já parece não ter interesse nas comédias brasileiras. Na verdade, parece não ter interesse (ou dinheiro) em voltar a frequentar as salas de cinema. Espero que a situação se reverta, e que novas e melhores comédias voltem a ser benquistas pela audiência.
CANTANDO NO CHUVEIRO
A proposta é bem interessante e as pessoas que aceitaram fazer parte do projeto são certamente felizes com seus corpos. O curta CANTANDO NO CHUVEIRO (2022), de Fábio Rogério, apresenta uma série de imagens de homens e mulheres cantando nuas no chuveiro – há, inclusive, o crítico de cinema e ator Jean-Claude Bernadet, cuja performance tem um diferencial divertido. Dedicado ao amigo e crítico de cinema Wesley Pereira de Castro, que vez ou outra gosta de testar os limites das redes sociais com fotos suas provocantes (para os padrões dessas redes), é possível pensar que o diretor tenha se inspirado nos arroubos de inteligência e sentimentalidade de Wesley para compor seu filme. Simples e provocativo, imagino o quanto pode ser divertido vê-lo junto a um grande público, em meio a outros curtas.
domingo, setembro 10, 2023
LOBO E CÃO
Na última quinta-feira, dia 7 de setembro, saí com a Giselle e a intenção era vermos a cinebiografia ANGELA, de Hugo Prata, que estaria em cartaz no Centerplex Via Sul, um dos cinemas mais distantes de nossas casas. Ao chegarmos lá, porém, um problema com a cópia (ou algo parecido) impossibilitou a sessão. Ficamos lá nos questionando sobre que outra opção ver. Sugeri A FREIRA 2, no UCI Iguatemi, cinema mais próximo dali, e mesmo ela não curtindo o gênero terror, topou. Considerei um gesto de amor. Inclusive pelo fato de ser um filme que não tinha nada para ser bom.
Eis que, ao chegarmos lá, a fila estava muito grande para dar tempo de pegar a sessão legendada. Até fiquei um pouco na fila, mas concordamos que era melhor sairmos dali e sugeri irmos ao Cinema do Dragão. MIRANTE teria sessão às 18h40. Seria tranquilo, sem pressa, tomaríamos um café e conversaríamos à vontade. Acontece que errei na leitura da tabela no Instagram e só soube disso ao chegar à bilheteria e a moça dizer que o filme não passaria naquele dia, só no seguinte. Não sei se posso culpar Mercúrio retrógrado, mas, enfim, ficamos mais um pouco e ela ainda topou esperarmos até às 20h para pegarmos a sessão de LOBO E CÃO (2022), de Cláudia Varejão.
Ou seja, passamos num só dia por três espaços diferentes e percebemos o quanto o Cinema do Dragão, e todo o complexo, o Centro Cultural Dragão do Mar, é um ambiente muito mais amigável, democrático, com uma energia toda especial recheada de afeto e sentimentos positivos. Eu e Giselle, na primeira encarnação de nosso namoro, inclusive, na virada do milênio, quando o cinema ainda era um Espaço Unibanco, já tínhamos uma relação de proximidade com aquele espaço.
Ou seja, passamos num só dia por três espaços diferentes e percebemos o quanto o Cinema do Dragão, e todo o complexo, o Centro Cultural Dragão do Mar, é um ambiente muito mais amigável, democrático, com uma energia toda especial recheada de afeto e sentimentos positivos. Eu e Giselle, na primeira encarnação de nosso namoro, inclusive, na virada do milênio, quando o cinema ainda era um Espaço Unibanco, já tínhamos uma relação de proximidade com aquele espaço.
E depois de muito papo agradável e de nos presentearmos com a companhia um do outro, fomos ver um filme sobre amor. Um filme de amor, mas também de amadurecimento juvenil. É também uma obra queer, e talvez por isso mesmo seja tão contaminada por esse enfrentamento de obstáculos e essa compreensão maior de que a sociedade precisa ter não apenas tolerância com os diferentes, mas amor mesmo por eles. (Recentemente, inclusive, ao ver o documentário PARA ONDE VOAM AS FEITICEIRAS, percebi mais uma vez o quanto as pessoas LGBTQIA+ têm para nos ensinar sobre amor.)
Quanto ao filme, achei que LOBO E CÃO era o primeiro de Cláudia Varejão a aportar por aqui, mas vi que AMA-SAN (2016) também chegou a ser lançado em nossas salas – no Cinema do Dragão, inclusive. A questão é que LOBO E CÃO é o primeiro filme de ficção da cineasta, que antes havia feito apenas documentários, e é muito mais envolvente que o anterior. As cenas "documentais" funcionam de maneira tão orgânica junto à ficção que até me esqueci de notá-las, embora tenha percebido os rostos mais carregados de luta que me lembraram os filmes do Pasolini. O visual obtido com equipamento analógico (que fotografia linda, a de Rui Xavier!) também faz a diferença no que vemos, na beleza de cada quadro. A opção pela janela “clássica” (de 1,33:1) traz tanto charme quanto a necessidade de focarmos mais nos indivíduos, de valorizar os close-ups.
O filme nos apresenta principalmente a duas pessoas que se sentem deslocadas no lugar em que vivem. Ana (Ana Cabral) se descobre lésbica; seu amigo Luís (Ruben Pimenta) procura explicitar sua sexualidade naquela ilha tão tradicional e tão católica. (A propósito, que cena bonita, a de Ana conversando com o padre da igreja sobre os seus quereres.) Está em Ana o melhor do filme, as cenas mais sensíveis, com seu sorriso surgindo ao se ver feliz ao lado de outra moça numa festa, uma amiga que viera do Canadá.
E há algumas canções que chamam a atenção. A deliciosa "Que Venha Depressa a Noite" antecipa um momento especialmente feliz das duas moças. Como o filme estende bastante o momento do beijo, gerando cera tensão, quando ele chega, o contentamento é imenso. Outra coisa que o filme apresenta muito bem são os sentimentos contraditórios que os jovens queer nutrem pela religião católica. O catolicismo é apresentado no filme com essa dualidade: tem a beleza da tradição e da devoção e é também ferramenta de prisão, limitação. O fato de a história se passar numa ilha, a ilha de São Miguel, no arquipélago de Açores, não é gratuito. E os jovens, ao mesmo tempo que se sentem enclausurados, tendo como válvula de escape seus encontros noturnos, procuram fazer o caminho inusitado de integrarem uma procissão.
Quanto ao filme, achei que LOBO E CÃO era o primeiro de Cláudia Varejão a aportar por aqui, mas vi que AMA-SAN (2016) também chegou a ser lançado em nossas salas – no Cinema do Dragão, inclusive. A questão é que LOBO E CÃO é o primeiro filme de ficção da cineasta, que antes havia feito apenas documentários, e é muito mais envolvente que o anterior. As cenas "documentais" funcionam de maneira tão orgânica junto à ficção que até me esqueci de notá-las, embora tenha percebido os rostos mais carregados de luta que me lembraram os filmes do Pasolini. O visual obtido com equipamento analógico (que fotografia linda, a de Rui Xavier!) também faz a diferença no que vemos, na beleza de cada quadro. A opção pela janela “clássica” (de 1,33:1) traz tanto charme quanto a necessidade de focarmos mais nos indivíduos, de valorizar os close-ups.
O filme nos apresenta principalmente a duas pessoas que se sentem deslocadas no lugar em que vivem. Ana (Ana Cabral) se descobre lésbica; seu amigo Luís (Ruben Pimenta) procura explicitar sua sexualidade naquela ilha tão tradicional e tão católica. (A propósito, que cena bonita, a de Ana conversando com o padre da igreja sobre os seus quereres.) Está em Ana o melhor do filme, as cenas mais sensíveis, com seu sorriso surgindo ao se ver feliz ao lado de outra moça numa festa, uma amiga que viera do Canadá.
E há algumas canções que chamam a atenção. A deliciosa "Que Venha Depressa a Noite" antecipa um momento especialmente feliz das duas moças. Como o filme estende bastante o momento do beijo, gerando cera tensão, quando ele chega, o contentamento é imenso. Outra coisa que o filme apresenta muito bem são os sentimentos contraditórios que os jovens queer nutrem pela religião católica. O catolicismo é apresentado no filme com essa dualidade: tem a beleza da tradição e da devoção e é também ferramenta de prisão, limitação. O fato de a história se passar numa ilha, a ilha de São Miguel, no arquipélago de Açores, não é gratuito. E os jovens, ao mesmo tempo que se sentem enclausurados, tendo como válvula de escape seus encontros noturnos, procuram fazer o caminho inusitado de integrarem uma procissão.
E esse talvez seja o caminho que o filme encontra mais próximo de uma inclusão, por mais que o encerramento dessa trajetória dos dois personagens se dê de fato em saírem da ilha e viverem uma nova vida. A diretora, inclusive, ainda nos brinda com outra canção muito simbólica de despedida, a clássica “Porque Te Vás”, performada aqui pelo duo belga Vive la Fête. A canção, eu conheci primeiramente pela gravação do Pato Fu, mas ela aparece também em CRÌA CUERVOS, de Carlos Saura, filme, aliás, que eu me devo ver desde o comecinho de minha cinefilia. Mas isso já é outra história.
+ DOIS FILMES
LUZ NOS TRÓPICOS
Ver LUZ NOS TRÓPICOS (2020) é uma experiência única e se o filme não fosse tão longo e a vida tão curta eu arriscaria vê-lo novamente em busca de novas percepções. Em certos momentos, o filme funcionou muito bem para mim; noutros, nem tanto. Ao ver a beleza das águas e das árvores fiquei pensando no quanto o cinema, além de estar quase sempre adotando um pensamento eurocêntrico, também não se preocupa em mostrar a exuberância da natureza e a riqueza dos povos que contribuem para sua manutenção. Não que essa seja exatamente a função ou o interesse de Paula Gaitán. Na verdade, eu saí da sessão mais com questionamentos (de escolhas e até de "narrativa") do que com o espírito iluminado. Há trechos repetidos sobre a aurora e o crepúsculo que me chamaram a atenção pela ênfase e sei que há um simbolismo importante frente à toda a jornada apresentada nas 4h19min de duração da obra.
EAMI
Desde o início senti dificuldade de me conectar com EAMI (2022), embora tenha admirado com frequência as imagens e o som, que chamam a atenção logo de cara. Fiquei o tempo todo pensando no quanto esse é um tipo de filme que necessita de um dia especial para ser apreciado, já que se trata de cinema-poesia, quando o que mais vemos é cinema-prosa. Desse modo, talvez saber um pouco mais sobre os povos Ayoreo-Totobiegosode e sua luta possa auxiliar na necessária conexão. Filmes sobre lutas de povos indígenas costumam sempre me deixar deprimido. No caso deste trabalho da diretora paraguaia Paz Encina, a opção por um registro mais poético e que exige mais do espectador acabará restringindo sua audiência. Não que isso seja um problema para a obra de arte em si. Apenas o é para seu alcance.
+ DOIS FILMES
LUZ NOS TRÓPICOS
Ver LUZ NOS TRÓPICOS (2020) é uma experiência única e se o filme não fosse tão longo e a vida tão curta eu arriscaria vê-lo novamente em busca de novas percepções. Em certos momentos, o filme funcionou muito bem para mim; noutros, nem tanto. Ao ver a beleza das águas e das árvores fiquei pensando no quanto o cinema, além de estar quase sempre adotando um pensamento eurocêntrico, também não se preocupa em mostrar a exuberância da natureza e a riqueza dos povos que contribuem para sua manutenção. Não que essa seja exatamente a função ou o interesse de Paula Gaitán. Na verdade, eu saí da sessão mais com questionamentos (de escolhas e até de "narrativa") do que com o espírito iluminado. Há trechos repetidos sobre a aurora e o crepúsculo que me chamaram a atenção pela ênfase e sei que há um simbolismo importante frente à toda a jornada apresentada nas 4h19min de duração da obra.
EAMI
Desde o início senti dificuldade de me conectar com EAMI (2022), embora tenha admirado com frequência as imagens e o som, que chamam a atenção logo de cara. Fiquei o tempo todo pensando no quanto esse é um tipo de filme que necessita de um dia especial para ser apreciado, já que se trata de cinema-poesia, quando o que mais vemos é cinema-prosa. Desse modo, talvez saber um pouco mais sobre os povos Ayoreo-Totobiegosode e sua luta possa auxiliar na necessária conexão. Filmes sobre lutas de povos indígenas costumam sempre me deixar deprimido. No caso deste trabalho da diretora paraguaia Paz Encina, a opção por um registro mais poético e que exige mais do espectador acabará restringindo sua audiência. Não que isso seja um problema para a obra de arte em si. Apenas o é para seu alcance.
quinta-feira, setembro 07, 2023
INVASÃO SECRETA (Secret Invasion)
O fundo do poço para a Marvel no cinema (e principalmente agora, no Disney Plus) parece não ter fim. Será que isso é só uma impressão do momento que pode estar influenciando a minha percepção do todo? Sim, eu gosto de alguns filmes que a maioria não gosta (THOR – AMOR E TROVÃO; PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE) e acho lindo demais o GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, mas esse é porque é um projeto mais autoral (de James Gunn) do que dos produtores. Quanto às séries, adorei WANDAVISION e acho uma simpatia GAVIÃO ARQUEIRO. Mas teve série que não consegui nem terminar de ver, como CAVALEIRO DA LUA e WHAT IF…?. Mas já um tempo que se percebe uma insatisfação por parte de muitos. Há até pessoas que estão desistindo de ver religiosamente essas produções, o que já era de esperar, levando em consideração a grande quantidade que começou a ser despejada a partir de 2020.
A Marvel Studios recentemente demitiu um monte de roteiristas e está reavaliando seus planos, uma vez que as coisas não estão saindo como o planejado. Diferentemente dos anos anteriores, por exemplo, 2023 não contou com filmes da Marvel em seu pódio: os mais vistos até agora foram BARBIE e SUPER MARIO BROS., seguido de OPPENHEIMER. GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 está na quarta posição. O mesmo aconteceu no ano passado: as maiores bilheterias foram para AVATAR – O CAMINHO DA ÁGUA, TOP GUN – MAVERICK e JURASSIC WORLD – DOMÍNIO, com DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA na quarta posição. Isso já pode significar um sinal amarelo para a companhia.
E chegamos à série INVASÃO SECRETA (2023), criada por Kyle Bradstreet (produtor executivo de MR. ROBOT) e com episódios dirigidos por Ali Selim, um cara com experiência em séries de televisão. INVASÃO SECRETA é a série/minissérie mais cara da Marvel, tendo custado inacreditáveis U$ 200 milhões, quando não se vê esse dinheiro todo numa produção de apenas seis episódios de pouco mais de meia hora de duração. Talvez muito do dinheiro tenha ido para os salários de Samuel L. Jackson, Olivia Colman e Emilia Clarke, os nomes mais famosos da minissérie, embora tenhamos gente muito boa como Martin Freeman, Don Cheadle e Ben Mendelsohn. Há também a participação especial de Cobie Smulders.
Todo esse dinheiro foi investido numa obra que não tem boas cenas de ação, não tem um tom ameaçador e de mistério, não diverte, não tem uma história boa e nem preciso dizer que não tem uma boa direção. O que temos são atores muito bons garantindo o pagamento de seus boletos e, quem sabe, uma melhor sorte de participação em possíveis filmes bem-sucedidos da Marvel.
INVASÃO SECRETA é inspirada livremente na saga homônima dos quadrinhos, dos gloriosos tempos em que um inspirado Brian Michael Bendis tornava a leitura de quadrinhos de super-heróis de uma grande companhia um enorme prazer. Para a adaptação televisiva (podemos chamar assim ainda?), a opção dos criadores foi transformar a ideia da invasão skrull numa espécie de narrativa de espionagem cheia de mistério e com ar ameaçador. Inclusive, é bom lembrar que a melhor coisa do filme é a arte dos créditos de abertura, feita com o uso da inteligência artificial, o que só deixa no ar o sentimento de inutilidade de todos os envolvidos na parte criativa do projeto. Há uma bela música nos créditos, que dá certo tom ameaçador, necessário para o que se propunha. Nem acho que fazer uma série de espionagem sem a presença dos supers, aproveitando a ideia original, seja ruim. O que é ruim é sua materialização.
Para não dizer que não falei da trama, temos basicamente Nick Fury (Jackson) retornando para a Terra depois de ter ficado no espaço um bom tempo. Ele fica sabendo de uma invasão clandestina feita por skrulls. Os alienígenas já estavam infiltrados na Terra, como vimos em CAPITÃ MARVEL, com a ajuda de Fury e de uma equipe que mantém tudo em segredo. Mas tudo na santa paz. Acontece que alguns rebeldes liderados por Gravik (Kingsley Ben-Adir) começam a preparar o ataque para tomar conta do planeta, já estando presente em diversos governos mundo afora.
Entre os personagens mais importantes, temos G’iah (Clarke), a filha de um dos skrulls aliados de Fury, chamado Talos (Mendelsohn); Rodhey (Cheadle), que é um skrull infiltrado no governo americano, e Sonya Falsworth (Colman), uma mulher da inteligência secreta que auxilia Fury nos momentos mais delicados.
Uma das coisas que mais se falou foi da situação envolvendo o DNA dos Vingadores, que Fury teria guardado num lugar super-secreto. Esse DNA, chamado de “colheita” é a menina dos olhos do líder Gravik. Mas o que pega mesmo é ver Fury de posse de um conteúdo tão perigoso.
Vendo assim, até parece que a série é interessante, mas é incrível como o roteiro e a direção põem tudo a perder. Então, até os nerds mais fãs da Marvel, os que gostam de ver Easter eggs ou coisas relativas aos quadrinhos, como o Super-Skrull, vão ficar um tanto tristes com tanta incapacidade de fazer algo minimamente interessante com um conteúdo desses. Seria uma tristeza, se não desse tanta raiva, já que nosso tempo é ouro.
+ DOIS FILMES
PARA ONDE VOAM AS FEITICEIRAS
O que mais gostei em PARA ONDE VOAM AS FEITICEIRAS (2020), de Eliane Caffé, Beto Amaral e Carla Caffé, foi o quanto, sem ter que apresentar os personagens e seus nomes e suas histórias de vida, o filme consegue nos fazer amá-los muito rapidamente. São pessoas que atuam numa performance muito interessante numa região decadente e cheia de moradores de rua, no centro de São Paulo. O que me chamou a atenção foi o quanto querer incluir os indígenas no grupo dos rejeitados pela sociedade branca burguesa soou um pouco forçado. Talvez não por causa do grupo, mas talvez porque os indígenas parecem ter mais dificuldade de encontrar uma voz e um futuro neste país que já dizimou e dizima tantos. Além do mais, não faziam parte do grupo deles, pelo que entendi. O que mais se destaca mesmo é o quanto o filme funciona como uma espécie de aula sobre sexualidade sobre pessoas LGBTQIA+, esclarecendo certas dúvidas. Minha cena favorita é quando os atores entram numa roda de "discussão" de pastores evangélicos (fazendo contraponto a dois pastores mais tradicionais estava o pastor e atual deputado federal Henrique Vieira). Um filme cheio de amor.
CORPOLÍTICA
O filme que abriu o For Rainbow no ano passado foi um documentário de formato bem convencional, mas que tem um forte apelo, ainda mais por ter sido lançado num ano em que estava ainda enfrentando o desgoverno de Jair Bolsonaro, que comparece em algumas cenas em imagens de arquivo, principalmente quando agia como deputado federal, inclusive quando já trazia algumas fake news. Mas os grandes protagonistas de CORPOLÍTICA (2022), de Pedro Henrique França, são mesmo os candidatos a vereadores ou deputados, durante suas campanhas no ano duro de 2020. As mais conhecidas são Mônica Benício e Erika Hilton, mas achei muito interessante uma candidata que não foi eleita, Andréa Bak. William De Lucca também é um dos protagonistas, mas achei o menos interessante dos quatro principais. A grande questão que o filme levanta é a necessidade e a importância de haver pessoas LGBTQI+ dentro do legislativo, para ajudar a mudar as coisas através de leis. O problema que eu vejo no filme é que a narrativa vai perdendo fôlego no final, e senti que alguns personagens vão se repetindo. Eu diria que uma duração uns 10 minutos menor não faria mal para ajustar o ritmo. De todo modo, considero este um filme que muita gente deveria ver. Inclusive pessoas que ainda não se livraram do preconceito de gênero.
domingo, setembro 03, 2023
DÁLIA NEGRA (The Black Dhalia)
“I see the family as a structure that brings about the manipulation and destruction of the individual.”
Brian De Palma
A frase acima, dita em longa entrevista do cineasta para o livro de Samuel Blumenfeld e Laurent Vachaud, deixa claro, mais uma vez, o quanto a imagem que ele guarda da instituição familiar é de mais danos do que de aspectos positivos. É uma visão extremamente pessimista e amarga, mas não é novidade para quem acompanha a obra de De Palma e sabe da relação de proximidade de seus personagens e sua biografia. E quando o cineasta parecia estar disposto a deixar para trás todos os seus traumas num filme como MISSÃO: MARTE (2000), tudo volta, de maneira ainda pior, com DÁLIA NEGRA (2006), seu filme noir sangrento e bastante sombrio que envereda pelos medos e pelas inseguranças mais profundas do ser humano.
O problema é que o filme é uma de suas obras mais difíceis. Não por causa dessas questões mais pesadas e autobiográficas, mas por apresentar um diretor que parecia um pouco perdido e talvez menos inspirado. Porém, estudar e acompanhar com atenção a poética de seu cinema tem me ajudado a gostar (ou quase) até de seus (supostos) tropeços. DÁLIA NEGRA é um noir confuso (de certa forma normal para o subgênero, mas que podia trazer um encanto maior através das imagens), com um problema às vezes de escolha de elenco (não consigo entender escalarem Hilary Swank para viver uma femme fatale, sem falar que dizer que ela é a cara da falecida Elizabeth, vivida por Mia Kirshner, é difícil de engolir).
Mesmo Josh Hartnett, o protagonista, parece um herói com pouca força, com aquela cara de menino. Porém, dentro das obsessões do diretor é fácil entender a oposição tanto moral quanto visual entre os personagens de Hartnett e Aaron Eckhart (aqui, com uma cara de psicopata assustadora). Toda essa questão entre irmãos tão frequente na obra de De Palma, volta com força aqui. A cena de boxe do início, em que o personagem de Hartnett perde os dentes numa luta com Eckhart, a considero de extrema crueldade, até por ser vista com olhares de risos e escárnio, inclusive pela personagem de Scarlett Johansson, que mais tarde se mostrará apaixonada pelo herói vivido por Hartnett.
Por outro lado, foi um acerto monstruoso ter Fiona Shaw como uma milionária meio maluca e suicida (inspirada na mãe do próprio De Palma). Aliás, toda aquela família da personagem de Swank é uma “homenagem” à família do cineasta. Também é bom ver as interseções entre o filme e outras obras do diretor, como DUBLÊ DE CORPO (1984), OS INTOCÁVEIS (1987), OLHOS DE SERPENTE (1998), entre outros. Há também toda uma relação com o filme clássico hollywoodiano dos anos 1940, numa intenção de homenageá-lo, mas à maneira do diretor, com aquele jeito meio torto, estranho e bonito. Infelizmente é um filme que poderia ser uma obra-prima, se realizado na fase de maior inspiração de De Palma, mas que no novo milênio se provou menor. Ainda assim, há momentos surpreendentes que geram aflição, estupefação e dor. Para o cineasta, o fracasso comercial de DÁLIA NEGRA foi mais um golpe. O filme custou 50 milhões de dólares e não conseguiu se pagar.
Tem sido muito bom ler os capítulos dedicados aos filmes do cineasta no livro Brian De Palma’s Split Screen, de Douglas Keesey, logo após ver ou rever cada um deles. É quando aprendemos mais sobre as circunstâncias da realização das obras. Fiquei sabendo, por exemplo, que o filme foi feito um ano após a morte do pai do realizador, aos 100 anos de idade. Há uma cena em DÁLIA NEGRA em que Bucky (Hartnett) vê seu pai senil atirando e matando um monte de pombos. O pai de De Palma, antes de morrer, provavelmente havia se transformado numa figura muito frágil, mas que ainda era capaz de machucar, pelos traumas que deixou no cineasta.
A relação de excessiva competitividade entre Bucky e Lee (Eckhart) se apresenta de maneira mais brutal na cena da luta de boxe, mas de maneira também incômoda no triângulo amoroso que se forma com Kay (Scarlett Johansson), mulher de Lee, e portanto, alguém que é vista como proibida para Bucky, apesar da atração sexual intensa que ele sente por ela. Esse desejo por Kay, Bucky optou por satisfazer com outra mulher, menos idealizado, a Madeleine, de Hilary Swank, que mais tarde seria morta pelo próprio Bucky, numa espécie de descida aos infernos do personagem que até então representava um herói puro. O moralismo de Bucky, aliás, fica evidente quando ele deixa a casa de Madeleine com muita raiva, logo após ela contar o fato de ela ter feito sexo com outra mulher.
No livro, o capítulo sobre DÁLIA NEGRA também fala de outra relação de competitividade: a de Brian De Palma com Martin Scorsese. De Palma se vê como “o outro cara”, enquanto Scorsese é geralmente encarado por muitos como o maior cineasta americano vivo. Enquanto Scorsese quase sempre ganha boas críticas e repercussão, De Palma tem que encarar críticas negativas e bilheterias quase sempre baixas. De Palma também cita a competição dos diretores até mesmo em temáticas e tempo de planos-sequências. E até mesmo na escolha de um ator para seu filme. Mark Wahlberg era o ator que De Palma queria para viver Lee, mas Scorsese o escalou para OS INFILTRADOS. Embora De Palma tenha feito dois filmes com cenas de boxe, foi Scorsese quem fez uma obra definitiva, TOURO INDOMÁVEL. Sobre os planos-sequência, De Palma ultrapassou o tempo de TOURO INDOMÁVEL com OS INTOCÁVEIS, mas Scorsese bateu o recorde dele com OS BONS COMPANHEIROS, o que fez com De Palma respondesse com A FOGUEIRA DAS VAIDADES (1990) e OLHOS DE SERPENTE.
Acredito que ler o romance de James Ellroy pode ajudar a tornar a trama um pouco mais compreensível. Refiro-me ao quebra-cabeças envolvendo quem matou quem, quem ajudou a matar, as motivações, os detalhes etc. É como se De Palma não conseguisse dar conta de tanta coisa. Ou talvez não quisesse tornar seu filme um pouco mais fácil de compreender. Ou talvez algumas cenas tenham ficado na sala de montagem. Não sei dizer. Mas, por mais que eu não tenha sentido muito prazer vendo DÁLIA NEGRA (o que geralmente ocorre vendo os filmes do realizador), esta talvez seja a obra mais importante que ele fez no século XXI.
+ DOIS FILMES
PASSAGENS (Passages)
O cineasta americano Ira Sachs está cada vez mais olhando para o mercado fora dos Estados Unidos, depois de ganhar as graças da crítica a partir de DEIXE A LUZ ACESA (2012) e abordar de diferentes maneiras as relações homoafetivas. Este PASSAGENS (2023) é um de seus filmes mais internacionais, com um trio de atores de diferentes países: Franz Rogowski (Alemanha), Ben Whishaw (Inglaterra) e Adèle Exarchopoulos (França). O que me incomoda no filme desde o começo é a própria presença do personagem de Rogowski. E nem é por seu egoísmo, mas talvez por ser difícil comprá-lo como par romântico de Exarchopoulos. Além do mais, falta química entre os dois e a personagem feminina está quase sempre na posição de obstáculo surgido na relação entre os dois homens. Ainda assim, o filme foi me ganhando em seu terceiro ato, quando torna mais complexa a dificuldade que o protagonista encontra de lidar com seus dois amores, por assim dizer. Minhas cenas favoritas são justamente as três últimas, dos três últimos diálogos. Ira Sachs é um diretor a se prestar atenção sempre.
RHEINGOLD – O ROUBO DO SUCESSO (Rheingold)
Fatih Akin havia me chamado a atenção com seu suspense brutal e sujo O BAR LUVA DOURADA (2019) e aqui ele até parece brincar mais uma vez com o uso da violência de maneira muito interessante, mas, quando começa a ficar tudo muito parecido com os filmes de Guy Ritchie, este novo trabalho chega a incomodar, além de se estender além do necessário. O que achei mais interessante em RHEINGOLD – O ROUBO DO SUCESSO (2022) foi ver as histórias de sobrevivência do protagonista antes de se tornar rapper e também de seus pais, que enfrentaram regimes totalitários e teocráticos que os levaram à tortura. Memorável a cena da mãe de Xatar dando à luz numa caverna cheia de morcegos, por exemplo. Akin parece perder o interesse por seu próprio filme quando resolve fazer uma biopic bem tradicional de alguém que se torna um músico de sucesso. Depois disso, tudo de bom que havia visto então (adoro as cenas de vingança de Xatar a seus algozes nas ruas) acaba ficando quase esquecido.