quinta-feira, setembro 14, 2023

CAPITU E O CAPÍTULO



Sou professor de escola pública. Esse é o meu ganha-pão. Se nas redes sociais não me apresento com frequência como professor talvez seja porque eu seja, antes de professor, um cinéfilo, um amante das leituras, seja a literatura, sejam os quadrinhos, e também um amante da música que tem cada vez escutado menos música em casa, e apenas no carro, justamente pela falta de tempo. Veja bem: não reclamo. E adoro o meu ambiente de trabalho, adoro meu grupo de colegas da escola, e também amo as pequenas conquistas educacionais quando consigo tocar meus alunos através da arte (da música, principalmente), aproveitando o fato de minha disciplina ser o inglês.

CAPITU E O CAPÍTULO (2021) funcionou como um lembrete do quanto eu gostaria de estar com mais tempo (e energia) para me dedicar à alta literatura, ainda mais que tenho título de mestre em literatura comparada. E quando falo de tempo para os livros, também falo de tempo para os filmes, para os quadrinhos etc. Para os estudos daquilo que amo, enfim. Sair da sessão do filme do Bressane é sair convicto de que você não entendeu nem um décimo das referências, mas ainda assim adorar tudo aquilo que foi encenado e dito com imagens e palavras. Mais ou menos como ler contos de Jorge Luis Borges. 

Bressane vem, já faz umas décadas, exercitando sua erudição nos filmes. Brinca com ela usando um estilo de cinema que remonta a Godard, com um interesse menor pela trama em comparação com o interesse pelo que quer ser comunicado em linguagem cinematográfica de sofisticação visual, com o compartilhamento de maneira pouco didática da cultura do cineasta nas mais variadas áreas do conhecimento – história, literatura, filosofia, cinema, teatro, pintura, música etc.

Em seu cinema, já passearam nomes como Padre Antônio Vieira, Nietzsche, São Jerônimo, Cleópatra, Fernando Pessoa, Mário Reis, Lamartine Babo, Oswald de Andrade e Machado de Assis, que já foi adaptado em três ocasiões: BRÁS CUBAS (1985), A ERVA DO RATO (2008) e agora em CAPITU E O CAPÍTULO.

A oportunidade de ver um Júlio Bressane no cinema é um presente inenarrável. Em casa, é mais fácil se dispersar com sua obra um pouco mais hermética, principalmente as mais fragmentadas. CAPITU E O CAPÍTULO tem uma sintonia incrível com Dom Casmurro, seu ponto de partida de inspiração. Se não me engano, foi a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas que Machado de Assis trabalhou com capítulos pequenos (e alguns poucos maiores). Aliás, eu diria que essa coisa dos capítulos pequenos desses romances, além de ser um charme, é também uma ótima maneira de fazer com que o leitor passe rapidamente para o próximo capítulo.

É ótimo poder ler Machado em voz alta, como o faz o personagem vivido por Enrique Diaz no filme. Ele é ao mesmo tempo Machado e Casmurro, a versão mais madura de Bentinho, o jovem retratado da narrativa. (Ler em voz um texto bem escrito é tão gostoso quanto saborear uma comida fina e é algo que faço com muito gosto, sempre que consigo tempo, na privacidade de meu quarto.) Quando saí da minha segunda sessão do filme, aliás, falei para um amigo que o veria com muito prazer se fosse inteirinho o Enrique Diaz lendo textos do século XIX. 

O que mais se aproxima de uma história no filme é o conflito clássico entre Bentinho (Wladimir Brichta) e Capitu (Mariana Ximenes). Capitu é uma mulher manipuladora (?), que tem consciência de sua sensualidade atraente, mas que, mesmo assim, quer ter certeza de que é amada (muito divertido o diálogo em que ela pergunta ao marido se ele abandonaria a mãe por ela). Bentinho é um homem inseguro, paranoico (?) e meio bobão e Brichta está ótimo como esse homem meio paspalho e responsável pelos momentos mais engraçados do filme. Mais do que questionar a suposta traição de Capitu e o suposto engano de Bentinho, o filme brinca com seu próprio estilo de encenação, com sua dramaturgia peculiar, com uma direção de arte tão sofisticada e bela que nem parece uma produção modesta. Vale lembrar que Djin Sganzerla é outra atriz que contribui para momentos muito divertidos. Há uma fala sobre a capacidade atlética do marido que tem uma dupla conotação impagável.

Se fosse só por um incentivo cultural, nesses tempos de TikTok e outras redes sociais que consomem nosso tempo com coisas inúteis e que fritam nosso cérebro, Bressane já mereceria nosso mais profundo respeito. Mas não: o filme nos deixa felizes até com as lacunas do que não conhecemos ou não entendemos, e isso se transforma em delicioso mistério e grande cinema. E vejam só: CAPITU E O CAPÍTULO traz o melhor cineasta brasileiro vivo adaptando de maneira muito própria o maior escritor brasileiro de todos os tempos. 

A propósito, o filme me fez comprar uma edição de Dom Casmurro (escolhi a da Penguim). Estou relendo com muito prazer. 

+ DOIS FILMES

O PORTEIRO

Talvez um diretor melhor soubesse aproveitar o texto e os ótimos atores e transformá-lo em algo com um timing mais acertado. Ainda assim, O PORTEIRO (2023), de Paulo Fontenelle, é um filme bem simpático que garante algumas boas risadas, embora seu ritmo irregular atrapalhe em alguns momentos. A história é narrada pelo porteiro do título, o Waldisney (Alexandre Lino), numa delegacia de polícia. Assim, ficamos sabendo da confusão ocorrida durante um dia na vida do protagonista e dos moradores de seu condomínio. É o tipo de comédia popular que mira um público mais simples, e que já parece não ter interesse nas comédias brasileiras. Na verdade, parece não ter interesse (ou dinheiro) em voltar a frequentar as salas de cinema. Espero que a situação se reverta, e que novas e melhores comédias voltem a ser benquistas pela audiência.

CANTANDO NO CHUVEIRO

A proposta é bem interessante e as pessoas que aceitaram fazer parte do projeto são certamente felizes com seus corpos. O curta CANTANDO NO CHUVEIRO (2022), de Fábio Rogério, apresenta uma série de imagens de homens e mulheres cantando nuas no chuveiro – há, inclusive, o crítico de cinema e ator Jean-Claude Bernadet, cuja performance tem um diferencial divertido. Dedicado ao amigo e crítico de cinema Wesley Pereira de Castro, que vez ou outra gosta de testar os limites das redes sociais com fotos suas provocantes (para os padrões dessas redes), é possível pensar que o diretor tenha se inspirado nos arroubos de inteligência e sentimentalidade de Wesley para compor seu filme. Simples e provocativo, imagino o quanto pode ser divertido vê-lo junto a um grande público, em meio a outros curtas.

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