Uma das coisas ao mesmo tempo tristes e comoventes no livro de entrevistas Afinal, Quem Faz os Filmes, de Peter Bogdanovich, é perceber a decadência física dos cineastas entrevistados, por mais que em boa parte das conversas eles estivessem com disposição para falar sobre as histórias envolvendo a realização de cada um de seus filmes. No caso de Edgar G. Ulmer, ele havia melhorado depois de um primeiro derrame, e conseguiu falar sobre sua carreira inicial até O INSACIÁVEL (1948), que Bogdanovich considera um de seus melhores trabalhos. Depois disso, ele se foi.
Acho louvável Bogdanovich se juntar aos críticos franceses e a outros estudiosos do cinema, que nas décadas de 1950-60 trouxeram um sentimento de valorização para as obras de vários cineastas-autores da velha Hollywood. Embora Ulmer não seja um cineasta exatamente ausente dos livros, há muitos filmes de baixo orçamento em seu currículo que acabaram ficando esquecidos do público médio. Para se ter uma ideia do que ficou no cânone, no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, apenas dois filmes do diretor são citados, ambos em textos de meia página: o horror O GATO PRETO (1934) e o noir essencial CURVA DO DESTINO (1945). São obras fundamentais, é claro, mas muito mais precisa ser descoberto. Por mim também, inclusive.
Eis que tive a oportunidade de ver em uma ótima cópia UM TRISTE PRAZER (1933), que o cineasta realizou a pedido do ministério da saúde do Canadá, com o propósito de alertar as pessoas para os perigos das doenças venéreas, em especial a sífilis, e o que ela pode causar caso não seja tratada com muito cuidado e atenção. O filme acabou resultando numa espécie de exploitation de doença. O homem, depois de uma aventura com uma mulher que conhecera em uma noitada, passa sífilis para a esposa e o mundo deles desmorona quando descobrem a doença.
Há um trabalho de tensão e suspense que existe do início ao fim, além de uma dramaticidade extrema que o aproxima da tragédia, aproveitando muito bem um registro de melodrama típico da época, com pouca utilização de música, ao contrário dos exemplares dos anos 1950. Ulmer ainda faria vários filmes ótimos, rentáveis e baratos.
UM TRISTE PRAZER tem aquele estilo de câmera meio parada, muito comum na maioria das produções do início dos anos 1930, ainda se adaptando ao som, mas achei bem dinâmico, apesar das limitações técnicas (e orçamentárias). Ulmer era famoso por conseguir fazer filmes em poucos dias, com pouco dinheiro e ainda ter resultados incríveis. Este, por exemplo, foi realizado em oito dias. Nesse sentido, vejo Ulmer como um autor que conseguiria trabalhar no esquema de realização brasileiro dos anos 1970 com a mesma desenvoltura com que trabalhou em Hollywood, sem se importar tanto com a extrema modéstia das produções.
O filme teve uma carreira bem conturbada por abordar o tema de maneira bem pouco sutil. Há uma cena em que um médico apresenta ao protagonista uma verdadeira sala de horrores no hospital, como se adentrassem uma espécie de inferno. Eles atravessam um corredor e em cada sala há uma pessoa que enfrenta uma consequência específica da sífilis, desde uma ferida que pode causar a amputação do pé de um homem até um caso grave de doença neurológica. Provavelmente essa sequência tenha sido o estopim que levou um crítico do New York Times a dizer de UM TRISTE PRAZER: "talvez o filme mais grotesco já lançado em distribuição pública" (Jacques Lourcelles, Edgar Ulmer, lempereur du bis). Com isso o filme só foi exibido em mais salas nos Estados Unidos somente em 1937, por causa da censura. Hoje em dia, isso até pode funcionar como chamariz. Que mais pessoas vejam o filme, então.
+ DOIS FILMES
QUEM AMA NÃO TEME (Never Fear)
Bom poder ver o segundo filme da Ida Lupino, QUEM AMA NÃO TEME (1950), e já fazer uma conexão direta com o primeiro, sendo que considero este superior, ainda que mais carregado no melodrama. Como isso não é problema pra mim, ao contrário, então me emocionei diversas vezes. Interessante esse cuidado inicial com as questões humanas: se o primeiro filme dela era sobre a questão da mãe solteira, este aqui lida com o impacto da pólio. Na trama, uma dançarina (Sally Forrest) que acabou de iniciar uma grande carreira descobre que contraiu a doença.
O MUNDO É O CULPADO (Outrage)
É impressionante como O MUNDO É O CULPADO (1950), terceiro longa dirigido por Ida Lupino, dialoga com os dias de hoje, dias cheios de assediadores e estupradores sendo revelados. E nem é um filme que explicita a violência. Ainda assim, ela é muito presente. Ao falar de estupro, a cineasta sabe que está falando de um tema espinhoso e que não pode colocar o assunto de maneira tão clara por limitações do Código Hays. Na trama, jovem (Mala Powers) tem sua vida perturbada quando é violada no caminho de casa.