sábado, maio 28, 2022

TANTAS ALMAS



Uma das coisas que me deixa muito triste é o desconhecimento que temos da história dos nossos países vizinhos. Sabemos detalhes da história dos Estados Unidos e, no entanto, eventos relativamente recentes de países da América do Sul parecem novidade para nós. Parte disso está também no modo como a grande imprensa dimensiona essas notícias, fazendo com que elas ganhem pouca visibilidade frente a outras, julgadas mais importantes, em países ditos do primeiro mundo. Estou vendo muita gente admirada, por exemplo, em não ter ouvido falar das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), nome dado às milícias que atacavam camponeses e ONGs progressistas no começo dos anos 2000, com apoio extraoficial do presidente do país naqueles primeiros anos do novo milênio. Eu também nada sabia. 

E com isso chegamos a TANTAS ALMAS (2019), de Nicolás Rincón Gille. É difícil não assistir ao filme e não imaginar um Brasil em um segundo mandato presidido por Jair Bolsonaro. Um país zumbi, ameaçado constantemente por pessoas autoritárias, estúpidas e assassinas. Na trama, que se apresenta de maneira bastante lenta, um pescador chamado José (Arley de Jesús Carvallido Lobo) sai em busca dos corpos de seus dois filhos assassinados e desaparecidos pelas forças paramilitares do país.

Na bela fotografia em scope de Juan Sarmiento G. (ALGUMA COISA ASSIM, de Esmir Filho e Mariana Bastos), há uma preferência por imagens escuras, até porque as ações do homem precisam ser às escondidas dos milicianos. Mas há passagens de luz natural do dia também muito fortes, mesmo que essa luz não ajude a atenuar o sentimento de impotência que impera. É o caso de uma cena em que o protagonista adentra um cemitério em que pessoas não identificadas estão enterradas, algumas delas com os corpos em pedaços, dentro de vários sacos pretos.

Entre as cenas que destacam o enfrentamento de José com os milicianos, há um momento em que ele é abordado por dois deles, quando encontra o corpo de um amigo à beira do rio, perto dos corpos de outras pessoas. Enquanto ele está "conversando" com o amigo morto, esses homens chegam e o ameaçam. Sua única arma perante aqueles homens que aparentemente o matarão é dizer que ele os perturbará se for assassinado. Esta é a única arma possível: fazê-los ter medo de uma vingança do além.

Aliás, não é difícil ver TANTAS ALMAS como um filme bastante próximo do mundo dos espíritos. José acredita que para encontrar o corpo do segundo filho é necessário que o rapaz lhe dê algum sinal. Pede desesperadamente um sinal. É aí que entra uma das cenas mais geradoras de impotência que vi no cinema nos últimos anos: José desenterrando as covas dos mortos anônimos para encontrar, quem sabe, o corpo de seu segundo filho. Isso depois de passar por uma jornada extremamente exaustiva, em que o cansaço parece mais presente em seu rosto do que em seu corpo, ainda resistente à fome, à perseguição e ao medo. Exatamente por não dar muita trégua ao espectador em seu ritmo que parece tentar emular o cansaço de José, TANTAS ALMAS não é um filme fácil. Mas quem disse que deveria ser?

+ DOIS FILMES

BELCHIOR - APENAS UM CORAÇÃO SELVAGEM

Vejo BELCHIOR - APENAS UM CORAÇÃO SELVAGEM (2021) como um aquecimento para futuras obras que consigam se aproximar mais da genialidade e da sensibilidade de Belchior. Se não do ponto de vista formal, sendo mais inventivo, poderia ser mais convencional, trazendo depoimentos importantes para ajudar a contar a história da vida e da obra do nosso Bob Dylan do sertão. A dupla de diretores Natália Dias e Camilo Cavalcanti opta por não usar depoimentos de outros, mas imagens de arquivo e histórias contada pelo próprio artista, em entrevistas para a televisão. Um destaque muito importante do filme está na presença de Silvero Pereira recitando as letras de algumas das mais poderosas canções de Belchior e mostrando que elas também sobrevivem sem a música praticamente com a mesma força. O próprio Belchior dizia que começava suas composições pela letra, e era por ela que a música nascia. Mais um motivo para se prestar atenção no que ele cantava. O documentário é curto e passa a sensação de incompletude, mas se fosse longo também passaria, já que o artista é inesgotável. Fica a minha gratidão por esta homenagem carinhosa em forma de documentário.

AMIGOS DE RISCO

Sempre fico feliz quando filmes dado como perdidos reaparecem como que por um milagre. No caso, a cópia extraviada exibida no Festival de Brasília de AMIGOS DE RISCO (2007) não existia mais. Porém, existia a versão-rascunho, e foi a partir dessa versão que, com muito esforço, pôde-se reconstruir a obra. Daniel Bandeira, mais conhecido como o montador da obra-prima VINIL VERDE (2004), de Kleber Mendonça Filho, faz um filme de trama simples, mas com um ritmo e atores muitos bons, que tornam o ato de ver a obra um prazer do início ao fim. Na trama, dois jovens recebem a ligação de um velho amigo que saiu da cidade depois de um esquema bem pouco honesto. Eles o reencontram e saem para uma noite de bebedeira e muita conversa, e que acaba não sendo muito feliz para nenhum dos três. A cópia digitalizada, talvez até por suas imperfeições, guarda um charme particular. Além de tudo, os grãos valorizam as cenas noturnas, onde se passam a maior parte da trama. Seria bom se um público maior fosse prestigiar este filme saído de uma cápsula do tempo.

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