sexta-feira, maio 06, 2022

A MESMA PARTE DE UM HOMEM



Lamento não estar conseguindo passar para o blog as reflexões que grande parte dos filmes merecem ter. Tentar pensar neles de maneira mais aprofundada é muito importante para mim, para que eles se mantenham mais presentes e não se dissipem tão rapidamente da memória. Assim, há muitos filmes que eu julgo importantes e valiosos e que acabam não ganhando um texto só dele pelo simples fato de o tempo, o trabalho e o volume de energia que me é tomado acabam por provocar um cansaço físico e mental que torna quase impossível me sentar à frente do computador e pensar no filme da forma que ele merece. Além do mais, nos últimos anos (cerca de seis ou sete anos, acho), tenho valorizado mais o tempo destinado ao sono reparador.

Aproveitando este momento mais ou menos livre, então, falemos de um dos melhores filmes brasileiros que tive a honra de ver neste ano, A MESMA PARTE DE UM HOMEM (2021), de Anna Johann. No filme, a diretora constrói um clima de tensão pautado bastante no som e muitas vezes nos close-ups e no modo como esse recurso também pode ser usado para intensificar nosso desconhecimento do que está fora da tela. O roteiro, assinado por Johann e Alana Rodrigues, é engenhoso em construir a trama, os diálogos e as situações que enriquecem o jogo entre os três personagens principais.

Na história, a rotina de duas mulheres, mãe (Clarissa Kiste, de FERRUGEM) e filha adolescente (Laís Cristina, da minissérie FORA DE SÉRIE), é mudada a partir do momento em que elas acolhem um homem desmemoriado (Irandhir Santos, desnecessário citar filmes com ele), após o desaparecimento/morte do marido/pai. Até que ponto aquele homem estranho pode ser um perigo para elas e até que ponto elas podem tirar vantagem de ter um homem dentro de um ambiente rural hostil? Ao mesmo tempo, o personagem masculino vai se tornando mais à vontade naquele ambiente de duas mulheres que se mostram atraídas por ele. E a brincadeira de ambiguidade começa a ficar mais interessante e carregada de tensão à medida que fazemos certos questionamentos sobre o que os personagens fazem ou pensam.

Johann, que tinha experiência na direção apenas com documentários até então, parece se sentir muito à vontade no território da ficção. O filme foi exibido em Tiradentes e depois também na Mostra de São Paulo, mas ver no cinema faz toda a diferença. Vi na gloriosa sala 2 do Cinema do Dragão e pude apreciar a obra da melhor maneira possível, com o som e a imagem tendo sua força amplificados. E falando em imagem, a fotografia de Hellen Braga (MÃES DO DERICK) é essencial para a apreciação do que vemos, com um trabalho de luz muito coerente com o mostrar e o esconder, e também na valorização tanto dos espaços interiores quanto da paisagem linda do interior do Paraná.

Uma das coisas que valorizo muito no filme é que o que há de terror e suspense no filme é tão sutil que faz com que o que acontece com os personagens deixe de ser uma diversão e se torne uma preocupação. Um dos melhores exemplos é a cena em que o personagem de Irandhir está sozinho no mato com a personagem de Laís. Ela está caçando com ele. E o personagem masculino, a certa altura, já estava muito consciente de seu papel naquele jogo de manipulação, mas nós, enquanto espectadores, temíamos pela jovem. É uma cena que, à parte, pode não ser tão tensa, mas dentro do conjunto faz toda a diferença. Eis um filme que quanto mais eu penso nele, mais eu gosto.    

+ DOIS FILMES

ALEMÃO 2

Ainda que goste do primeiro filme, de 2014, não estava tão confiante que José Eduardo Belmonte conseguiria fazer uma continuação depois de oito anos e com novos personagens. Na verdade, parte da força do novo (e melhor) filme está justamente nesses novos personagens, principalmente os três policiais que chegam na linha de frente para executar a missão de trazer o novo chefão do crime do complexo. Em ALEMÃO 2 (2022), os policiais são interpretados por Vladimir Brichta (que sofre ataques de pânico com frequência), a novata vivida por Leandra Leal e o jovem policial com pinta de fascista vivido por Gabriel Leone. Ou seja, temos um trio de atores excelente e de fato eles mandam muito bem nos momentos de tensão que o filme traz do começo ao fim. Quase não há momentos para respiro, e quando há, ainda somos brindados com cenas brilhantes, como a participação de Zezé Motta (que mulher fantástica!) e a conversa do personagem de Brichta com o chefe do crime (Digão Ribeiro) numa farmácia. Mesmo as cenas fora da favela, na sede da polícia, são muito melhores em comparação com as do primeiro filme, e há também o arco do jovem policial militar Bento (Dan Ferreira) com a sobrevivente do primeiro filme, Mariana (Mariana Nunes). Além do mais, diferente do primeiro, que parecia uma obra quase tímida em fazer uma crítica à instituição, essa tem uma posição mais crítica desde o início. E ouvir "O Que Sobrou do Céu" com uma imagem de arquivo chega a ser bem doloroso.

VALENTINA

É bom ver que é possível encontrar na Netflix um filme brasileiro que não apenas seja representativo da causa LGBTQI+, mas que também é de dar gosto de ver, com narrativa bem contada e personagens carismáticos. Na trama de VALENTINA (2020), de Cássio Pereira dos Santos, acompanhamos uma menina trans de 17 anos que encontra dificuldade de se matricular na escola de uma cidade do interior de Minas Gerais. Ela e a mãe já estavam se mudando por causa da violência que a garota vinha sofrendo em outra cidade. Novos ares podem ser a esperança para uma nova vida, em que ela pode ter a liberdade e a tranquilidade para ser quem deseja ser. A atriz que faz a personagem-título (Thiessa Woinbackk) é muito boa e a história se encaminha para situações que tanto evidenciam um tipo de roteiro mais tradicional, como também se mostra preocupado em apresentar detalhes do cotidiano da jovem, que ainda são obstáculos, como a cena da entrada na festa, por exemplo.

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