segunda-feira, janeiro 31, 2022

SPENCER



Não sou dos maiores fãs de Pablo Larraín. Costumo não gostar de seus filmes, ou de gostar bem menos do que talvez deveria. Falo isso pois, depois de ver SPENCER (2021) fico com a sensação de que deveria olhar com mais carinho para sua obra. Mas isso pode ficar para depois. Vamos nos deter agora neste belíssimo acerto que é esta obra que faz uma bela dobradinha com JACKIE (2016), seu primeiro filme em língua inglesa e com elenco hollywoodiano. No caso de SPENCER, ele poderia ter escolhido apenas atores ingleses. Colocar Kristen Stewart, uma americana nascida em Los Angeles, como a Princesa Diana, pode ter soado como uma provocação para os britânicos.

O fato é que Kristen é fantástica e já vem provando isso desde um bom tempo. Única atriz americana a ganhar o César (por ACIMA DAS NUVENS, de Olivier Assayas), a moça, que tem feito escolhas muito acertadas, seja em filmes mais arthouse, seja em produções de puro entretenimento, ainda teve a coragem de encarar a interpretação de uma personagem real tão querida e tão lendária na história da sociedade ocidental. Porém, diferente de DIANA, a biopic mais convencional estrelada por Naomi Watts e dirigida por Oliver Hirschbiegel, a opção de Larraín é, como esperada, bem mais ousada.

Como aconteceu com JACKIE, SPENCER tem provocado divisões entre os espectadores e críticos. Estou na categoria dos amantes do filme, que considero uma das obras mais representativas da opressão que uma pessoa sente em determinado ambiente. Li comparações por aí com O BEBÊ DE ROSEMARY, de Roman Polanski. E, de fato, há sim na obra um clima de opressão que muito lembra o de filmes de terror de famílias ou grupos satanistas que perturbam a mente de uma pessoa até fazê-la perder a insanidade.

A Diana de Larraín/Stewart sofre alucinações, vê aparições de Ana Bolena, a esposa do rei Henrique VIII que foi decapitada por ordem do próprio marido, e ainda vê em Ana Bolena alguém de mais sorte, pois teve apenas de perder a cabeça para se livrar da família. Além disso, Diana sofre de bulimia, e por isso a cena da balança, quando todos os membros da festa de natal da família real precisam ganhar três pounds (1,36 Kg) para demonstrar sua satisfação com o banquete, parece não apenas uma forma de potencializar a opressão, mas também um símbolo de transformação de uma pessoa em mercadoria – dado o modelo da balança.

Os simbolismos dessa opressão são muito claros, mas talvez por isso mesmo tão eficientes: as cortinas do quarto, a casa da família Spencer em ruínas, o arame farpado, o aviso de silêncio na cozinha, o colar de pérolas, os vestidos devidamente escolhidos para os dias específicos. E há o uso da música de Jonny Greenwood como potencializador do estado de perturbação mental da personagem, tornando o filme uma espécie de horror psicológico (o que é aquela cena da “sopa de pérolas”, ao som de um quarteto de cordas?). E há, do ponto de vista visual, a fotografia de Claire Mathon (de RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS) em tons esmaecidos, remetendo tanto a outras obras de Larraín quanto aos tons de imagem de vários filmes britânicos do período.

Para não dizer que não falei de flores, há também personagens que contribuem para momentos de alegria e conforto de Diana, como seus dois filhos pequenos e uma de suas camareiras, Maggie, vivida por Sally Hawkins, desde já uma das personagens mais amáveis já representadas no cinema recente. Ela é puro amor em um ambiente extremamente carregado de toxicidade. A cena da conversa de Diana com ela nas escadas e depois a caminhada na praia são enternecedoras.

A história se passa em 1991, dez anos após o histórico casamento, que chegou a ser televisionado para todo o mundo (eu era muito pequeno, mas tenho lembranças nubladas desse dia na tevê). Então, entre o casamento em 1981 e a morte de Diana em 1997, há muita história para contar. Mas história não é exatamente o interesse de Larraín. Pelo menos, não no sentido mais convencional. O interesse maior é na construção de uma atmosfera sinistra o bastante para incomodar uma personagem bem construída, o interesse é contar um período muito curto, o natal daquele ano de 1991, e as tentativas muitas vezes rebeldes de Diana de fugir daquele ambiente. A fuga aparece tanto no começo quanto no final do filme. Parece ser o único caminho possível e lógico a tão sensível pessoa.

+ DOIS FILMES

O GRITO DAS LEOAS (La Colline où Rugissent les Lionnes)

Filme que lida com a amizade de três jovens garotas habitantes de uma área rural de Kosovo que se veem aprisionadas naquele espaço. A própria diretora de O GRITO DAS LEOAS (2021), Luàna Bajrami, aparece como a amiga kosovar expatriada, um papel coadjuvante, mas que funciona para fazer um contraste com a situação das meninas, que sequer conseguem vagas na universidade, enquanto que a outra pode fazer livremente o trânsito Paris-Kosovo e ainda se achar em situação de desvantagem em relação às três. Acho que o filme se perde no quesito história, mas se a intenção é focar mais nos momentos entre elas, sem tanta preocupação em seguir um desenvolvimento narrativo melhor arranjado, O GRITO DAS LEOAS consegue bons momentos, especialmente por conta da expressividade das jovens atrizes e a beleza dos cenários.

CHARUTO DE MEL (Cigare au Miel)

E o filme de estreia da meia-irmã do nosso cineasta brasileiro Karim Aïnouz se mostra melhor do que os do realizador. CHARUTO DE MEL (2020) é muito sensível ao tratar da feminilidade de uma jovem filha de argelinos vivendo na França, que sofre tanto com a pressão dos pais, muito tradicionais, quanto com a da própria sociedade francesa, mais liberal. Ou seja, para os pais, ela tem que aparentar ser uma menina virgem; para os franceses, uma garota mais livre. Ao sair da sessão, ficamos com mais um exemplar da agressividade da sociedade patriarcal frente à mulher, mas também temos uma história de força de uma jovem dividida, encontrando seu próprio lugar. O fato de se passar em meados da década de 1990 também ajuda a dar ao filme um ar belamente catártico, inclusive por causa das canções-rock que tocam nas festas.

sábado, janeiro 29, 2022

A MORTE HABITA À NOITE



“Eu tenho meio século, porra!”, responde Raul (Roney Villela) à jovem Cássia (Endi Vasconcelos). Confesso que me identifiquei com o personagem neste momento, tanto pela minha idade atual quanto por me lembrar de meu pai, falecido aos 50 anos incompletos e em decadência física e moral. Um pouco como o personagem bukowskiano de A MORTE HABITA À NOITE (2020), brilhante longa-metragem de estreia do pernambucano Eduardo Morotó. Sua visão ao mesmo tempo lírica e dura desses personagens decadentes me deixou muito comovido e também muito encantado.

Logo no início do filme, Raul e sua mulher Lígia (Mariana Nunes) conversam amorosamente, tomando um vinho em seu quarto simples – mais tarde saberemos que eles estão prestes a ser despejados por deverem cinco meses de aluguel. A conversa cheia de chamego e contatos físicos é logo interrompida pela queda de um corpo, que passa rapidamente pela janela e ouvimos seu impacto no chão. Trata-se de mais uma pessoa que tira a própria vida no edifício onde eles moram. As primeiras cenas de um filme funcionam muitas vezes como suas sínteses e esse elemento dessa primeira cena é um indicativo do que ele tratará: morte, decadência, sensualidade e melancolia, não necessariamente nessa ordem, e muitas vezes caminhando juntos.

Antes de prosseguir falando sobre o filme em si, deixem-me fazer um breve desabafo. Acho uma pena que filmes brasileiros como esse sejam relegados a uma plateia tão pequena e que mesmo parte dessa plateia não esteja dando o devido valor à obra. Acredito que seja o caso de fazermos uma celebração pelo nascimento de mais uma produção feita em esquema de guerrilha e resultado em uma obra de qualidades estéticas e resultados emotivos impressionantes. Não falo apenas deste filme em si, mas eu diria que A MORTE HABITA À NOITE, mais um exemplar do excelente cinema produzido em Pernambuco, pode ser um exemplo perfeito dessa invisibilidade que nossos filmes são injustamente relegados. De todo modo, no caso deste trabalho de Eduardo Morotó, essa invisibilidade até que combina com seu espírito marginal.

O filme pode ser dividido em três atos. E esses três atos trazem três mulheres diferentes: Lígia, Cássia e Inês (Rita Carelli). No primeiro ato, Raul, apesar de viver na miséria, sem emprego, e depois arranjando um bico na feira, cortando peixe, ainda sente uma alegria de viver por causa da presença da mulher, que lhe é carinhosa, mas que também se sente muito desconfortável com a falta de dinheiro e de perspectiva do companheiro. E embora haja uma cena que flerte com o humor (a cena dos patos), há também algo de muito triste em ver alguém tendo que desempenhar tal ato para conseguir alguma coisa para jantar.

No segundo ato, que também explora bastante as ruas desertas da região central do Recife, temos a saída de cena de Lígia (que é algo corajoso para um diretor/roteirista fazer: dar adeus a uma ótima personagem) e entrada em cena da jovem garota de programa Cássia/Sandra. Ela representa uma vitalidade juvenil que vem junto com um pacote sombrio, seja da herança de família (ela fala algo trágico sobre a mãe), seja pelas circunstâncias em que vive. O fato de ela chegar na vida de Raul justamente quando ele está muito doente já simboliza um descompasso, embora se estabeleça ali uma relação de amizade que rende alguns momentos de alegria, regados a álcool e festas. Nesse segundo ato, comecei a prestar mais atenção no quanto Eduardo Morotó explora a beleza dos quadros, como na cena em que Cássia sente o sol da manhã em seu rosto na cama de Raul. (O diretor de fotografia, Marcelo Martins Santiago, é o mesmo de outros curtas escritos e/ou dirigidos por Morotó.)

Após um foco maior na tentativa de Raul de seguir em frente, o terceiro ato acontece após uma tragédia e se encaminha para o surgimento no final da última personagem feminina, Inês, cujo nome parece sugerir uma ironia, vindo da famosa frase “Inês é morta”. E há uma beleza transcendental nas cenas de Raul com Inês, nas conversas que surgem nos instantes em que o filme cruza a fronteira da materialidade para a espiritualidade. E isso ocorre quando ficamos sabendo de um lado de Raul até então pouco explorado pelo filme, que é seu lado romancista, sua tentativa de exercer sua arte e não alcançar visibilidade. E aqui chegamos novamente à questão da falta de visibilidade que nosso cinema vem sofrendo. A única alegria no meio de tanta melancolia e desesperança é acreditar que o abraço da morte pode, no final, ser um abraço carinhoso, caloroso. E isso, meus amigos, pode sim ser lindo. Enquanto isso, vivamos.

+ DOIS FILMES

ALELUIA, O CANTO INFINITO DO TINCOÃ

O cinema pode funcionar como viagem para mundos distantes, mas também está aí para nos apresentar a pessoas que fizeram/fazem parte de nossa história artística/musical. Não conhecia Mateus Aleluia, e continuo não conhecendo, é certo, mas fui apresentado a uma parte significativa do cantor e compositor, suas reflexões profundas acerca da arte, sua relação forte com Angola, seu passado junto à banda Os Tincoãs, e a forte influência do candomblé em sua forma de ver o mundo e a vida. A diretora de ALELUIA, O CANTO INFINITO DO TINCOÃ (2020), Tenille Bezerra, faz o possível para evitar uma obra didática. Então há coisas básicas que podem ser encontradas dando um google e o filme não está em busca disso. Em vez disso, há uma intenção de ir mais fundo na filosofia de vida do homem e talvez fundir seu filme a seu objeto de estudo.

VENTO SECO

Interessante estudo sobre o desejo um tanto escondido de um homem. O personagem de Leandro Faria Melo é um sujeito bem fechado que tem encontros às escondidas com seu colega de trabalho e acaba por se apaixonar por outro sujeito. Os três trabalham em uma empresa de fertilizantes em uma região bem seca de Goiás (não sei se todo o estado é seco, na verdade). O diretor Daniel Nolasco exalta e assume o desejo pelos corpos masculinos, enfatizando partes íntimas de seus corpos e trazendo um pouco de fantasias relativas a fetiches, que é o que talvez eu tenha mais gostado no filme, essas cenas dos sonhos do protagonista. VENTO SECO (2020) não é exatamente um filme para convidar toda a família e os membros da igreja para assistir, mas é bom ver que existe um espaço para uma obra como essa no cinema, por mais que seja em sessões muito restritas. No Cinema do Dragão, imagino que tenha sido sessão única.

quarta-feira, janeiro 26, 2022

CONSCIÊNCIAS MORTAS (The Ox-Bow Incident)



Costumo ver a década de 1940 como o período mais sombrio da história do cinema. Ou da história da humanidade no mundo moderno, talvez. Isso por causa da Segunda Guerra Mundial e seus anos posteriores, de luto e tristeza. Saber que o mundo era um lugar terrível, uma espécie de purgatório, não deve ser fácil. E isso o cinema soube explorar bastante, com seu ciclo de filmes noir cínicos e desesperançados. Outros gêneros, como o horror, o melodrama, o filme de guerra e o western foram contaminados com esse espírito sombrio. E talvez o maior exemplar de faroeste sombrio dessa década seja CONSCIÊNCIAS MORTAS (1943), de William A. Wellman.

Lembro que na época que vi este filme pela primeira vez, em um Corujão, fiquei absolutamente impressionado, comovido, tenso e muito intoxicado com a situação de iminente linchamento/enforcamento de três homens inocentes por uma turba ensandecida que queria “fazer justiça”. Os três homens eram vistos como os responsáveis por terem matado um rancheiro local e roubado seu gado. Como o xerife estava fora da cidade, os demais habitantes resolvem punir os supostos criminosos. 

Apenas três homens são contrários ao enforcamento cruel daqueles homens. Um deles é o personagem de Henry Fonda e um outro é um pastor negro (Leigh Whipper), que já havia sofrido com o linchamento de seu próprio irmão no passado. Ou seja, é também admirável como o cinema de Hollywood daquele período já fazia esse tipo de ataque aos linchamentos que eram feitos com frequência a pessoas negras, especialmente no sul dos Estados Unidos.

Aliás, um dos homens linchados é um mexicano, um homem de pele mais escura, vivido por Anthony Quinn. É admirável como um filme como este, tão cru, tenha sido realizado na Hollywood daquela época. CONSCIÊNCIAS MORTAS teve a coragem de escancarar, mesmo que de maneira pouco explícita, o que vinha acontecendo nas ruas das cidades americanas, já que os latinos também eram um povo que estava sofrendo violência da população branca dos Estados Unidos. E o mais assustador é que hoje essa realidade ainda está presente em nossa sociedade. No Brasil, inclusive. Bem mais do que nos Estados Unidos, hoje em dia, já que temos uma sociedade com uma disparidade social muito maior.

Há um texto arrepiante publicado na SET, na saudosa sessão "Filmoteca", que convidava pessoas que geralmente não faziam parte da equipe da revista para escrever um texto sobre um filme-chave de sua vida. Acabei de reler, então, o texto de Perseu Abramo sobre esse filme de Wellman. E o início, tão bom quanto grande literatura, me deixou impressionado. Abramo começa assim:

“O laço na ponta da corda, a corda pendurada na árvore, a árvore solitária no canto escuro, o escuro do pavor no olho do homem aterrorizado. Ele vai ser linchado. Os outros dizem que ele não roubou os bois. Ele sabe que não tem como provar sua inocência. Porque o crime que ele realmente cometeu é imensamente mais grave: ele é diferente, ele é estrangeiro, ele é escuro.”

Que baita soco no estômago. CONSCIÊNCIAS MORTAS é um dos títulos que melhor representa os limites de civilização e barbárie dentro daquele país em formação, do ponto de vista da aplicação das leis, mas também do senso de humanidade. Acho que o início do filme já apresenta algum tipo de animalização do homem. O filme inicia com os personagens de Henry Fonda e Harry Morgan conversando com o dono do saloon, que nos deixa claro que naquela cidade não havia nada para fazer, a não ser beber, jogar e brigar. Nem mulheres solteiras mais havia. Não que isso seja um motivo mínimo para fazer o que fizeram. Mas talvez seja um detalhe importante a ser evidenciado no sentido de que sem as mulheres a civilização tende a se tornar ainda mais bárbara.

O tipo de atuação no filme é bem menos melodramática do que a maioria das produções daquele período. Não sei se havia uma intenção maior de que o filme fosse visto como uma obra “superior” aos demais westerns que se faziam, mas há um texto muito interessante de André Bazin em que ele usa o termo “metawestern”, como o conjunto das formas adotadas pelo gênero depois da guerra. O tal subgênero, por assim dizer, seria “um western com vergonha de ser ele próprio e que procuraria justificar sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica..., em suma, por algum valor extrínseco ao gênero e que supostamente o enriqueceria.” E Bazin conta que sua origem remonta a 1943, com CONSCIÊNCIAS MORTAS.

De todo modo, tendo sua criação de forma pensada ou não para ser uma obra mais sofisticada dentro do gênero, o que importa é o quanto o filme permanece vivo e lembrado. Aliás, como esquecer a leitura em voz alta da carta de um dos homens mortos (Dana Andrews) para sua esposa, após a verdade ser revelada? Só resta aos demais amargar a culpa, tentar conviver com ela ou simplesmente esquecer que aquilo aconteceu.

Mais uma observação: vendo o trailer do filme presente no box Cinema Faroeste Vol. 8, percebi o quão diferente Hollywood quis vender a obra para os espectadores. No trailer, Henry Fonda aparece falando do romance de Walter Van Tilburg Clark, sobre o quanto se trata de uma obra-prima e do quão orgulhoso ele se sente em fazer parte de uma adaptação para o cinema. Ou seja, o caráter de prestígio de fato era uma intenção do estúdio na hora de vender o filme. Confesso que nunca havia visto um trailer assim no cinema da Velha Hollywood, exaltando a literatura como forma de valorizar o produto audiovisual. Nem com ...E O VENTO LEVOU fizeram assim.

+ DOIS FILMES

PARIS 1900 (Paris Mil Neuf Cent)

Um trabalho de resgate muito interessante sobre os 15 primeiros anos do século XX em Paris, passando pela alegria e pela vanguarda dos anos iniciais, que contavam com a presença de intelectuais e artistas de todo o mundo na capital e as mulheres procurando se libertar de muitas amarras (espartilho, vestidos). A coisa começa a ficar mais pesada a partir da década seguinte, quando a movimentação para a primeira guerra se apresenta. PARIS 1900 (1943), de Nicole Védrès, também mostra a maior enchente da história de Paris, ocorrida em 1910, além de primeiras tentativas (frustradas) de homens de voar. Ainda assim, confesso que não foi um documentário que me deixou muito entusiasmado.

O BECO DAS ALMAS PERDIDAS (Nightmare Alley)

Com a estreia nos próximos dias da versão de Guillermo del Toro para o romance de William Lindsay Gresham, tive vontade de entrar em contato com esta primeira versão, dirigida por Edmund Goulding (GRANDE HOTEL, 1932). O BECO DAS ALMAS PERDIDAS (1947) tem aquela linha amarga que imperava nos noirs da década de 1940, com personagens sem muito escrúpulos tentando enganar os outros. Tyrone Power está muito bem como um artista novato em um circo que vai galgando posições cada vez maiores graças a sua inteligência para aprender e malandragem para desenvolver suas habilidades. Quando ele aprende a enganar as pessoas no truque da adivinhação do pensamento, ele logo parte para melhores lugares além-circo. Achei o filme um pouco prejudicado pelo ritmo e tem uma parte que parece ter sido cortada, lá pelo terceiro ato. Por isso, acredito que del Toro deve ter conseguido fazer uma obra melhor. Vamos ver.

segunda-feira, janeiro 24, 2022

19 CURTAS BRASILEIROS



Mais uma leva de pequenos textos sobre curtas-metragens brasileiros importantes, vistos recentemente por ocasião das eleições de melhores do ano das associações brasileira e cearense de críticos de cinema.

A GENTE ACABA AQUI

Acho que este é um dos casos de título de filme que combina perfeitamente em ser usado no final. Fica aquela sensação que geralmente sentimos quando estamos diante da morte de alguém que amamos, quando viramos meio que filósofos da existência. E o modo como a diretora Everlane Moraes finaliza A GENTE ACABA AQUI (2021), depois de apresentar em curtos minutos um velório em uma família humilde, faz toda a diferença. No mais, há também um cuidado com a montagem muito discreta, mas também muito bonita, alternando o pai-nosso com o cortejo fúnebre.

MUXARABI

Documentário focado em um único personagem pode ter o risco de apostar as fichas em uma única pessoa e a coisa não funcionar. Felizmente o personagem escolhido em MUXARABI (2021), Eudes, o Bonitão, um homem que trabalha com metalúrgica no bairro do Jangurussu, em Fortaleza, e que inventa algumas coisas com ferro nas horas vagas, acaba por se mostrar bem interessante. Na sua simplicidade, Eudes fala de sua visão de mundo, deixa escapar saudades de amores do passado, e encontra no trabalho satisfação para viver. Natália Maia e Samuel Brasileiro pontuam os silêncios de modo a trazer momentos de reflexão e de emoção para Eudes, e esses pensamentos parecem surgir naquele exato instante, sem que ele se dê conta. Como o próprio Eudes fala sobre inspiração no trabalho, as coisas (os pensamentos, as ideias) simplesmente vêm.

PRAIA DOS CRUSH

Muito bom ouvir o nosso sotaque em produções dramatúrgicas locais. Neste PRAIA DOS CRUSH (2021), a diretora Marieta Rios começa sua história de maneira simples, a partir da necessidade de conversa entre duas jovens mulheres. A partir daí temos uma discussão em um grupo feminista sobre aceitações em relacionamentos, tanto hétero quanto homossexuais. Em seguida, o filme segue para um caminho mais criativo, numa festa, que exibe melhor os dotes da cineasta na construção de atmosfera em ambientes fechados e movimentação de câmera e cresce na cena da conversa sobre tatuagem.

SEBASTIANA

Um conto sobre as emoções de uma menina, SEBASTIANA (2020), de Claudio Martins, é uma animação indicada para um público infantil que chegou a ser exibida em vários festivais internacionais. Na história, Sebastiana é uma criança que, desde bebê, tem o dom de fazer chover sempre que está chorando. Logo a história corre o vilarejo e a menina passa a ganhar fama de bruxa ou de maldita pelos beatos e beatas. O salto da primeira infância para a fase escolar ajuda a dar uma perspectiva da própria menina, dos seus próprios sentimentos, e não o de terceiros, e isso torna o filme mais interessante em sua segunda metade.

ZÉ TARCÍSIO, TESTEMUNHA

A arte (do cinema) como meio de apresentar e glorificar outra arte. Por mais que ainda seja muito pouco apresentar o artista plástico Zé Tarcísio em apenas 26 minutos, esse tempo é aproveitado, tanto para ouvirmos seus depoimentos (sobre sua arte, sobre a censura nos tempos da ditadura), quanto para conhecermos algumas de suas obras mais famosas, sendo uma delas uma performance muito curiosa chamada "Anjo na Contramão", do tempo em que ele tinha um visual mais andrógino e andava de sutiã com asas numa bicicleta. Seu conceito de arte, então, ultrapassou e muito os espaços de museus. Inclusive, o tempo do diretor Delano Gurgel Queiroz em ZÉ TARCÍSIO, TESTEMUNHA (2021) também inclui silêncios que fornecem respiros muito bem-vindos.

BANZO

Curta doloroso que radiografa pequenos momentos de uma mãe pobre: a preocupação com a conta para pagar, o paradeiro do filho, a depressão, a tentativa de seguir em frente. A trama de BANZO (2021), de Rafael Luan, é desenvolvida de maneira simples, a iluminação escura ajuda a acentuar o clima de tristeza, as cenas das conversas com a amiga são rápidas mas também funcionais e representativas da dor e do desalento da protagonista. A edição com seus hiatos bem trabalhados é também um destaque.

ENTRE O PASSADO

Uma avó que morreu. Uma mãe que reaparece. Um filho que sofre o sentimento de abandono. Larissa Estevam constrói de maneira sensível o diálogo entre mãe e filho e faz sentimentos diversos aflorarem. Em uma sociedade machista é mais fácil culpar a mãe que abandona o filho do que o pai. Mas também é muito mais simples se solidarizar com o filho, com a mágoa que ele carrega ao longo de toda a jovem vida. Revirar esse turbilhão de emoções em pleno velório da matriarca não é fácil, mas ENTRE O PASSADO (2021) consegue lidar muito bem com tudo isso.

SAUDADE DOS LEÕES

Documentário que traz um misto de alegria e melancolia. A alegria vem, é claro, do fato de as festas no Lions serem uma alegria para os frequentadores e um espaço bastante democrático e gratuito. A melancolia vem com a chegada da pandemia e o perigo de fechamento do estabelecimento e o consequente impedimento de futuras festas. A estrutura de SAUDADE DOS LEÕES (2021), de João Paulo Magalhães, é simples, como documentário com depoimentos, mas o resultado é muito bom. Gostei de ver o amigo e colega de faculdade Carlos Augusto, que costumava discotecar lá, entre os principais entrevistados.

RUA ATALÉIA


André Novais Oliveira já é um dos maiores cineastas brasileiros. Seus curtas-metragens chamam a atenção pela sensibilidade e inventividade desde sua estreia com o excelente FANTASMAS (2010). Aqui ele, claramente, ou melhor, à luz de fósforos, faz sua homenagem à mãe, falecida em 2018. As imagens de RUA ATALÉIA (2021) foram captadas em 2011 e mostram um momento em que falta luz na casa de sua família e André filma aquele momento, em especial o close-up do rosto da mãe, como se explicitando uma vontade de eternizá-la. Há também o carinhoso momento do pai e da mãe olhando fotos do passado e comentando. Ressignificar esse registro em arte é a tarefa de André.

STONE HEART

Foi-se o tempo em que a animação brasileira era bem pobrezinha. A evolução tecnológica nos colocou em pé de igualdade com a maioria dos países mais desenvolvidos com as técnicas. E as animações mais adultas, principalmente essas despidas de diálogos, procuram ter um discurso construído a partir de metáforas, de situações que acontecem na narrativa e nos personagens. Em STONE HEART (2021), de Humberto Rodrigues, a trama se passa em um futuro destruído, com uma humanidade transformada em seres de pedra. Um desses seres tem sua humanidade devolvida a partir do contato com uma flor, uma única flor nascida do nada.

TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO

Criou-se um subgênero nos documentários (em curtas-metragens, principalmente) que tratam de memórias de infância como flagrante ou prova da evidência da personalidade de seu narrador. Em geral o diretor ou diretora. Em TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO (2020), Juliana Antunes recolhe imagens em VHS de sua infância que já apresentam seus primeiros flertes com meninas, suas preferências, e isso é mostrado com um senso de humor muito interessante, já que as imagens são mesmo flagrantes do desejo da garota, como as cenas na igreja. Fico imaginando o repertório de imagens que crianças dos dias de hoje terão para construir filmes como este no futuro próximo.

TERRA NOVA

Atualmente filmes que lidam com problemas sócio-econômicos têm me comovido mais. E TERRA NOVA (2021), de Diego Bauer, nos coloca no olho do furacão da situação de miséria e caos do Brasil de 2020, em pleno cenário pandêmico em Manaus, cidade que ainda sofreria bastante no ano seguinte. O trabalho de Diego Bauer é admirável. Herdeiro do neorrealismo italiano, mas com uma dramaturgia essencialmente brasileira, ele conta a história de duas moças que sofrem com a falta de dinheiro em casa. Uma delas acabou de ser demitida e a outra é uma atriz que está sem dinheiro e que luta para conseguir o auxílio emergencial. O filme funciona lindamente tanto nos interiores quanto nos momentos em que as irmãs (ou amigas?) se dirigem de bicicleta até a agência da Caixa Econômica. O curta tem 20 minutos, mas eu passaria horas acompanhando essas duas personagens.

PERTO DE VOCÊ

Muito interessante acompanhar estes filmes nascidos do período da pandemia. Aqui acompanhamos a situação grave acontecendo no país como pano de fundo (cada ato ou palavra perpetrada por Bolsonaro + o terror da Covid 19), ao mesmo tempo em que vemos a angústia do jovem Cássio Kelm (o diretor), em processo de transição de gênero, vivendo no mesmo apartamento que o pai. Ele fica se perguntando como contará ao pai e se questiona se o homem, viúvo, já não percebera suas mudanças ou prefere fazer de conta que não vê. PERTO DE VOCÊ (2021) é um curta relativamente longo, mas tão bem conduzido que não se percebe a meia hora passar.

TEREZA JOSÉFA DE JESUS

Depois de ver filmes curtos com ritmos mais pausados e alguns quase contemplativos, encontrei dificuldade de acompanhar a rapidez da montagem e da quantidade de mensagens deste TEREZA JOSÉFA DE JESUS (2021), de Samuel Costa. É um filme que pede uma revisão. Há muita coisa dita em poucos segundos/minutos, mas o principal é o luto. O luto de uma filha, uma poetisa (Juliana), que perdeu a mãe, Tereza. E dentro dos diversos estágios do luto, muito mais é dito, rapidamente, em palavras e imagens.

VOCÊ JÁ TENTOU OLHAR NOS MEUS OLHOS?

Talvez ver este curta de apenas quatro minutos seja um exercício de compreensão do outro - e também de identificação para alguns espectadores, no caso. Em VOCÊ JÁ TENTOU OLHAR NOS MEUS OLHOS? (2021), de Tiago Felipe, vemos fotos em preto e branco de um jovem negro se desnudando para um espelho. Há cortes rápidos, cortes de palavras também, cortes de palavras que podem significar algum tipo de censura da sociedade. A própria pergunta do título pode ser pensada a partir do que é mostrado ou enfatizado também do próprio corpo do rapaz, seja por objetificação, racismo ou hiperexploração da sensualidade.

SE HACE CAMINO AL ANDAR

Desconhecendo a poética de Paula Gaitán (só havia visto EXILADOS DO VULCÃO, 2013) , mas já sabendo da fama de ela ter alguns filmes longos e lentos, fui pego quase que de surpresa com este curta/média que nos convida a reaprender a olhar para uma imagem, apresentada de maneira tão demorada e lenta quanto nos filmes de Tsai Ming Liang. Com a câmera tanto tempo estática na figura de um homem se aproximando, quando ela sai do lugar vemos uma ação quase próxima da violência. Assim como é "violenta" a cena do homem de frente a um carro, em determinado momento. Há em SE HACE CAMINO AL ANDAR (2021) os simbolismos das duas estradas e do homem, dos sons e do modo como ele anda, mas não me acho suficientemente bom para dar conta deles. A mim, me resta uma posição mais de respeito a esse trabalho tão fora do comum.

YAÕKWA - IMAGEM E MEMÓRIA

Tanto Vincent quanto sua esposa Rita Carelli são antropólogos dedicados a fortalecer a identidade indígena no solo dos povos nativos. Em YAÕKWA - IMAGEM E MEMÓRIA (2020), eles apresentam aos Enawenê Nawê imagens de cantos, rituais e brincadeiras que já estavam esquecidos pelos povos atuais, principalmente por causa da morte prematura dos seus antigos líderes. Bem bonito ver todos eles sentados para ver esses registros com o uso do projetor. Vincent procura também ensinar a eles como usar as tecnologias e, a partir disso, passar o ensinamento aos demais. Este é um dos poucos (se não o único) filmes sobre a realidade dos índios que não me deixou triste.

YVY PYTE (CORAÇÃO DA TERRA)

Alguns filmes me dão muito trabalho até mesmo de tecer algumas linhas breves, mas gosto de aceitar o desafio. O que acontece é que certas obras precisam de informações extras para que se tornem um pouco mais completos. Saber, por exemplo, a tribo, no caso, o povo indígena Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Na maior parte da metragem de YVY PYTE (CORAÇÃO DA TERRA) (2020), de Genito Gomes e Johnn Nara Gomes, o que vemos é uma imagem quase estática de um crepúsculo (ou seria aurora?), enquanto ouvimos a fala do xamã Valdomiro Flores, que conta sobre as diferenças ocorridas nos rios e em outras coisas, em comparação com o que vê hoje. Como o curta tem apenas sete minutos, senti um pouco de dificuldade de "me acentar" no clima. Ainda assim, compreendo a importância dessas vozes que, de outra maneira, poderiam ser silenciadas na sepultura.

SEM TÍTULO #7 – RARA

Belo tributo à atriz Setzuko Hara, famosa por protagonizar alguns dos mais emblemáticos filmes de Yasujiro Ozu. SEM TÍTULO #7 – RARA (2021) é um trabalho de edição e reconstrução de imagens de vários filmes com a atriz, incluindo uma canção alegre ao fundo, que mesmo assim traz um tom levemente melancólico. Trata-se do sétimo capítulo da série "Sem Título", de Carlos Adriano, sempre filmes de montagem e, aparentemente, filmes de luto, de memória, de perda. O fato de Hara ter abandonado o cinema logo após a morte de Ozu também é uma informação adicional que passa um sentimento de leve comoção.

domingo, janeiro 23, 2022

DESTERRO



É um pouco difícil pôr em palavras os sentimentos que um filme me proporciona, especialmente quando esses sentimentos são ao mesmo tempo fortes e confusos, e também muito borrados pelos arrepios provocados pela música e pela interseção de emoções. No caso de DESTERRO (2020), Maria Clara Escobar opta por um registro fora do habitual, e por isso mesmo algumas coisas ficaram um tanto cifradas para mim; e por isso mesmo me gerou inquietação e amor pela obra.

Sabe aquela sensação de quando você começa a ver um filme e já percebe que ele te ganhou a partir das primeiras imagens e sons? Foi o que senti com este primeiro longa-metragem de ficção da diretora carioca residente em São Paulo, mais famosa pelo documentário OS DIAS COM ELE (2012). A opção, por exemplo, em fugir do óbvio na apresentação de cenas de conversa matinal de um casal já traz um tipo de fuga da vulgaridade que muito me agradou. Além do mais, a liberdade da cineasta em construir o que seria um enredo simples de perda e luto, acrescentando camadas e falas às vezes enigmáticas, tornou tudo ainda mais apaixonante. 

DESTERRO é mais um filme que ficou “na geladeira” por um bom tempo por causa da pandemia. A diretora, porém, quis esperar para que fosse lançado quando o país estivesse em melhores circunstâncias para uma exibição presencial. E devo dizer que a experiência de ver o filme no cinema é mesmo impressionante e a espera se justifica. Seja pelo modo imersivo que a tela grande proporciona, seja pelo cuidado com o som (há pelo menos duas cenas musicais que ficam magníficas numa sala de cinema), seja pela atenção às cores em interiores da fotografia de Bruno Risas (senti isso mais destacado especialmente no primeiro capítulo do filme).

DESTERRO é a história de Laura (Carla Kinzo), mulher que vive maritalmente, mas não no papel, com Isräel (Otto Jr.) e com o filho pequeno. Ela tem uma maneira sombria de ver a rotina que a deixa em estado às vezes zumbilesco. Em certo momento, ela comenta sobre um cometa que está passando próximo à Terra e fala como se torcesse para que o astro se chocasse com nosso planeta. Fala do quanto seria extraordinária a experiência de sentir a aproximação da morte nessas circunstâncias. O marido, ao contrário, considera esses pensamentos de Laura absurdos, afirma preferir não saber quando irá morrer. Confesso que me identifiquei um pouco com esse desejo ou imaginação de Laura – quando criança ficava torcendo para os aviões caírem do céu. Desde o início, portanto, a personagem me ganhou.

O fato de Carla Kinzo ser além de atriz também poeta (preciso conhecer sua obra) deve contribuir para tornar sua personagem tão fascinante, tão adorável, a ponto de suas palavras à frente da tela se tornarem imensas. Cada vez que ela verbaliza algo, algum pensamento ou sensação, o filme se engrandece. Como Kinzo colaborou com o roteiro, junto com Caetano Gotardo e a diretora, ela pode ser considerada coautora do filme. 

A segunda parte de DESTERRO se concentra no impacto da notícia da morte de Laura. Isräel recebe a informação pelo telefone de um homem desconhecido chamado Júlio (que mais tarde saberemos se tratar do personagem de Rômulo Braga (sempre ótimo). Enquanto isso, meu sentimento de luto por Laura parecia mais forte do que o do próprio companheiro dela. Como assim que haviam matado a melhor personagem? - eu me perguntava. O filme segue, nessa segunda parte, mostrando as dificuldades que o marido enfrenta para conseguir a deportação do corpo dela. 

A alegria da terceira parte do filme, a mais diferente de todas, é que Laura volta. Como em PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA, o tempo retorna e somos apresentados aos instantes anteriores à morte da nossa heroína, quando ela se encontra em um ônibus com destino à Argentina. Sua fuga pode ser ainda pouco compreendida, mas nem tanto, se pensarmos em detalhes que a primeira parte do filme apresentara. E é nesta terceira parte que Maria Clara Escobar mais utiliza poemas, letras de música, canções, ou mesmo falas construídas a partir de experiências pessoais, como o monólogo de Georgette Fadel (PARTIDA), inspirado na história de sua mãe.

No ônibus, estão, além dos já citados Carla Kinzo, Rômulo Braga e Georgette Fadel, atrizes de rostos bem conhecidos, como Bárbara Colen (BACURAU), Isabél Zuaa (AS BOAS MANEIRAS) e Maria José Novais Oliveira (ELA VOLTA NA QUINTA). A reflexão sobre a imposição violenta da sociedade às mulheres comparece em alguns trechos, com ênfase no poema recitado por Colen, retirado do livro Um Útero É do Tamanho de um Punho, de Angélica Freitas. Mas é numa das paradas do ônibus no meio do caminho que eu mais me encantei. A cena musical com direito a dança de Kinzo e Braga, ao som de “Ana Maria”, do Trio Odemira, é linda. Diante da opressão que o filme expõe, essa cena é como uma libertação momentânea. Assim como é também a cena de fuga de Isräel, ao som de “Santa Igreja”, da banda punk Mercenárias, outro momento intenso. Ambas as cenas me remetem a Godard e a Carax.

Um filme como DESTERRO é uma obra para ser vista e revista, compreendida a partir dos pensamentos e dos sentimentos que o próprio filme passa, mas também dos diálogos com outras manifestações artísticas tomadas emprestadas para compor o trabalho final de Escobar. Desde já, este é um dos filmes mais queridos vistos por mim neste início de 2022. E uma prova de que o cinema, até quando nos aponta o mal estar da vida, é tanto um convite quanto um motivo para seguir vivendo.

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ÚLTIMA CIDADE

Misto de faroeste com sci-fi pós-apocalíptica, ÚLTIMA CIDADE (2020), de Victor Furtado, também tem seu momento de abertura para o documentário dentro de sua estrutura ficcional. É quando o protagonista, João (Julio Adrião), encontra moradores de rua no centro da cidade e ouve deles depoimentos de seu passado e presente. Na trama, ele é um homem vestido como um jagunço do sertão, mas vivendo em tempos contemporâneos (ou futuros). No caminho para chegar à cidade grande, ele encontra um estrangeiro, com quem faz amizade. O final amargo acentua a crítica à especulação imobiliária, à concentração de riqueza (que significa pobreza), ao próprio capitalismo, enfim, mas também à tristeza da prisão em que ele se encontra. É um filme que aposta bastante nos simbolismos e na força das imagens e menos nos diálogos, e isso talvez exija um pouco mais de esforço por parte do espectador.

AQUI JAZ O TEU ESQUEMA

Um dos aspectos mais interessantes deste AQUI JAZ O TEU ESQUEMA (2021), de Gabraz Sanna, é o quanto existe um trabalho de fluxo de consciência a partir da mente de uma pessoa bêbada. E isso torna o processo bem curioso, já que a fala do personagem está com poucos filtros. O filtro maior é sua própria consciência, que de vez em quando sabe se aquilo que ele vai contar pode ou não ser dito, coisas relativas a assassinatos ou violência que ele presenciou, vivenciou ou soube, de algum modo. Trata-se de um filme com pouquíssimos cortes e com a câmera parada em praticamente toda sua metragem. Alguns trechos são familiares no modo como representam alguém de esquerda cuja família e vários amigos de infância são hoje bolsonaristas. O personagem também se mostra como uma pessoa fracassada, do ponto de vista material, mas ainda assim não se acha menor do que os que se venderam para o golpe e estão em situação financeira melhor. Há trechos do filme que me cansaram um pouco, mas isso faz parte do risco desse tipo de projeto. Gostaria muito que fosse exibido em sessões comerciais no futuro, mesmo sabendo se tratar de uma obra de público bem pequeno.

sábado, janeiro 22, 2022

EDUARDO E MÔNICA



E o legado de Renato Russo, o mentor daquela que eu considero a melhor banda de rock do Brasil, segue sendo absorvido pelo cinema. René Sampaio, mesmo diretor de FAROESTE CABOCLO (2013), repete o posto nesta segunda adaptação de uma letra da Legião Urbana para as telas. EDUARDO E MÔNICA (2020) demorou um bocado para ser lançado por causa da pandemia. As duas únicas exibições públicas haviam sido no Festival de Miami, em março de 2020, e no Festival de Edmonton, no Canadá, em outubro de 2020. Como não foi exibido em nenhum festival online, o filme conseguiu escapar de eventuais vazamentos e chegou aos cinemas agora, durante o surto da variante Ômicron, mais leve que a anterior, mais bastante transmissiva e que vem trazendo muitos transtornos e preocupações. Então, infelizmente, ainda não é o melhor dos momentos para um filme que se propõe um programa mais leve para tempos pesados. 

Ao contrário de FAROESTE CABOCLO, que já se antecipava como uma história trágica, EDUARDO E MÔNICA já se antecipa como uma comédia romântica. A letra de Renato Russo conta brevemente a história, mas está longe de ser um roteiro de cinema. Estaria mais para um esqueleto de história se o refrão já não sugerisse uma ênfase na questão da diferença do casal e na ironia cantada nos versos “Quem um dia irá dizer que não existe razão / Nas coisas feitas pelo coração?”.

O roteiro, a cargo de Matheus Souza, posteriormente passou pela mão de outras quatro pessoas. O aspecto mais verborrágico do estilo de Souza é atenuado, e por mais que eu goste muito do trabalho dele – que funcionou perfeitamente em ANA E VITÓRIA (2018), para citar um filme também relacionado ao mundo da música –, o time de roteiristas e o diretor acertaram em trazer mais silêncios para a história. Aliás, a própria Mônica (Alice Braga) é uma mulher de poucas palavras, o que a princípio pode gerar um pouco de antipatia pela personagem, ou talvez um tom de superioridade da parte dela.

Em compensação, o Eduardo interpretado belamente por Gabriel Leone (presente em PIEDADE, de Cláudio Assis) parece mais um personagem saído da mente de Souza. Um pouco inseguro, o que o impulsiona a adentrar as “festas estranhas com gente esquisita” é a paixão imensa que ele passa a nutrir pela jovem mulher que ele conhece em uma dessas festas na Brasília dos anos 1980. Ele quer vê-la novamente; e ela topa. 

O que faz com que ela acabe aceitando o namoro é justamente um momento em que Eduardo paga mico cantando “Total Eclipse of the Heart”, de Bonnie Tyler, numa das festas-rock da turma da Mônica. A ajuda da plateia, cantando também a plenos pulmões, torna aquele momento arrepiante. E o “And I need you now tonight” ganha contornos lindos. Aliás, é curioso ver a mesma canção que abrilhanta o filme DESERTO PARTICULAR, de Aly Muritiba, presente em outra produção brasileira, em tão curto período.

EDUARDO E MÔNICA tem surpreendido a muitos pela sensibilidade com que trata tanto a relação entre os protagonistas, quanto as questões políticas e sociais. Por mais que a história se passe no período de redemocratização, vemos uma obra que reflete bastante as pautas atuais. Gosto de como o enredo enriquece as vidas de Mônica (as cenas com a mãe são emocionantes e delicadas) e de Eduardo (com sua relação de carinho com o avô, um militar reformado, e com o melhor amigo Inácio).

Senti falta de me apaixonar por Mônica, junto com Eduardo, devo dizer, mas não quer dizer que não tenha percebido a beleza do filme com um pouco de distanciamento. Aliás, uma das cenas mais bonitas mostra que é necessário um distanciamento para que se tenha a visão correta das coisas, que é a cena da apresentação artística de Mônica. Ou seja, além de tudo, estamos diante de uma obra que exalta imensamente a arte. A canção-título e as várias canções muitas vezes pouco óbvias da trilha sonora, o cinema mencionado por Mônica (a nouvelle vague, Wim Wenders), as novelas queridas por Eduardo (destaque para um pôster da Malu Mader na parede de seu quarto), a poesia de Manuel Bandeira, as artes plásticas e as instalações. 

Tanto que as duas declarações de amor mais marcantes são feitas através da arte. Em EDUARDO E MÔNICA, a arte e o amor andam juntos, de mãos dadas, como num soneto de Shakespeare. Renato Russo ficaria feliz.

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TURMA DA MÔNICA - LIÇÕES

Emocionante esta sequência do sucesso TURMA DA MÔNICA - LAÇOS (2019), que aproveita o ótimo elenco de crianças e a equipe técnica original, como o diretor Daniel Rezende e o fotógrafo (Azul Serra), que dão uma cor toda especial no visual lindamente colorido. Mas acho que o que me encantou mais em TURMA DA MÔNICA – LIÇÕES (2021) foi a questão da amizade dentro da perspectiva do amadurecimento dos personagens. A turma da Mônica aqui, sendo apresentados de carne e osso, crescem a olhos vistos e por isso o brincar, o ser criança, tem prazo de validade; algo muito diferente dos quadrinhos. Toda a turma, principalmente a Mônica, é questionada a enfrentar os desafios que se apresentam com a aproximação da adolescência. Além de tudo, a separação que eles enfrentam, após uma imposição dos adultos, é tocante. É tão bonito o modo como termina que é difícil não chorar ao final. No mais, há uma surpresinha após os créditos finais.

RIO DOCE

Diretor assistente de cineastas como Kleber Mendonça Filho, Cláudio Assis e Tavinho Teixeira, o recifense Fellipe Fernandes estreia em longa-metragem com um filme bem sensível e bonito. Nas trama, homem de 28 anos (o rapper Okado do Canal), pobre e passando por uma situação financeira bem complicada, descobre que seu pai biológico morreu e que seu futuro pode mudar para melhor. Gosto muito de como o filme apresenta o personagem pobre como alguém que possui problemas existenciais tão complexos quanto os personagens ricos de filmes de Walter Hugo Khouri ou de Michelangelo Antonioni. RIO DOCE (2021) também me tocou por motivos particulares, por uma forte identificação com um familiar, e isso acabou me aproximando mais da obra. Sem falar que é mais uma experiência maravilhosa de descoberta do nosso Brasil enorme. O filme só tem uma hora e meia, mas poderia ter mais uma hora que eu assistiria com prazer.

terça-feira, janeiro 18, 2022

CIÚME – O INFERNO DO AMOR POSSESSIVO (L’Enfer)



Mais uma revisão, desta vez de um filme visto em VHS - CIÚME – O INFERNO DO AMOR POSSESSIVO (1994) foi exibido nas salas de cinema de Fortaleza em 1995, mas comi mosca. Ainda assim, foi muito marcante tê-lo visto na telinha na época. Além do mais, como a janela de aspecto dele é 1,66, a perda de imagem não foi tão grande assim. Não lembro se foi o meu primeiro Claude Chabrol – muito possivelmente foi, mas isso não chega a ser algo de tanta relevância assim. O que mais me pegou foi o aspecto perturbador da obra, a exploração da mente alucinada de um homem enfurecidamente ciumento.

Para nós, brasileiros, é possível fazer comparação com o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Ambas as obras nos colocam dentro da cabeça de um indivíduo perturbado e doente, mas o Paul do filme de Chabrol é muito mais perturbador e muito mais perigoso. Vê-lo nos dias de hoje talvez seja ainda mais incômodo, pois as máscaras de muitos abusadores caíram nos últimos anos, quando várias mulheres agredidas passaram a denunciar o perigo de seus maridos. Inclusive, eu diria que exibir este filme do Chabrol para uma mulher que está prestes a casar pode fazê-la pensar mais de duas vezes antes de se decidir.

CIÚME – O INFERNO DO AMOR POSSESSIVO é um filme feito a partir de um projeto inacabado do cineasta Henri Georges-Clouzet chamado "L’Enfer", que contava com Romy Schneider e Serge Reggiani vivendo os papeis que iriam, no filme dos anos 1990, para Emmanuelle Béart e François Cluzet. Reggiani adoeceu no terceiro dia de filmagens e enquanto o cineasta estava com o substituto Jean-Louis Trintignant, sofreu um ataque cardíaco. E apesar de o cineasta não ter morrido naquela ocasião, o filme nunca foi concluído.

Após a morte de Clouzet, sua viúva entregou o roteiro para o produtor Marin Karmitz, que por sua vez endereçou a Chabrol. E foi uma escolha muito acertada. Chabrol sabe usar a linguagem cinematográfica aliada à música, de modo a construir um incômodo crescente, até chegar aquele último ato fantástico.

No começo, fiquei muito irritado com o personagem de Cluzet, e também um pouco irritado com a passividade da personagem de Béart, mas isso faz parte do processo de envolvimento com o filme. Eu ficava me perguntando: "meu Deus, por que essa mulher não vai embora, não cai fora dessa roubada, que é ficar com esse maluco?" Nem se tratava de estar ou não traindo, ter ou não um caso com outro homem.

Talvez, nos anos 1960, a uma mulher traidora fosse mais vilanizada, a ponto de justificar muitos julgamentos em que homens saíram livres de assassinatos, mas vivemos em outros tempos. Pelo menos, quero acreditar. Por isso, não sei se caso o filme fosse feito nos dias de hoje a personagem feminina seria mostrada da mesma maneira ou um pouco menos submissa.

É interessante notar que o cartaz original do filme mostra um homem e uma mulher felizes e recém-casados com o título “Inferno” (“L’enfer”) acima, contrastando – ou enfatizando, para aqueles que acreditam que o casamento é mesmo um inferno na Terra. No cartaz da versão restaurada em 4K, por outro lado, temos a imagem pintada de uma mulher de costas, com sua lingerie fechada com um cadeado. Isso já pode dizer mais do que se pensa do filme hoje, tirando-se um pouco o aspecto dúbio da esposa, de uma imagem de culpa da parte dela.

Na trama, Paul (Cluzet) é um homem rico, dono de um hotel à beira de um lago em uma cidade do interior, que se casa com uma bela e jovem mulher, Nelly (Béart). O casamento começa muito feliz, mas essa felicidade é logo substituída pelo ciúme crescente de Paul, que vê a esposa como uma traidora compulsiva. Agora, é importante perceber que Nelly não é exatamente uma personagem real, mas uma projeção da fantasia de Paul.

Eu gosto do filme em seus dois primeiros terços, mas acho absolutamente genial seu terço final, quando CIÚME ganha uma atmosfera próxima a de um filme de horror ou a um suspense hitchcockiano (inclusive pela trilha sonora). As últimas cenas são impressionantes no quanto exploram a loucura e as alucinações de Paul. O que são as imagens de Béart amarradas na cama, pelo amor de Deus? E como é brilhante a interpretação de Cluzet. É possível que seja seu melhor papel. Pelo menos, dos que pude ver até hoje.

Agradecimentos a Paula pela companhia durante a sessão.

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@ARTHUR RAMBO - ÓDIO NAS REDES (Arthur Rambo)

O tema me interessa e o filme oferece pano para manga para discussão. Não há dúvida quanto a isso. O problema de @ARTHUR RAMBO - ÓDIO NAS REDES (2021) é o quão raso Laurent Cantet trata a situação, que causa mais irritação (em relação ao protagonista) do que algum tipo de solidariedade de nossa parte. Afinal, passar por uma situação de cancelamento perturba o espírito e passa a impressão de que o mundo está se despedaçando. E o roteiro deste filme até que se esforça um pouco para passar essa impressão de vermos alguém ver todo mundo lhe dando as costas. Talvez haja uma única cena que passe um pouco a complexidade da situação do sujeito, que ganha prestígio com o lançamento de um livro, mas na mesma noite vê tudo desabar por causa de tuítes ofensivos feitos sob um pseudônimo. Trata-se da conversa (boa) com o irmão mais novo. Mas já é meio tarde.

CASA GUCCI (House of Gucci)

Bem que eu queria ter gostado mais de CASA GUCCI (2021). Não sei ainda quais foram as motivações para Ridley Scott contar essa história, mas, ao que parece, ele tem mostrado interesse por histórias reais, como aconteceu com TODO O DINHEIRO DO MUNDO (2017) e o mais recente O ÚLTIMO DUELO (2021). E há também o interesse por situações ocorrendo nos bastidores de um império. No caso de CASA GUCCI, esse império é mostrado de maneira, a princípio, modesta, sendo que o personagem de Al Pacino (Aldo Gucci) é que é o homem que alavanca os negócios da família para o ramo de roupas, acessórios e moda. O que vemos no início é uma família tradicionalmente rica, mas sem muito foco para os negócios. E é curioso ver que a pessoa com mais sangue nos olhos para fazer a coisa acontecer seja alguém de fora, a personagem de Lady Gaga, que se casa com um dos herdeiros, Maurizio Gucci (Adam Driver), para conseguir galgar um caminho mais ambicioso. O problema é que ela não leva as coisas de maneira inteligente, sendo dominada pelo ciúme e rancor, para cometer um ato terrível. Ainda assim, é curioso como se trata do segundo filme seguido de Scott que lida com uma personagem feminina forte dentro de um universo masculino tradicionalmente machista. Demorou para eu me acostumar com o inglês com sotaque italiano adotado. Não sei o quanto isso é necessário nos dias de hoje.

segunda-feira, janeiro 17, 2022

DESERTO PARTICULAR



Um dos sentimentos que mais têm me afligido neste início de 2022 é o cansaço. Um cansaço mental, espiritual. Um cansaço da pandemia e de ver um ensaio aparente de tudo começando de novo. Um cansaço de um 2021 terrível, o pior dos anos, que parece ainda continuar – até por que, dizem que o ano começa de verdade perto de 20 de março, do ponto de vista astrológico e das estações. Então esse cansaço tem atrapalhado um pouco minhas tentativas de escrever, pois também venho tentando esquecer um pouco os problemas que me circundam, que estão muito próximos; problemas que minha família vem sofrendo e eu não tenho conseguido ajudar.

No que se refere aos textos para o blog, acho sempre frustrante quando tento resgatar de minha memória e “pôr no papel” meus sentimentos com relação a filmes de que gostei muito. Filmes que me trouxeram um impacto emocional tão bonito, que cheguei a ficar triste quando saí daquele mundo, ao apagar das luzes. Foi o que aconteceu com DESERTO PARTICULAR (2021), de Aly Muritiba, visto por mim no início de dezembro do ano passado e presente em meu top 20 de 2021. A experiência do filme em tela grande, até por também envolver música (“Total Eclipse of the Heart”, principalmente, mas também Odair José), traz algo de mágico.

DESERTO PARTICULAR é aquele tipo de filme que quanto menos você souber antes de vê-lo melhor. Não que haja tanta surpresa assim do ponto de vista da trama para o espectador, no que se refere a determinado personagem. O filme acompanha o drama de um policial (Antonio Saboia) que está passando por uma investigação por agressão que viralizou nas redes. Muritiba toma o cuidado para não nos apresentar a esse lado mais agressivo do personagem, preferindo mostrar o seu aspecto mais humano, seja cuidando do pai doente, seja sofrendo ao não receber resposta de uma mulher com quem ele anda conversando pelo WhatsApp há alguns meses.

E quando pensamos que o filme é sobre a jornada deste homem ferido, ganhamos muito mais. É lindo quando percebemos a mudança de pontos de vista feita com uma segurança absurda na direção e na montagem – houve um amadurecimento do cineasta desde o seu (também ótimo) PARA MINHA AMADA MORTA (2015). Grande parte da narrativa traz uma aura de mistério e de magia que encanta, até pelo fato de o protagonista estar embriagado de desejo e carência. Mas aí temos a outra história, a história do outro personagem, que é ainda mais fascinante. Também chama a atenção a textura da fotografia, a cargo de Luis Armando Arteaga (do filme paraguaio AS HERDEIRAS).

Há quem diga que DESERTO PARTICULAR é uma representação de um Brasil despedaçado (já vivemos há mais de dez anos divididos, daí também o cansaço) que, enfim, se reencontra e que vislumbra uma reconciliação através do amor. O que é lindo, por mais que a solução do enredo possa parecer por demais fantasiosa para muitos. Afinal, vivemos no país que mais assassina homossexuais e transexuais no mundo. Então, não deixa de ser uma postura corajosa da parte de Muritiba em optar por esse final.

De todo modo, o final, apesar de muito bonito, talvez nem seja o mais importante. Como em todo belo road movie, o que mais importa em DESERTO PARTICULAR é a jornada. E Muritiba nos faz feliz (ou triste, em alguns momentos) durante toda a travessia Curitiba-Sobradinho, durante a travessia envolvendo paixão-desespero-frustração-confusão-aceitação-compreensão do primeiro protagonista.

+ DOIS FILMES

TRANSVERSAIS

O que mais me emocionou em TRANSVERSAIS (2021), de Émerson Maranhão, foram as questões envolvendo as mães e os pais das pessoas trans protagonistas. Se bem que há uma mãe no filme que ganha o protagonismo de maneira muito bonita, mãe de uma garota (Mara) que sofreu rejeição da própria escola. Acho que foi a partir do relato dela que o filme começou a me comover mais, eu que tenho por hábito me emocionar com situações envolvendo mães. Depois há o relato também lindo de Caio José, do dia em que ele teve "a conversa" com o pai. Um dos grandes méritos do filme é também ampliar a apresentação dessas pessoas para o campo profissional, além de apresentar depoimentos de familiares, de modo que tenhamos uma visão um pouco mais abrangente de suas vidas e do que elas vivenciam. Achei, por exemplo, impressionante a coragem da Érika de ter se tornado professora e diretora de escola. Fiquei pensando também no quanto é importante a educação para que todos possam chegar aos melhores caminhos possíveis. Sei que isso vale para todas as pessoas, inclusive cis, mas algumas infelizmente precisam provar mais para a sociedade.

DEUS TEM AIDS

O longa-metragem de estreia de Fábio Leal (REFORMA, 2018) é em parceria com Gustavo Vinagre, que já tem uma carreira solidificada e um estilo bastante seguro na condução tanto de documentários quanto de filmes híbridos com ficção. Este DEUS TEM AIDS (2021) é interessante em sua proposta, que é tratar da questão da invisibilidade das pessoas soropositivas e o quanto ainda existe um medo de contato próximo com pessoas que convivem com o vírus, além de haver também uma falta de informação maior a respeito dos avanços nos tratamentos hoje em dia. Gostei de pelo menos dois dos entrevistados: o pernambucano que trabalha com dança e o rapaz que convida pessoas para conversar, no meio da rua, sobre AIDS. Há uma cena bem incômoda, mas creio que a intenção tenha sido mesmo essa. E por isso mesmo é válida, assim como é válido conferir este filme.

domingo, janeiro 16, 2022

BENEDETTA



Paul Verhoeven sempre foi um cineasta provocador. Quem está acostumado com seu cinema se pega, muitas vezes, sorrindo de muitas cenas que podem provocar sentimentos dúbios na plateia. Não à toa, TROPAS ESTELARES (1997) foi, por muitos, considerado um filme de propaganda fascista, quando o que faltava na percepção de muitos era entender o senso de humor do realizador. Logo, quando nosso holandês maluco favorito anunciou que iria preparar um filme sobre freiras lésbicas todo mundo já esperou dinamite pura.

Até então, o diretor não havia abordado temática religiosa em sua obra de maneira tão contundente, embora não por falta de vontade - e embora já se pudesse ver algo espiritualmente forte em O QUARTO HOMEM (1983). Alguém lembra quando ele anunciou que faria um filme sobre Jesus chamado “Jesus of Nazareth”? Notícias saíram que uma produtora havia contratado Roger Avary para fazer o roteiro. Enfim, por algum motivo o projeto não vingou. Mas eis que, depois de anos de espera, chega aos cinemas BENEDETTA (2021), filme rodado em 2018, mas que só teve sua primeira exibição pública no Festival de Cannes.

Em tempos tão perigosamente corretos não consigo imaginar outro cineasta que tivesse a audácia de fazer uma obra que juntasse sexo, violência e religião num só pacote. Nos anos 1970-80, o subgênero nunsploitation, obras apelativas envolvendo freiras, começaram a pipocar por vários países, como Itália, México, Inglaterra, Japão, Alemanha e Polônia, principalmente após o sucesso do impactante OS DEMÔNIOS, de Ken Russell. Ressuscitar o subgênero em grande estilo hoje em dia nem chegou a causar tanta polêmica assim no meio da Igreja Católica. Talvez pelo fato de o filme situar a trama no século XVII; talvez porque os tempos são outros e a igreja não compre mais brigas com obras de ficção, como nos tempos de JE VOU SALUE, MARIE, de Godard, ou A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO, de Scorsese.

Considero BENEDETTA um filme-irmão de CONQUISTA SANGRENTA (1985), primeiro filme em língua inglesa de Verhoeven, que se passa na Europa medieval, traz muito sexo e violência, muita superstição e também mostra os efeitos da peste bubônica, a pandemia mais devastadora da história da humanidade, que se estendeu por alguns séculos. No caso de BENEDETTA, esse elemento causa um pouco de identificação com o momento atual.

O novo Verhoeven conta a história da freira Benedetta, que é entregue ainda criança a um convento da pequena cidade italiana de Pesce. Logo no começo, o filme faz-nos questionar os dons da jovem, quando ela consegue (?) fazer um pássaro defecar no olho de um ladrão que tentava roubar sua família. Os dons da freira também se expandem para visões de Jesus. Mas são visões mais parecidas com os filmes do Monty Python do que com épicos religiosos da velha Hollywood. Em determinada visão, Jesus a salva de ladrões, decapitando as cabeças dos homens com selvageria. Em outra, porém, o filme brinca ainda mais com o sentido dúbio, que é quando Benedetta surge com as chagas de Jesus. E o filme abraça a dúvida como elemento essencial da riqueza da personagem.

Afinal, Benedetta, brilhantemente interpretada por Virginie Efira, ao mesmo tempo que se diz esposa de Cristo e salvadora daquele convento e daquela vila, também abraça as tentações e os prazeres da carne apresentados pela jovem Bartolomea (Daphné Patakia). E quando o filme encontra o sexo, é quando o sublime abre espaço com força. A primeira cena de sexo das duas, culminando no primeiro orgasmo de Benedetta, parece nos conectar com o divino, de tão bela que é. Tanto que a própria personagem não se priva mais dos prazeres da carne, não os apresentam como inimigos do espírito. Além do mais, a personagem também traz um certo grau de maquiavelismo que a torna quase uma vilã de filmes de horror, daqueles com elementos de satanismo.

Principalmente quando ela começa a ganhar a inimizade da madre superiora (Charlotte Rampling). Aliás, com as brigas entre Benedetta e as demais freiras, incluindo também a filha da madre, Christina (Louise Chevillotte, de O SAL DAS LÁGRIMAS), o filme ganha contornos de SHOWGIRLS (1995), aquele filme meio maldito de Verhoeven sobre brigas entre strippers. É como se o diretor transpusesse as brigas para um tempo e um lugar diferentes.

E a beleza de BENEDETTA está justamente nessas contradições, nesses contrastes que a personagem e o filme nos oferecem. Cineasta de oposições, Paul Verhoven nos presenteia com uma heroína que usa sua inteligência para perpetrar suas ações, como uma Catherine Trammel (INSTINTO SELVAGEM, 1992), uma Rachel Stein (A ESPIÃ, 2006) ou uma Michèle (ELLE, 2016). E nós, espectadores de sorte, estamos diante de um filme que nasceu como um misto de milagre, ousadia e obstinação. Benedetta é Verhoeven.

+ DOIS FILMES

A CASA SOMBRIA (The Night House)

Estamos em um momento particularmente positivo para o cinema de horror. Depois da aposentadoria e morte de alguns mestres que abrilhantaram o gênero nas décadas de 1970-1990, eis que novos especialistas têm feito a nossa alegria, e em geral com muita elegância. É o caso de David Bruckner, ainda novato, com apenas O RITUAL (2017) como longa-metragem solo no currículo, mas com a promessa de ser o responsável pelo reboot de HELLRAISER, previsto para este ano. A CASA SOMBRIA (2021) ainda tem a vantagem de trazer uma ótima atriz como Rebecca Hall no papel de uma professora cujo marido cometeu suicídio; e, por isso, ela vive um grande e doloroso luto, sozinha, em sua casa à beira do lago. Aos poucos, ela começa a ser atormentada em sonhos e passa a descobrir coisas sobre o marido. Há uma cena que me deu um susto tão grande que quase morri. Mas fico feliz de estar aqui vivo para contar. E para enaltecer também este filme que brinca com situações de sonhos, de traumas e de medos de maneira muito criativa e muito tensa. Se MALIGNO é um filme que se assiste com um sorriso no rosto, não diria que o seríssimo A CASA SOMBRIA siga essa linha. Aqui o interesse é encarar o vazio, o demônio ou seja lá o que atormenta o espírito. Terror de gente grande.

NOITE DE PÂNICO (Alone in the Dark)

Eis um filme que se diferencia um bocado dos slashers mais tradicionais. A começar pelo elenco de ótimos atores maduros formado por Jack Palance, Donald Pleasance e Martin Landau. Uma trinca dessas não se encontra tão fácil e eles parecem estar se divertindo bastante com este filme sobre um quarteto de psicopatas que foge de um hospital psiquiátrico durante o blecaute em uma cidade, para aterrorizar, principalmente, a família do médico que acabou de assumir o caso deles no hospital. A meia hora final é ótima, com um clima de SOB O DOMÍNIO DO MEDO, de Sam Peckinpah, e algumas surpresas. Jack Sholder fez NOITE DE PÂNICO (1982) antes de assumir dois filmes mais caros, A HORA DO PESADELO 2 – A VINGANÇA DE FREDDY (1985) e o cultuado O ESCONDIDO (1987). Esse segundo ainda tenho muita vontade de rever. Filme presente no box Slashers X.

sábado, janeiro 15, 2022

PÂNICO (Scream)



Muito bom sair da sessão do novo PÂNICO (2022) com um sorriso de orelha a orelha. Além de ser, muito provavelmente, o mais sangrento dos filmes da franquia, há um amor pelo gênero slasher e um amor ainda maior pelo primeiro PÂNICO (1996), de Wes Craven, que chega a arrepiar. Há uma cena que explicita esse sentimento, com uma das novas atrizes do elenco de jovens vítimas/heróis/possíveis assassinos. Trata-se daquele momento em que Jasmin Savoy Brown, que faz a primeira personagem LGBTQI+ da série, além de contar as regras da chamada requel (uma mistura de reboot com sequência que está muito em voga atualmente), também fala, apaixonadamente, o quanto o filme de 1996 representa para nossas vidas.

Esses novos personagens são tão bons – eu arriscaria dizer que são melhores do que os do filme original, em termos de construção e de maior aprofundamento – que durante a primeira parte do filme sequer sentimos falta do trio de protagonistas dos filmes anteriores. Na verdade, embora eles sejam extremamente importantes para a trama e para passar o bastão, ou melhor passar a tocha (e essa brincadeira no filme é impagável), Dewey (David Arquette), Gale (Courteney Cox) e Sidney (Neve Campbell) são coadjuvantes neste novo trabalho.

A “nova Sidney”, que ganha o nome sugestivo de Sam Carpenter, é a uma atriz mexicana, Melissa Barrera, e ela não é apenas uma moça que está sendo caçada pelo novo ou novos assassinos vestidos de Ghostface. Ela carrega consigo o fantasma do pai, ninguém menos que um dos primeiros assassinos, Billy Loomis. Não deixa de ser muito ousado da parte dos criadores construírem uma heroína que toma medicação para evitar a visão do falecido pai conversando com ela. Inclusive, dada a consciência de que qualquer pessoa ali é suspeita de ser o Ghostface, ela também é uma possível assassina. E com “motivos” para cometer os atos.

Acredito que nenhum outro filme da franquia teve isso em tão alta conta: o fato de explicitar que o assassino está entre o grupo de amigos, a ponto de isso ser a frase presente no cartaz. A essa altura, depois de quatro filmes, isso pode ser lógico, mas os diretores Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett tornam o whodunit ainda mais saboroso.

Gosto muito de como este novo filme talvez seja ainda mais autoconsciente do que os dirigidos por Craven, e carrega consigo uma gama ainda maior de filmes de horror, inclusive aqueles citados pela primeira vítima do assassino, o que ela chama de “horror elevado”, termo horroroso por si só, mas que chegou a ser utilizado para descrever filmes que também foram chamados de “pós-horror” até uns anos atrás. E há também as autocitações dos filmes da série “Stab”, que representam os filmes da série PÂNICO na nossa realidade. 

Também é importante destacar que, ao mesmo tempo que o novo filme é bem violento, não apenas pelo gore (é como se a catarse dos anos 1990 estivesse de volta), ele é também muito engraçado. É muito bom ver o humor surgindo em momentos de nervosismo. Lembro que sempre que revejo o primeiro filme, fico bastante impressionado com o aspecto doentio dos dois assassinos se esfaqueando entre si em um misto de comédia de gosto duvidoso e horror. Como a essa altura essa imagem se fixou em nossa memória coletiva, esse tipo de situação envolvendo comédia, violência gráfica e diálogos espirituosos e metalinguísticos já até pode chegar a outros níveis. Na sala em que assisti ao filme, uma moça gargalhava de prazer na famosa (e tradicional) cena da revelação e explicação (tipo Scooby-Doo).

Outra coisa que muito me agradou neste quinto filme foi o quanto ele se mostra saboroso em simplesmente todos os momentos. No famoso prólogo, com a ligação para a jovem Tara (Jenna Ortega); no retorno do elenco de veteranos e do quanto eles ainda são queridos e vistos como quase lendas; no quanto os atores se sentiram à vontade no papel (inclusive, conta-se que David Arquette chorou algumas vezes no set ao contracenar com a ex-esposa Courteney Cox); nas cenas que homenageiam clássicos (inclusive há uma homenagem explícita a PSICOSE, do Hitchcock); no quanto somos divertidamente enganados o tempo todo; no quanto a cena da festa é primorosamente orquestrada. Aliás, lembrando da festa, volto a falar do elenco: que fantástica e engraçada que é a Mikey Madison, atriz que anteriormente havia aparecido em papel pequeno em ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD, do Tarantino. 

Que venham novas continuações deste filme. Ghostface ressuscitou de vez para o novo milênio. 

+ DOIS FILMES

A BABÁ (The Sitter)

Este curta está presente nos extras do box Slashers X e trata-se do embrião do que seria o pequeno clássico MENSAGEIRO DA MORTE (1979), além de ser uma referência direta para a franquia PÂNICO. Inclusive a voz do sujeito do outro lado da linha é muito parecida com a voz ameaçadora que aterroriza as vítimas nos filmes de Wes Craven. Em A BABÁ (1977), uma jovem estudante universitária se encarrega de olhar a casa de um casal rico, enquanto eles saem para jantar. Ela recebe constantes ligações de um estranho; a voz pergunta: "você já checou as crianças?". Em pouco mais de 20 minutos, o diretor Fred Walton demonstra um domínio muito bom do suspense. Nos extras, do DVD há também comentários do próprio diretor sobre seu curta e seu longa, e sobre o fato de ele nunca ter visto a reflmagem, o ótimo e subestimado QUANDO UM ESTRANHO CHAMA (2006), de Simon West.

CASAMENTO SANGRENTO (Ready or Not)

Este filme teve um pequeno hype uns dois anos atrás (não chegou a ser lançado nos cinemas brasileiros, creio eu), mas acabei não vendo por um motivo ou outro. O motivo maior de eu ter visto CASAMENTO SANGRENTO (2019) agora foi o fato de a direção ser dos sujeitos escalados para o novo PÂNICO (2022). E agora já sei que a escolha da dupla de diretores Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett foi acertada, já que não faltam sangue e muito humor negro nesta história de uma jovem que se casa com um rapaz de família rica e, na noite do casamento, precisa se submeter a um jogo tradicional daquela família bizarra. O que ela não sabia era que o jogo seria tão perigoso. Lembrei-me de alguns filmes de mulheres enfrentando valentemente outras pessoas e/ou psicopatas, como no ótimo VOCÊ É O PRÓXIMO, de Adam Wingard, ou mesmo no remake de 2003 de O MASSACRE DA SERRA ELÉTRICA, sem falar no subgênero rape and revenge. Mas aí já seria outra história.

terça-feira, janeiro 11, 2022

12 CURTAS BRASILEIROS



Muito bom poder ter a chance de ver alguns dos curtas-metragens mais interessantes exibidos nos festivais no ano passado. Eis a primeira leva de 12, sendo que alguns deles foram vistos na última edição do Cine Ceará, entre novembro e dezembro.

A BELEZA DE ROSE

Há filmes que necessitam de um tempo para maturação e compreensão. Na verdade, a maturação e compreensão vem de nossa parte. A BELEZA DE ROSE (2020), de Natal Portela, tem uma força que eu não tinha percebido da primeira vez que o vi (acho que em 2020). Trata de situações ao mesmo tempo sutis (para quem não sofre) e violentas (para quem sofre) da cultura racista brasileira. Apresenta uma rotina de procurar emprego de uma jovem moça negra do interior do Ceará. Achei uma pedrada (literalmente) a cena da Xuxa. O embranquecimento ou a naturalidade da presença do branco em nossa sociedade é tão poderoso que é preciso uma maior percepção da violência que às vezes deixamos passar.

A DESTRUIÇÃO DO PLANETA LIVE

Acho muito bacana o modo como Marcus Curvelo usa seus filmes como uma forma de exorcizar seus demônios, gritar de desespero por causa de suas desgraças pessoais e das desgraças de nosso país. Em A DESTRUIÇÃO DO PLANETA LIVE (2021), ele segue essa linha, mas misturando o desespero com uma imaginação muito próxima da esperança. Gosto muito do momento que o amigo dele começa a dizer como será o Brasil do futuro, o Brasil que terá a eleição de 2018 cancelada, Lula retornando, justiça social, reparação histórica etc. É bonito de ouvir, mas ao mesmo tempo, é também possível perceber o cansaço psicológico provocado por esses anos causando ceticismo.

CÉU DE AGOSTO

Daqueles curtas que parecem uma preparação para um longa (e eu torço para que um dia chegue a ser), mas que não perde a sua força de síntese no que pretende mostrar. CÉU DE AGOSTO (2021) apresenta uma enfermeira de São Paulo que está grávida e atravessando problemas que não sabe muito bem o que são. Enquanto isso, a floresta amazônica está queimando, síndromes respiratórias aumentam nos hospitais, ela passa a frequentar uma igreja pentecostal e o filme passa a se encaminhar para um clima apocalíptico. Exibido em Cannes-2021.

EDNA

Filmado com a câmera de um celular, EDNA (2018), é narrado pela própria diretora Edna Toledo, que se questiona, a partir de imagens de inúmeros exames, receitas médicas, caixas de remédio, fotos pessoais etc. o motivo real de sua dor. É um filme que causa certo mal estar, principalmente para quem também está sentindo alguma dor no corpo ou já tem um histórico médico também extenso. Quanto ao formato, achei muito inventivo, simples e impactante. Ainda estou tentando processar esse impacto, inclusive.

UMA PACIÊNCIA SELVAGEM ME TROUXE ATÉ AQUI

Muito bom ver um filme sobre libertação e enfrentamento em uma sociedade repressora como a nossa. No caso, UMA PACIÊNCIA SELVAGEM ME TROUXE ATÉ AQUI (2021), de Érica Sarmet traz pelo menos duas artistas famosas em papéis muito bonitos. Zélia Duncan e Bruna Linzmeyer, conhecidas ativistas dos direitos LGBT, comparecem nesta história sobre uma mulher lésbica mais velha que conhece um grupo de jovens em uma festa e parte para o apartamento delas para conversas sobre o assunto, com direito a belas cenas sensuais protagonizadas pelo grupo, o que só aumenta ainda o grau de atrevimento do filme. Muito boa a versão de "Calada Noite Preta", por Zélia Duncan.

CHÃO DE FÁBRICA

Poxa, que filme lindo este CHÃO DE FÁBRICA (2021, foto), de Nina Kopko. Desde a escolha da fotografia com um visual que remete ao fim dos anos 1970, até as excelentes interpretações do quarteto de mulheres, passando pelas importantes menções a um certo operário e ao tom agridoce do futuro de cada uma delas, tudo me parece acertado. A história se passa dentro de um banheiro, o único lugar possível em que as mulheres podiam almoçar durante o horário de intervalo numa fábrica no ABC Paulista. Há vários momentos de arrepiar e é muito tocante o modo como o filme trata com carinho cada uma delas, por mais que a duração seja de apenas 24 minutos.

GARGAÚ

Muito interessante o formato de GARGAÚ (2021), de Bruno Ribeiro, aparentemente feito de maneira improvisada e espontânea. Na trama, rapaz que vai para Gargaú recebe carona de grupo de jovens que seguem a caminho do litoral do Rio de Janeiro. Antes de chegarem ao destino final, passam na casa da avó do rapaz. O filme tem um quê de saudosista (a Jovem Guarda tocando no carro, as fotos da avó, as imagens no celular), ora parece uma declaração de amor do cineasta a sua avó. Há uma senso de humor muito interessante na cena da refilmagem, sem perder a beleza do momento e das imagens.

O NASCIMENTO DE HELENA

O filme começa com uma frase bem impactante: "Meu grande sonho, o sonho da minha vida, era destruir uma família.". Logo dá para ver que se trata de um filme bem atrevido em muitos aspectos. Há a narração, que tem sido um recurso muito bom e bastante usado em alguns curtas recentes, um tipo de narração mais confessional, que me agrada; e há aqui também o diferencial visual, que é um tipo de animação experimental e também baseada em vídeos (ou fotos). Mas o que mais conta mesmo em O NASCIMENTO DE HELENA (2021), de Rodrigo Almeida, é a história do narrador, sua relação com um homem casado hétero, apresentada de maneira bem crua e sem censura.

O QUE OS MACHOS QUEREM

Nem todo filme precisa ser agradável. Alguns precisam ser mesmo deliberadamente desagradáveis. É o caso de O QUE OS MACHOS QUEREM, de Ana Diniz, baseado em conto homônimo de Ruth Ducaso. No filme, vemos uma mulher preparando um cozido do que seria um homem. O que mais me incomodou foi ver a carne crua, pedaços crus (fígado, vísceras), e, nesse sentido, o filme mirou na questão do feminicídio e acertou no vegetarianismo. Assim, acabei não conseguindo me concentrar na narração, cheia de veneno, da mulher. Produzido com quase toda a equipe composta por mulheres, o filme é um grito de revolta aos mais de 1.300 casos de feminicídio registrados no Brasil em 2020.

O RESTO

Classificado como documentário híbrido em sua descrição, O RESTO (2021), de Pedro Gonçalves Ribeiro, é desses filmes que borram as fronteiras entre documentário e ficção e, dentro do que ele apresenta, é ao mesmo tempo divertido e comovente. O humor trazido a partir da situação da senhora que é dada como oficialmente morta se mistura com a voice over do narrador (o diretor, provavelmente) que nos faz lembrar que o tema tratado é, sim, bastante sério, envolvendo invisibilidade, morte e a maneira como alguém passa a ver o mundo. Trata-se também de um olhar triste do diretor para sua cidade, Belo Horizonte.

SIDERAL

A julgar pelo que pude entrar em contato com o cinema de Carlos Segundo, principalmente após ter me apaixonado por DE VEZ EM QUANDO EU ARDO (2020), fico imaginando que uma revisão de SIDERAL (2021) deve aumentar e muito a apreciação do filme, já que todo o cuidado visual e rigoroso salta aos olhos logo nas primeiras imagens. Além do mais, o fato de ter sido filmado em janela "clássica" 1,33:1 e em preto e branco traz essa sensação de que, visto mais de perto, na telona, se torna ainda mais belo, já que há uma questão envolvendo um foguete, embora o formato também privilegie os close-ups (como bem sabem Brisseau ou Rohmer). A história se passa em um Brasil alternativo que tem uma missão espacial saindo do Rio Grande do Norte e há uma família que é, de certa forma, afetada por esse lançamento. Crítica política e social e senso de humor ajudam a chamar ainda mais a atenção para este filme.

O AMIGO DO MEU TIO

Não basta possuir imagens raras da infância, tem que saber aproveitá-las de modo a transformá-las em objeto de apreciação artística. Na trama deste curta, as imagens gravadas pelo pai de Vicente, o narrador, servem para contar a história da primeira pessoa por quem ele se apaixonou. É o caso de O AMIGO DO MEU TIO (2021), de Renato Turnes, em que a força das imagens é ainda mais poderosa que a força das palavras ditas, embora essas sejam bem-vindas e, na maior parte das vezes, bastante necessária. É um filme que fala não apenas às pessoas que se sentem diferentes por conta da sexualidade, mas por pessoas que se sentem deslocadas de alguma maneira. É um filme fácil de ser gostado e de capturar o espectador.

HAWALARI

O nome de Gustavo Vinagre nos créditos iniciais já indica que HAWALARI (2021), de Cássio Domingos, que deveria ter sido exibido na edição cancelada de Cannes-2020, possui elementos de cultura LGBT e um bocado de provocação. Na trama que se passa no final do século XIX, um índio de uma tribo da região de Goiás encontra um homem branco que está disposto e ansioso para estudar sua cultura. O filme brinca com a sexualidade e talvez com um pouco de fetichismo, já que o índio está nu e com pintura nos mamilos, além de ser também objeto de desejo do homem branco. Lá pelo final me desconectei um pouco e acabou prejudicando a experiência, mas é um filme estranho e interessante.

segunda-feira, janeiro 10, 2022

RODA DO DESTINO (Gûzen to Sôzô)



Ryûsuke Hamaguchi é o cineasta que mais chamou a atenção entre críticos e cinéfilos nesse ano de 2021. Seus premiados filmes RODA DO DESTINO (2021), Urso de Prata em Berlim, e DRIVE MY CAR (2021), melhor roteiro em Cannes, apareceram em diversas listas de melhores do ano em veículos prestigiados da imprensa e da crítica de cinema. E, curiosamente, DRIVE MY CAR, presente na shortlist do Oscar de filme internacional e vencedor do Globo de Ouro de filme estrangeiro, até agora não tem (que eu saiba) distribuidor no Brasil.

Acredita-se que o problema tenha a ver com sua duração (três horas), mas ao que parece o preço do filme também tem sido um empecilho. E é interessante notar que Hamaguchi não tem muito interesse em lidar com essa coisa mais comercial da duração. Depois de três documentários em 2013, ele voltou para a ficção com um filme de cinco horas chamado HAPPY HOUR (2015), bem pouco comercial. Além do mais, ele tem um interesse por histórias pequenas também: depois de HAPPY HOUR, seu filme seguinte foi um curta: HEAVEN IS STILL FAR AWAY (2016). E curtas também não são tão vendáveis. 

Ou seja, parece quase um exercício de desinteresse pela distribuição comercial de seus filmes, ou uma vontade de ser um cineasta marginal. De todo modo, RODA DO DESTINO não deixa de ser uma tentativa de apresentar seus curtas em um formato possível para o mercado. Mas o sucesso poderia não ocorrer se ele tivesse insistido em fazer uma obra de sete histórias e não de apenas três, aumentando, assim, a duração. De todo modo, isso é um bom sinal: sinal de que em breve poderemos ver mais um filme em segmentos como este.

Acho que o que mais me pegou em RODA DO DESTINO foi a sempre difícil pergunta que até hoje me aflige e que eu já levei para o divã tantas vezes: “e se você tivesse feito uma escolha diferente?” O filme traz três diferentes histórias em que esse tipo de questionamento surge de uma forma ou de outra, conectando fracasso amoroso, solidão e arrependimento.

Na primeira história, “Magia (ou Algo Menos Seguro)”, acompanhamos a conversa de duas amigas sobre o encontro mágico que uma delas teve com um rapaz. A moça parecia estar apaixonada e as duas trocam confissões, vez ou outra, sobre transar ou não no primeiro encontro. Depois descobrimos que o tal rapaz é ex-namorado da mais jovem e entra em cena um sentimento também confuso ao do arrependimento: a dúvida sobre o amor. Teria ela ido procurar o rapaz novamente simplesmente por que ela sentiu ciúmes e não queria perdê-lo? Não que isso seja o ponto central da história, mas me veio à mente. Há algo de Hong Sang-soo no momento em que a garota precisa escolher entre estragar o namoro da amiga ou deixar o rapaz escolher quem ele quiser com calma. O próprio Hamaguchi já havia demonstrado o gosto por situações duplas no ótimo ASAKO I & II (2018).

A segunda história, “Porta Bem Aberta”, é a minha favorita das três. É a mais cortante. Na trama, jovem pede a sua amante que vingue o seu ex-professor que o humilhou no passado. O professor agora é um homem famoso pelo sucesso de um romance recém-publicado. A mulher chega até o gabinete do professor, que prefere que sua porta esteja sempre aberta, por temor de ser mal compreendido em uma situação complicada com estudantes, e procura seduzi-lo. O momento da leitura do trecho erótico do romance é o melhor do filme, certamente, e um dos melhores do ano. Este segmento é o mais longo do filme, mas nem parece, já que toda a tensão da cena da leitura é bem empolgante, assim como a conversa dos dois após a leitura. Destaque para a excelente interpretação de Mori Katsuki, uma atriz de poucos filmes.

A terceira história, “Mais uma Vez”, talvez seja a que tocará um número maior de espectadores, que se identificarão com o arrependimento pelo não-dito, e o quanto isso pode tornar a vida de uma pessoa infeliz. Na trama, duas mulheres se encontram em uma escada rolante. Aparentemente elas são velhas conhecidas dos tempos de escola que não se viam há vinte anos. Há um plot twist que funciona tanto como surpresa quanto como elemento para construção de um momento de beleza e de ternura entre as duas.

A vontade de ver mais Hamaguchi é inevitável.

+ DOIS FILMES

O HOMEM IDEAL ((Ich Bin Dein Mensch)

Um filme que traz uma proposta que vai além de discutir as possibilidades de haver alma para inteligências artificiais avançadas, como em BLADE RUNNER - O CAÇADOR DE ANDRÓIDES e A.I. – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. A diretora Maria Schrader usa o tema para lidar com a questão da solidão nestes tempos de discussão sobre algoritmos. Interessante como algumas coisas me incomodaram, como o fato de o androide não ter uma função outra que não fosse satisfazer como um escravo todas as vontades de sua dona e não ter direito a ter nem mesmo uma carteira de identidade ou um dinheiro no bolso para qualquer coisa. Mas talvez me fazer pensar nisso seja parte da força de O HOMEM IDEAL (2021), que trata, de modo inconsciente ou não, de um fetiche, por mais que estejamos diante de uma obra com uma disposição muito maior para falar de amor e discutir sentimentos. Achei a atriz que ganhou o Urso de Prata, Maren Eggert, muito boa.

ATAQUE DOS CÃES (The Power of the Dog)

Tive que ver duas vezes. Da primeira vez, à noite, minha alergia me deixou embriagado de sono e fiquei lutando para ver ATAQUE DOS CÃES (2021), de Jane Campion, até o final e nem é preciso dizer que não é possível nem entender direito desse jeito. A revisão acabou por ser útil também para observar certos detalhes que aparecem logo nos primeiros 20 minutos. Detalhes como a flor de papel, a menção ao piano, o banho, as repetidas citações ao amigo falecido Bronco Henry, a toalha e a fala inicial de Pete sobre a importância de cuidar da mãe. Ou seja, trata-se de um filme muito bem pensado no roteiro, embora seja também caprichado na câmera, na preferência pouco usual por cenas demasiado escuras nos interiores, na divisão por capítulos (desnecessária talvez?). E é um filme também bem preocupado em lidar com os aspectos psicológicos de seu quarteto principal de personagens, o misógino Phil (Cumberbatch), a viúva solitária e alcoólatra Rose (Dunst), o irmão disposto a se desfazer da imagem grosseira do macho vaqueiro George (Plemons) e o rapaz delicado estudante de medicina Peter (Smit-McPhee). Os quatro têm seus problemas, que se apresentam nas sombras, ocultos. Lá pelo meio do filme é que ficamos sabendo sobre o que é ATAQUE DOS CÃES e é curioso como o cinema recente vem tratando da temática da homossexualidade dentro de um espaço-tempo tão opressor como o "velho oeste" (embora aqui não seja assim tão velho, pois se passa já nos anos 1920). Foi assim com FIRST COW, foi assim com UM FASCINANTE NOVO MUNDO. O primeiro abordando a relação homoafetiva masculina; o segundo, a feminina. A diferença é que parece ser mais tabu abordar essa relação masculina, por causa do ambiente mais machista e mais rude. Esse tipo de tema e de abordagem é bem-vindo nesses tempos de obscurantismo.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante as sessões.