domingo, janeiro 16, 2022

BENEDETTA



Paul Verhoeven sempre foi um cineasta provocador. Quem está acostumado com seu cinema se pega, muitas vezes, sorrindo de muitas cenas que podem provocar sentimentos dúbios na plateia. Não à toa, TROPAS ESTELARES (1997) foi, por muitos, considerado um filme de propaganda fascista, quando o que faltava na percepção de muitos era entender o senso de humor do realizador. Logo, quando nosso holandês maluco favorito anunciou que iria preparar um filme sobre freiras lésbicas todo mundo já esperou dinamite pura.

Até então, o diretor não havia abordado temática religiosa em sua obra de maneira tão contundente, embora não por falta de vontade - e embora já se pudesse ver algo espiritualmente forte em O QUARTO HOMEM (1983). Alguém lembra quando ele anunciou que faria um filme sobre Jesus chamado “Jesus of Nazareth”? Notícias saíram que uma produtora havia contratado Roger Avary para fazer o roteiro. Enfim, por algum motivo o projeto não vingou. Mas eis que, depois de anos de espera, chega aos cinemas BENEDETTA (2021), filme rodado em 2018, mas que só teve sua primeira exibição pública no Festival de Cannes.

Em tempos tão perigosamente corretos não consigo imaginar outro cineasta que tivesse a audácia de fazer uma obra que juntasse sexo, violência e religião num só pacote. Nos anos 1970-80, o subgênero nunsploitation, obras apelativas envolvendo freiras, começaram a pipocar por vários países, como Itália, México, Inglaterra, Japão, Alemanha e Polônia, principalmente após o sucesso do impactante OS DEMÔNIOS, de Ken Russell. Ressuscitar o subgênero em grande estilo hoje em dia nem chegou a causar tanta polêmica assim no meio da Igreja Católica. Talvez pelo fato de o filme situar a trama no século XVII; talvez porque os tempos são outros e a igreja não compre mais brigas com obras de ficção, como nos tempos de JE VOU SALUE, MARIE, de Godard, ou A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO, de Scorsese.

Considero BENEDETTA um filme-irmão de CONQUISTA SANGRENTA (1985), primeiro filme em língua inglesa de Verhoeven, que se passa na Europa medieval, traz muito sexo e violência, muita superstição e também mostra os efeitos da peste bubônica, a pandemia mais devastadora da história da humanidade, que se estendeu por alguns séculos. No caso de BENEDETTA, esse elemento causa um pouco de identificação com o momento atual.

O novo Verhoeven conta a história da freira Benedetta, que é entregue ainda criança a um convento da pequena cidade italiana de Pesce. Logo no começo, o filme faz-nos questionar os dons da jovem, quando ela consegue (?) fazer um pássaro defecar no olho de um ladrão que tentava roubar sua família. Os dons da freira também se expandem para visões de Jesus. Mas são visões mais parecidas com os filmes do Monty Python do que com épicos religiosos da velha Hollywood. Em determinada visão, Jesus a salva de ladrões, decapitando as cabeças dos homens com selvageria. Em outra, porém, o filme brinca ainda mais com o sentido dúbio, que é quando Benedetta surge com as chagas de Jesus. E o filme abraça a dúvida como elemento essencial da riqueza da personagem.

Afinal, Benedetta, brilhantemente interpretada por Virginie Efira, ao mesmo tempo que se diz esposa de Cristo e salvadora daquele convento e daquela vila, também abraça as tentações e os prazeres da carne apresentados pela jovem Bartolomea (Daphné Patakia). E quando o filme encontra o sexo, é quando o sublime abre espaço com força. A primeira cena de sexo das duas, culminando no primeiro orgasmo de Benedetta, parece nos conectar com o divino, de tão bela que é. Tanto que a própria personagem não se priva mais dos prazeres da carne, não os apresentam como inimigos do espírito. Além do mais, a personagem também traz um certo grau de maquiavelismo que a torna quase uma vilã de filmes de horror, daqueles com elementos de satanismo.

Principalmente quando ela começa a ganhar a inimizade da madre superiora (Charlotte Rampling). Aliás, com as brigas entre Benedetta e as demais freiras, incluindo também a filha da madre, Christina (Louise Chevillotte, de O SAL DAS LÁGRIMAS), o filme ganha contornos de SHOWGIRLS (1995), aquele filme meio maldito de Verhoeven sobre brigas entre strippers. É como se o diretor transpusesse as brigas para um tempo e um lugar diferentes.

E a beleza de BENEDETTA está justamente nessas contradições, nesses contrastes que a personagem e o filme nos oferecem. Cineasta de oposições, Paul Verhoven nos presenteia com uma heroína que usa sua inteligência para perpetrar suas ações, como uma Catherine Trammel (INSTINTO SELVAGEM, 1992), uma Rachel Stein (A ESPIÃ, 2006) ou uma Michèle (ELLE, 2016). E nós, espectadores de sorte, estamos diante de um filme que nasceu como um misto de milagre, ousadia e obstinação. Benedetta é Verhoeven.

+ DOIS FILMES

A CASA SOMBRIA (The Night House)

Estamos em um momento particularmente positivo para o cinema de horror. Depois da aposentadoria e morte de alguns mestres que abrilhantaram o gênero nas décadas de 1970-1990, eis que novos especialistas têm feito a nossa alegria, e em geral com muita elegância. É o caso de David Bruckner, ainda novato, com apenas O RITUAL (2017) como longa-metragem solo no currículo, mas com a promessa de ser o responsável pelo reboot de HELLRAISER, previsto para este ano. A CASA SOMBRIA (2021) ainda tem a vantagem de trazer uma ótima atriz como Rebecca Hall no papel de uma professora cujo marido cometeu suicídio; e, por isso, ela vive um grande e doloroso luto, sozinha, em sua casa à beira do lago. Aos poucos, ela começa a ser atormentada em sonhos e passa a descobrir coisas sobre o marido. Há uma cena que me deu um susto tão grande que quase morri. Mas fico feliz de estar aqui vivo para contar. E para enaltecer também este filme que brinca com situações de sonhos, de traumas e de medos de maneira muito criativa e muito tensa. Se MALIGNO é um filme que se assiste com um sorriso no rosto, não diria que o seríssimo A CASA SOMBRIA siga essa linha. Aqui o interesse é encarar o vazio, o demônio ou seja lá o que atormenta o espírito. Terror de gente grande.

NOITE DE PÂNICO (Alone in the Dark)

Eis um filme que se diferencia um bocado dos slashers mais tradicionais. A começar pelo elenco de ótimos atores maduros formado por Jack Palance, Donald Pleasance e Martin Landau. Uma trinca dessas não se encontra tão fácil e eles parecem estar se divertindo bastante com este filme sobre um quarteto de psicopatas que foge de um hospital psiquiátrico durante o blecaute em uma cidade, para aterrorizar, principalmente, a família do médico que acabou de assumir o caso deles no hospital. A meia hora final é ótima, com um clima de SOB O DOMÍNIO DO MEDO, de Sam Peckinpah, e algumas surpresas. Jack Sholder fez NOITE DE PÂNICO (1982) antes de assumir dois filmes mais caros, A HORA DO PESADELO 2 – A VINGANÇA DE FREDDY (1985) e o cultuado O ESCONDIDO (1987). Esse segundo ainda tenho muita vontade de rever. Filme presente no box Slashers X.

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