É um pouco difícil pôr em palavras os sentimentos que um filme me proporciona, especialmente quando esses sentimentos são ao mesmo tempo fortes e confusos, e também muito borrados pelos arrepios provocados pela música e pela interseção de emoções. No caso de DESTERRO (2020), Maria Clara Escobar opta por um registro fora do habitual, e por isso mesmo algumas coisas ficaram um tanto cifradas para mim; e por isso mesmo me gerou inquietação e amor pela obra.
Sabe aquela sensação de quando você começa a ver um filme e já percebe que ele te ganhou a partir das primeiras imagens e sons? Foi o que senti com este primeiro longa-metragem de ficção da diretora carioca residente em São Paulo, mais famosa pelo documentário OS DIAS COM ELE (2012). A opção, por exemplo, em fugir do óbvio na apresentação de cenas de conversa matinal de um casal já traz um tipo de fuga da vulgaridade que muito me agradou. Além do mais, a liberdade da cineasta em construir o que seria um enredo simples de perda e luto, acrescentando camadas e falas às vezes enigmáticas, tornou tudo ainda mais apaixonante.
DESTERRO é mais um filme que ficou “na geladeira” por um bom tempo por causa da pandemia. A diretora, porém, quis esperar para que fosse lançado quando o país estivesse em melhores circunstâncias para uma exibição presencial. E devo dizer que a experiência de ver o filme no cinema é mesmo impressionante e a espera se justifica. Seja pelo modo imersivo que a tela grande proporciona, seja pelo cuidado com o som (há pelo menos duas cenas musicais que ficam magníficas numa sala de cinema), seja pela atenção às cores em interiores da fotografia de Bruno Risas (senti isso mais destacado especialmente no primeiro capítulo do filme).
DESTERRO é a história de Laura (Carla Kinzo), mulher que vive maritalmente, mas não no papel, com Isräel (Otto Jr.) e com o filho pequeno. Ela tem uma maneira sombria de ver a rotina que a deixa em estado às vezes zumbilesco. Em certo momento, ela comenta sobre um cometa que está passando próximo à Terra e fala como se torcesse para que o astro se chocasse com nosso planeta. Fala do quanto seria extraordinária a experiência de sentir a aproximação da morte nessas circunstâncias. O marido, ao contrário, considera esses pensamentos de Laura absurdos, afirma preferir não saber quando irá morrer. Confesso que me identifiquei um pouco com esse desejo ou imaginação de Laura – quando criança ficava torcendo para os aviões caírem do céu. Desde o início, portanto, a personagem me ganhou.
O fato de Carla Kinzo ser além de atriz também poeta (preciso conhecer sua obra) deve contribuir para tornar sua personagem tão fascinante, tão adorável, a ponto de suas palavras à frente da tela se tornarem imensas. Cada vez que ela verbaliza algo, algum pensamento ou sensação, o filme se engrandece. Como Kinzo colaborou com o roteiro, junto com Caetano Gotardo e a diretora, ela pode ser considerada coautora do filme.
A segunda parte de DESTERRO se concentra no impacto da notícia da morte de Laura. Isräel recebe a informação pelo telefone de um homem desconhecido chamado Júlio (que mais tarde saberemos se tratar do personagem de Rômulo Braga (sempre ótimo). Enquanto isso, meu sentimento de luto por Laura parecia mais forte do que o do próprio companheiro dela. Como assim que haviam matado a melhor personagem? - eu me perguntava. O filme segue, nessa segunda parte, mostrando as dificuldades que o marido enfrenta para conseguir a deportação do corpo dela.
A alegria da terceira parte do filme, a mais diferente de todas, é que Laura volta. Como em PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA, o tempo retorna e somos apresentados aos instantes anteriores à morte da nossa heroína, quando ela se encontra em um ônibus com destino à Argentina. Sua fuga pode ser ainda pouco compreendida, mas nem tanto, se pensarmos em detalhes que a primeira parte do filme apresentara. E é nesta terceira parte que Maria Clara Escobar mais utiliza poemas, letras de música, canções, ou mesmo falas construídas a partir de experiências pessoais, como o monólogo de Georgette Fadel (PARTIDA), inspirado na história de sua mãe.
No ônibus, estão, além dos já citados Carla Kinzo, Rômulo Braga e Georgette Fadel, atrizes de rostos bem conhecidos, como Bárbara Colen (BACURAU), Isabél Zuaa (AS BOAS MANEIRAS) e Maria José Novais Oliveira (ELA VOLTA NA QUINTA). A reflexão sobre a imposição violenta da sociedade às mulheres comparece em alguns trechos, com ênfase no poema recitado por Colen, retirado do livro Um Útero É do Tamanho de um Punho, de Angélica Freitas. Mas é numa das paradas do ônibus no meio do caminho que eu mais me encantei. A cena musical com direito a dança de Kinzo e Braga, ao som de “Ana Maria”, do Trio Odemira, é linda. Diante da opressão que o filme expõe, essa cena é como uma libertação momentânea. Assim como é também a cena de fuga de Isräel, ao som de “Santa Igreja”, da banda punk Mercenárias, outro momento intenso. Ambas as cenas me remetem a Godard e a Carax.
Um filme como DESTERRO é uma obra para ser vista e revista, compreendida a partir dos pensamentos e dos sentimentos que o próprio filme passa, mas também dos diálogos com outras manifestações artísticas tomadas emprestadas para compor o trabalho final de Escobar. Desde já, este é um dos filmes mais queridos vistos por mim neste início de 2022. E uma prova de que o cinema, até quando nos aponta o mal estar da vida, é tanto um convite quanto um motivo para seguir vivendo.
+ DOIS FILMES
ÚLTIMA CIDADE
Misto de faroeste com sci-fi pós-apocalíptica, ÚLTIMA CIDADE (2020), de Victor Furtado, também tem seu momento de abertura para o documentário dentro de sua estrutura ficcional. É quando o protagonista, João (Julio Adrião), encontra moradores de rua no centro da cidade e ouve deles depoimentos de seu passado e presente. Na trama, ele é um homem vestido como um jagunço do sertão, mas vivendo em tempos contemporâneos (ou futuros). No caminho para chegar à cidade grande, ele encontra um estrangeiro, com quem faz amizade. O final amargo acentua a crítica à especulação imobiliária, à concentração de riqueza (que significa pobreza), ao próprio capitalismo, enfim, mas também à tristeza da prisão em que ele se encontra. É um filme que aposta bastante nos simbolismos e na força das imagens e menos nos diálogos, e isso talvez exija um pouco mais de esforço por parte do espectador.
AQUI JAZ O TEU ESQUEMA
Um dos aspectos mais interessantes deste AQUI JAZ O TEU ESQUEMA (2021), de Gabraz Sanna, é o quanto existe um trabalho de fluxo de consciência a partir da mente de uma pessoa bêbada. E isso torna o processo bem curioso, já que a fala do personagem está com poucos filtros. O filtro maior é sua própria consciência, que de vez em quando sabe se aquilo que ele vai contar pode ou não ser dito, coisas relativas a assassinatos ou violência que ele presenciou, vivenciou ou soube, de algum modo. Trata-se de um filme com pouquíssimos cortes e com a câmera parada em praticamente toda sua metragem. Alguns trechos são familiares no modo como representam alguém de esquerda cuja família e vários amigos de infância são hoje bolsonaristas. O personagem também se mostra como uma pessoa fracassada, do ponto de vista material, mas ainda assim não se acha menor do que os que se venderam para o golpe e estão em situação financeira melhor. Há trechos do filme que me cansaram um pouco, mas isso faz parte do risco desse tipo de projeto. Gostaria muito que fosse exibido em sessões comerciais no futuro, mesmo sabendo se tratar de uma obra de público bem pequeno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário