sábado, outubro 31, 2020

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS



Em O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS (2020) vemos algo parecido com uma boneca russa em se tratando de criadores. Há o filme de João Botelho, que é baseado no romance de José Saramago, que conta a história envolvendo o poeta Fernando Pessoa, que por sua vez criou o heterônimo Ricardo Reis, o poeta das odes, de estilo clássico, e ganhou uma data de nascimento, mas não ganhou uma data de morte, como Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, seus outros dois heterônimos mais famosos. E Saramago, dono de ideias geniais, teve a feliz ideia de contar a história deste homem, médico e simpatizante da monarquia, que fugiu para o Brasil quando se instalou a república em Portugal.

O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance lançado em 1984, foi um dos livros que li na virada do ano passado para este, muito devagarinho, finalizando finalmente já no período inicial da pandemia. Não achei o livro dos mais fáceis de Saramago. Está na categoria dos mais áridos, ao lado de História do Cerco de Lisboa (1989). O autor se permite cada vez mais se deixar levar por abstrações, entrando na mente de seu protagonista e viajando em seu fluxo de consciência, ao mesmo tempo que também nos oferece um panorama do cenário político que se apresentava naquele ano de 1936, com a ascensão do nazismo e do facismo.

O recurso do fluxo de consciência é um pouco mais complicado para se fazer na adaptação para o cinema, especialmente quando não se adota uma narração em voice-over. João Botelho opta por contar tudo com imagens e com os diálogos de seus personagens. E que imagens! O diretor de fotografia João Ribeiro é colaborador de Botelho em outros trabalhos. E aqui ele obtém resultados esplendorosos no uso de luz e sombra com o preto e branco luminoso adotado. É talvez o elemento que mais nos seduz neste filme. 

A história se inicia com o retorno de Ricardo Reis a Portugal, após um período de 16 anos morando e trabalhando no Brasil. Quando ele chega, fica sabendo da notícia da morte de Fernando Pessoa, seu amigo e grande poeta, ainda que menos popular do que se tornaria com o passar dos anos. Como os encontros de Ricardo com o fantasma de Fernando estão entre os pontos altos do livro, o filme procura destacar esse elemento como o mais importante. Talvez traia um pouco a obra, desequilibrando-a, mas oferece um olhar mais existencialista sobre a vida e a morte. O tom fantasmagórico fica mais acentuado. 

Por outro lado, um dos momentos mais empolgantes do romance, que é a viagem de Ricardo Reis a Fátima para talvez encontrar o seu amor, a menina Marcenda (Victoria Guerra), é filmado de maneira rápida e desinteressante. O que é uma pena. Os relacionamentos de Ricardo Reis com as duas mulheres que conhece no hotel em que se hospeda recebem destaque mas carecem um pouco de força dramática. De todo modo, de maneira racional percebemos o embate entre o amor romântico e quase platônico por Marcenda e o amor mais carnal por Lídia, interpretada por Catarina Wallenstein, que brilha com seu sex appeal - ela pôde ser vista recentemente em UM ANIMAL AMARELO, de Felipe Bragança, integrante da mostra competitiva do Festival de Gramado.

E quase esqueço de mencionar Chico Diaz, uma escolha audaciosa do diretor para viver Ricardo Reis. A princípio, fiquei achando que ele não combinava muito com a imagem de um português, mas depois vemos o quanto o ator brasileiro se sai bem. Além do mais, o próprio Fernando Pessoa, vivido por Luís Lima Barreto, tem um tipo físico bem distinto da magreza do poeta português. Ou seja, o diretor não tinha a intenção de se aproximar da realidade física.

Não foi a primeira vez que João Botelho trouxe para o cinema Fernando Pessoa e seus heterônimos. Em FILME DO DESASSOSSEGO (2010), ele adapta a prosa poética de Bernardo Soares, o que deve ser uma tarefa ainda mais difícil do que a de adaptar um romance. Por outro lado, deve ser mais livre, pois o trabalho maior é de adaptar as ideias, os pensamentos e os sentimentos. Em O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS é diferente: há a preocupação de se contar uma história, uma linha narrativa, por mais que o caminho para contá-la dependa da criatividade do diretor e roteirista.

sexta-feira, outubro 30, 2020

MALMKROG



De vez em quando surge um filme que funde a nossa cabeça. Mas de maneira boa, eu diria. MALMKROG (2020), do romeno Cristi Puiu, não tem pena de seus espectadores. Em suas três horas e vinte minutos de duração mal temos tempo de respirar diante de tantas discussões acerca de vários assuntos, analisados de maneira profunda, na maior parte das vezes, ou de maneira que irá denunciar a perversidade de seu locutor, como é o caso de um deles quando diz que se for preciso que a Europa tenha que massacrar os africanos para a manutenção de suas riquezas, que assim o faça.

MALMKROG, se não for o melhor filme da Mostra, é certamente um dos. O problema é que é um filme de difícil penetração, pela quantidade absurda de cultura, filosofia, teologia e História que é discutida entre cinco pessoas ricas na Rússia do século XIX, mais especificamente na Transilvânia, que na época fazia parte da Rússia. A região tem um longo histórico de invasão de povos (romanos, búlgaros, húngaros, entre outros) e de mudança de fronteiras. Hoje faz parte da Romênia.

Questões fascinantes são discutidas em língua francesa (as outras línguas são usadas para eles falarem entre si ou com os criados). Diria que se fosse um livro seria aquele livro que a gente pintaria com pincéis marcadores inúmeras passagens, mesmo aqueles trechos que representariam uma opinião absurda e preconceituosa, justamente como exemplo do pensamento das elites. Mas como é cinema, também precisamos prestar atenção no que está no quadro e até no que não está, nas escolhas do diretor daquilo que devemos ou não ver. E é impressionante o modo como ele coloca em cena cada personagem, com obsessivo cuidado, como se fossem peças de um jogo de xadrez. Puiu afirmou que usa pinturas como referência e não filmes. Isso justifica o lindo desenho de produção.

Na longa e lenta, mas não desagradável (longe disso!), metragem do filme, somos convidados a refletir sobre a guerra, a morte, Deus, o Cristianismo, o bem e o mal e, no final, até sobre o Anticristo. Por mais que seja uma experiência atordoante acompanhar esse jogo de retórica, não deixa de ser espantoso. Lembrei-me da experiência de ver WAKING LIFE, de Richard Linklater, em que o diretor americano nos joga montes de discussões filosóficas em um só pacote. E discussões que fazem o coração bater mais forte e a mente procurar se afiar para dar conta das informações e ao mesmo tempo refletir um pouco. Por isso, MALKROG é um filme que se beneficiaria bastante de uma revisão. De preferência na telona.

O filme é baseado nos escritos de um dos maiores filósofos da Rússia, Vladimir Sloviov. Sua obra se chama “Os Três Diálogos e o Relato do Anticristo” (não sei dizer se é inédita no Brasil). E Puiu prefere mostrar as discussões presentes nesses escritos na boca de seus cinco personagens principais: dois homens (Nikolai, um rico senhorio e ex-seminarista, e Edouard, um homem de negócios) e três mulheres (Olga, a mais jovem do grupo e que tem opiniões mais cheias de amor e considerada ingênua pelos demais; Ingrida, a esposa de um general russo e ardente defensora da guerra; e Madeleine, uma intelectual fria.) Cada um deles dá nome a um capítulo do filme. O outro capítulo, menor, recebe o nome do mordomo da casa.

Há quem se pergunte se o cinema é um meio apropriado para tratar de questões tão profundas e apresentar um filme desse tipo. Por que não seria? Se for de tão alto nível quanto é MALKROG, então, que oferece um deleite visual mesmo quando estamos perdidos na conversa, aí é que é bem-vindo mesmo. Há quem vá estranhar o quanto as discussões teológicas chegam a superar as discussões políticas, mas, certamente, isso faz parte da essência do texto de Sloviov.

quarta-feira, outubro 28, 2020

OS NOVOS MUTANTES (The New Mutants)



Um filme que já nasceu como um cachorro morto para o povo chutar. Ou para as pessoas não verem. A própria distribuidora o lançou no meio da pandemia, quando ninguém quer ir ao cinema. E chovem críticas negativas (34% de aprovação no site Rotten Tomatoes). Mas OS NOVOS MUTANTES (2020) é envolvente. Fico agradecido por ele existir e finalmente ter sido lançado após tanto tempo na geladeira, por mais que tenha sido mais arremessado do que exatamente lançado. É como se a Disney, mesmo tendo comprado a Fox, tratasse o material como concorrente e digno de ser execrado.

O filme de Josh Boone, diretor dos bons dramas de relacionamentos LIGADOS PELO AMOR (2012) e A CULPA É DAS ESTRELAS (2014), é sem dúvida superior aos dois filmes anteriores dos X-Men - lembrando: os horríveis X-MEN - APOCALIPSE e X-MEN - FÊNIX NEGRA. É claramente uma produção mais barata e mais humilde. Não há aquela megalomania dos outros filmes dos mutantes. E há um diferencial muito atraente: a pegada de filme de horror, que oferece uma experiência diferente ao subgênero de filmes de super-heróis.

Junte-se a isso as angústias dos adolescentes em lidar com seus poderes, que podem servir de metáfora para as explosões hormonais que surgem neste estágio da vida humana. Há um romance gay muito bonito entre duas personagens, inclusive, o que conta ainda mais pontos a favor do filme. Assim, nota-se que a escolha de Boone para a direção do filme teve mais a ver com seu sucesso popular com o melodrama teen A CULPA É DAS ESTRELAS do que com sua intimidade com filmes de ação ou horror. Na verdade, ele não tinha nenhuma. 

E isso infelizmente depõe contra o filme quando ele se aproxima de seu clímax e as cenas de ação merecem ter um cuidado maior. É quando OS NOVOS MUTANTES cai bastante. Os efeitos especiais do urso gigante também são outro problema, mas talvez isso possa ser relevado diante do projeto como um todo. Até porque há outros tantos aspectos positivos, como a presença brilhante de Anya Taylor-Joy como a provocadora e badass Ilyana Raspuntin. A atriz ficou muito bem, trazendo expressividade e charme para a personagem. Ilyana tem o poder de se teleportar para um limbo, tem uma espada mágica gigante e um dragãozinho demoníaco como companheiro.

Todos os demais atores e atrizes acabam ficando eclipsados pela presença de Taylor-Joy. Mas isso não quer dizer que a química não funcione. Rahne (Maisie Williams), a menina que se transforma em lobo; Dani (Blu Hunt), com poderes a ser descobertos; Sam (Charlie Heaton), uma espécie de míssil humano descontrolado; e Roberto (Henry Zaga, ator brasileiro), cujo corpo arde como um vulcão; todos estão bem. Aliás, temos dois intérpretes brasileiros no filme: além de Zaga, a nossa querida Alice Braga, no papel da médica responsável pelos novos mutantes naquela instalação que os aprisiona.

Quem leu as histórias clássicas do grupo, com roteiro de Chris Claremont e arte de Bill Sienkiewicz e Bob McLeod provavelmente vai ter ainda mais prazer vendo o filme. É uma pena que o filme morrerá neste único exemplar. Assim sendo, a abertura para o futuro na vida daqueles jovens em processo de autodescoberta ao final da narrativa traz um gostinho amargo de interrupção. Caso de obra que definitivamente teve má sorte em seu processo de produção, pós-produção e lançamento. 

Vi o filme numa sala IMAX gigante. Havia apenas seis pessoas na sala. Uma tristeza. Mas é totalmente compreensível nesses tempos de perigo invisível no ar.

segunda-feira, outubro 26, 2020

OITO FILMES VISTOS NA 44ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO



A mostra de São Paulo deste ano, com o formato quase que totalmente online, está possibilitando milhares de pessoas acessarem uma programação de filmes que não seria possível, a não ser gastando muito dinheiro - falo especificamente das pessoas que não moram em São Paulo, como eu. E está sendo muito gostoso ver os filmes em qualidade de imagem excelente - eles usam uma ótima plataforma. E ainda que eu não esteja tendo tanto tempo para me dedicar aos filmes como gostaria, os títulos vão se acumulando.  e Alguns dos filmes receberão mais atenção que outros em títulos futuros, mas, para não perder muito tempo, falemos rapidamente de alguns filmes vistos.

17 QUADRAS (17 Blocks)

Curioso como documentários, especialmente estes que tratam de dramas familiares ocorridos em um longo intervalo de tempo, também nos fazem criar elos de simpatia e antipatia com os personagens, como acontece em obras de ficção. Afinal, é o que ocorre na vida real. Essa relação espectador-obra se torna importante para que o drama apresentado seja não só aceito mas principalmente ganhe nossa solidariedade. Nesse sentido, por exemplo, a personagem da mãe Cheryl não me despertou tanto esse sentimento, mas fiquei especialmente tocado com as dificuldades de Smurf, o irmão mais novo dos três, e que carrega sentimentos de culpa pelo ocorrido com o irmão mais velho. É o tipo de documentário que não trata apenas de vícios e superações, mas de todo um sistema social falho. O fato de fazer menção à distância da casa onde tudo se inicia para o Capitólio deixa isso bem claro e abre espaço para várias discussões. Direção: Davy Rothbart. Ano: 2019.

KUBRICK POR KUBRICK (Kubrick by Kubrick)

A estrutura não é muito diferente da de vários outros documentários que tratam da obra de cineastas. No caso deste aqui, o que há de diferente são os trechos das entrevistas que Stanley Kubrick deu ao crítico Michel Ciment, talvez o único sujeito que teve a honra de ter acesso a entrevistas com o realizador. O problema é que as obras de Kubrick são tão densas que simplesmente passar por elas acaba tornando o tema um pouco raso. Só de 2001 - UMA ODISSEIA NO ESPAÇO (1968) caberia um filme de muitas e muitas horas. Senti falta de sequer mencionarem obras do início da carreira, como A MORTE PASSOU POR PERTO (1955) e O GRANDE GOLPE (1956). Mas gosto de ver as entrevistas com pessoas que trabalharam com Kubrick e algumas delas se mostraram bastante traumatizadas com a experiência. E olha que a Shelley Duvall foi bem boazinha e não contou nada de ruim dos bastidores de O ILUMINADO (1980). Por outro lado, Malcolm McDowell sofreu pra caramba nas filmagens de LARANJA MECÂNICA (1971). Fisicamente, inclusive. E disso eu não sabia. Direção: Gregory Monro. Ano: 2020.

LIMIAR (Threshold)

O filme começa com "Ave Maria" de Haendel, para dar aquele ar solene. O que me agrada, inclusive para ver um filme pela manhã. No entanto, o que a dupla de diretores faz é só filmar algumas regiões mais desertas da Armênia e vender o filme como um produto de arte, experimental, livre. Há também cenas que me parecem mais interessantes, como o contato com pessoas da região, para mostrar aspectos de sua cultura (culinária, música etc.), mas é como se tudo fosse em vão na tentativa de nos colocar em uma experiência quase mística. Não rolou pra mim de jeito nenhum. Direção: Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson. Ano: 2020.

APENAS MORTAIS (Being Mortal)

O filme acompanha uma jovem solteira cujo pai sofre de Alzheimer e depois passa a apresentar outros problemas de saúde. O filme é centrado mais na reação e na luta da jovem diante das dificuldades do pai e também da mãe, do que no sofrimento do pai em si, em sua decadência física e mental, embora tudo seja quase explícito no que se refere à perda da própria dignidade quando a saúde falta. Durante o filme lembrei de A BALADA DE NARAYAMA, de Shohei Imamura, sobre um fim para os idosos. Aqui o diretor trata de uma realidade muito presente na atual China, que é a alta quantidade de idosos e também o alto de número de pessoas com demência/Alzheimer, além de alfinetar um pouco o sistema de saúde do país. Direção: Liu Ze. Ano: 2020.

NOVA ORDEM (Nuevo Orden)

Talvez o meu entusiasmo na primeira meia hora de filme tenha sido mais uma falha minha do que da obra de Michel Franco em si. Afinal, o que imaginamos ser um ataque rebelde vigoroso contra os ricos para a quebra de uma estrutura de poder cruel e desigual, acaba se revelando uma entrada em uma situação muito pior, com estupros, torturas, sequestros e assassinatos. Não vejo o filme como a obra polêmica que querem vendê-la. Pensava em Haneke e até em Noé como parâmetros, mas o cineasta mexicano não tem o mesmo talento de seus colegas provocadores. De todo modo, não deixa de ser um filme com uma cara parecida com este mundo distópico em que estamos vivendo. Ano: 2020.

O SÉCULO 20 (The Twentieth Century)

Alguns filmes têm um poder de me irritar impressionante. E embora eu tenha me atraído para esta obra não apenas por indicações, mas por ter algo de lynchiano (e de fato tem), a experiência não foi das mais agradáveis. Acredito que um pouco de conhecimento da História do Canadá ajudaria a curtir o filme no aspecto mais racional, mas mesmo dentro da razão demorei a apreciar o que há de singular no filme, que está basicamente em sua forma e em sua estranheza, vinda ou não do universo queer. O filme acompanha a trajetória de W.L. Mackenzie King em sua juventude. King foi Primeiro Ministro do Canadá por três vezes. O SÉCULO 20 usa imagem granulada, cores esmaecidas, cenário artificial e divisão por capítulos. Direção: Matthew Rankin. Ano: 2019.

CORONATION

A ideia me parece melhor do que o resultado neste documentário filmado remotamente e às escondidas do governo chinês, já que tece diversas críticas às ações da China para conter o vírus na sua fase inicial e o modo como algumas pessoas são tratadas quando chegam para receber as cinzas de seus entes queridos. Aliás, essa é a parte final do filme, que é a mais interessante. Acho também interessante a conversa com uma senhora bastante defensora do partido comunista chinês e muito crítica de quem sai do país para gastar dinheiro no exterior. Embora haja momentos bem dolorosos, não é um filme tão exploratório das desgraças do país durante a pandemia. Ele explora mais isso ao mostrar o lockdown em uma Wuhan congelada. Direção: Ai Weiwei. Ano: 2020.

OS NOMES DAS FLORES (Los Nombres de las Flores)

O tom de narrativa fabular que o filme dá a entender no início é até convidativo, atraente e simpático. A história de uma senhora que diz ter preparado uma sopa para Che Guevara no dia de sua execução e o lendário homem teria lhe oferecido um poema e uma flor. O filme vai se tornando desinteressante, não apenas pela narrativa um tanto arrastada, mas pela dificuldade que eu tive de me solidarizar com a senhora que teima em desobedecer as ordens dos militares que acreditam ser falsa a sua história. Há coisas interessantes do ponto de vista antropológico e também um visual deslumbrante da região rural da Bolívia, mas não consegui ver mais do que isto. Direção: Bahman Tavoosi. Ano: 2019.

domingo, outubro 25, 2020

MASTERS IN SHORT



Uma das melhores experiências da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo é esta programação de cinco curtas dirigidos por realizadores consagrados de diferentes partes do mundo: o chinês Jia Zhangke, o canadense Guy Maddin (em parceria com Evan Johnson e Galen Johnson), o ucraniano Sergei Loznitsa e o iraniano Jafar Panahi. São obras totalmente distintas e muito bem-vindas.

A VISITA (Lai Fang)

Pequeno filme de quatro minutos do grande Jia Zhangke. É um trabalho despretensioso e leve, especialmente em tempos de pandemia. Ao final, há um momento de esperança no horizonte, inclusive com a mudança da fotografia: do preto e branco para as cores vivas. O amor pelo cinema também aparece quando os dois amigos (entre eles o próprio diretor) aparecem vendo um filme juntos, usando máscara, com um velho projetor em película. A arte como salvação e o bom humor como um elemento de cura para os males.

O ADIVINHADOR (Stump the Guesser!)

Meu primeiro contato com o cinema de Guy Maddin (ainda que ele divida aqui a direção com outros dois cineastas) foi com este curta que emula todo o estilo dos filmes mudos (com intertítulos e formato de tela da época), inclusive também trazendo a tradição do que divertia as plateias no início do século XX em parques e circos. Aqui vemos a história de um homem que ganha a vida como adivinhador. Seu dom se manifesta em casa também. Tudo muda quando seu alimento mágico é roubado e ele se apaixona por uma mulher desconhecida e o filme ganha toques lindamente dramáticos e românticos. Fiquei com uma boa impressão do trabalho de Maddin.

OS CAÇADORES DE COELHOS (The Rabbit Hunters)

O outro curta do trio Maddin, Johnson e Johnson traz uma presença ilustre: Isabella Rossellini no papel de Federico Fellini. O tom de estranheza é apropriado, já que o clima do filme é de sonho, com imagens que parecem colorizadas artificialmente em cima de um preto e branco de luz sem muita uniformidade. O filme foi feito por ocasião do centenário de Fellini e brinca com seu estilo. Só faltou conseguir imprimir a magia necessária para que a viagem funcionasse.

UMA NOITE NA ÓPERA (Une Nuit à l'Opéra)

É curioso começar a ver um filme sem ter a menor ideia do que se vai ver. Assim, fui surpreendido por imagens de uma noite de gala, com a aristocracia mundial fazendo parte de um evento que aos poucos se definirá. Surgem rostos conhecidos: Charles Chaplin, Brigitte Bardot, Grace Kelly, a Rainha da Inglaterra, o Príncipe de Mônaco e mais outros monarcas de outras partes do mundo, entre outros tantos cineastas, atores, atrizes. Todos  para ver Maria Callas. Há toda uma pompa no modo como vemos a chegada das pessoas, a preparação, o momento respeitoso de se ouvir a Marselhesa de pé, para então ouvir Callas em toda sua glória. Só depois soube que não se tratam de imagens de apenas uma noite, mas de várias, ocorridas no mesmo teatro, nas décadas de 1950 e 60. Grande restauração de imagens e de som. Um presente.

A ESCONDIDA (Hidden)

Lindo e comovente filme curto de Panahi, este sujeito que desafia as leis de seu país para continuar fazendo o que mais sabe, cinema. E um cinema tão cheio de humanismo e também de denúncia social e política que é sempre um soco no estômago, por mais que a violência esteja longe das intenções do cineasta. Aqui, ele, a filha e uma outra mulher seguem para a um vilarejo do Curdistão a fim de encontrar uma mulher que canta lindamente. Infelizmente, o fanatismo religioso e as regras machistas não deixam de se impor. Panahi fez este filme com apenas dois celulares e seu automóvel.

sexta-feira, outubro 23, 2020

SPORTIN' LIFE



Quando a pandemia começou e todos ficamos em nossos lares trabalhando em home office e apreensivos com o que estava ocorrendo no mundo, Abel Ferrara foi o cineasta que eu escolhi para fazer a minha primeira peregrinação do ano. Sempre foi um diretor de meu interesse, mas por algum motivo eu desconhecia várias de suas obras. E felizmente hoje em dia é muito mais fácil de se conseguir as mais diversas obras de cada diretor que queiramos estudar.

Por isso ver SPORTIN' LIFE (2020) foi tão poderoso pra mim, já que une as obsessões de Ferrara e o tom apocalíptico dos dias de hoje, com o advento do Corona Vírus. O filme conta com imagens do Festival de Berlim, em fevereiro deste ano, quando o diretor foi apresentar SIBÉRIA (2020), e já mostra o clima de apreensão que se instalava pela Europa. Aos poucos o filme vai mostrando cenas da tragédia de nosso tempo, além de também encerrar destacando os protestos ocorridos após a morte de George Floyd, como se apontando para um futuro ao mesmo tempo de muita luta e de busca por justiça.

Ferrara entrecorta esses momentos de 2020 com cenas de vários de seus filmes, vários que dialogam com o momento atual, seja por apresentar uma atmosfera sombria, seja por trazer falas que parecem feitas para este instante. O cineasta já havia feito um filme sobre o fim do mundo, 4:44 - O FIM DO MUNDO (2011), estrelado por Willem Dafoe, seu maior parceiro.

Aliás, Dafoe, que está morando na Itália há alguns anos, é quase um protagonista deste documentário. Está quase sempre com Ferrara durante as coletivas de imprensa. E é engraçado como o diretor deixa tudo muito informal nessas entrevistas, como quando ele passa a resposta para o diretor de fotografia Stefano Falivene, seu colaborador eventual desde MARIA (2005); ou quando ele pede para o entrevistador repetir a pergunta, de modo que ele possa filmá-lo com a câmera de seu celular. Há esse interesse pelas novas tecnologias. Isso, na verdade, já existia desde seu namoro com o vídeo, na década de 1990, em filmes como OLHOS DE SERPENTE (1993) e BLACKOUT (1997).

Ferrara também é o cineasta rebelde que traz o espírito rock'n'roll para seus filmes. No caso de seus documentários, ele aproveita para apresentar o trabalho de sua banda, suas composições, como havia feito em NAPOLI, NAPOLI, NAPOLI (2009). A diferença aqui é que tudo parece mais jazzístico na montagem. Inclusive, há quem vá achar tudo uma bagunça sem muito critério. O diretor diz que o que está fazendo é um documentário sobre fazer um documentário e não sobre seus filmes. De todo modo, essa liberdade é contagiante.

O filme talvez não desperte o mesmo entusiasmo em pessoas que não tem alguma intimidade com a obra do cineasta, já que há diversas referências, diversos hipertextos. Mas não duvido que alguém, por algum acidente do destino, seja apresentado ao diretor com este filme e então decida se aventurar pelo seu trabalho. Quem sabe?

terça-feira, outubro 20, 2020

MISS MARX



Um filme que conta a história de Eleanor Marx, a filha de Karl Marx, já é suficientemente atraente, tanto para quem a conhece quanto para quem não sabe de sua história de vida, de sua luta. A escolha por um som punk rock para os créditos iniciais de MISS MARX (2020) me causou bastante simpatia. É algo parecido com o que Sofia Coppola fez em seu MARIA ANTONIETA. Ou seja, dá ao filme um quê de estranheza temporal, aproximando-o do nosso momento presente. Até porque a personagem é alguém muito à frente de seu tempo.

Como a própria diretora Susanna Nicchiarelli destacou em entrevista à Variety, Eleanor Marx não casou formalmente, decidiu não ter filhos e era muito dedicada à carreira política. Para aquela época, fim do século XIX, tudo isso era muito avançado, a sociedade inglesa não aceitava com tanta naturalidade. E falando em naturalidade, o que Nicchiarelli faz com sua direção, seu roteiro e seu elenco é admirável. Não há um engessamento nas falas, mesmo quando elas são transcritas diretamente de documentos históricos.

Quanto à narrativa adotada, me pareceu bem mais clássica do que à de seu longa anterior, NICO, 1988 (2017), outro filme da diretora que também traz um recorte da vida de uma pessoa real. Nicchiarelli, inclusive, achou tão fascinante fazer esse tipo de trabalho que disse que nem chega a pensar em trabalhar em outro projeto que também não seja uma biopic. O estimulante da experiência, segundo ela, é ter a liberdade de criar dentro de uma imposição histórica, já que não se pode mentir sobre a vida dessas pessoas reais.

Podemos destacar como um dos pontos altos do filme a interpretação de Ramola Garai. A atriz é a protagonista de ANGEL, de François Ozon, e foi indicada duas vezes ao Globo de Ouro por duas diferentes minisséries britânicas, EMMA e THE HOUR. Expressiva, Garai confere à protagonista o equilíbrio entre a força e a fraqueza, a dualidade em pregar os direitos das mulheres diante de multidões e ser mal tratada pelo marido, o dramaturgo e ativista Edward Aveling (Patrick Kennedy), um personagem curioso pelo modo como leva a vida, quase que sem ânimo de viver. Isso combina com os problemas de saúde que surgem mais adiante na narrativa.

Outro grande destaque de MISS MARX é o desenho de produção, que é de dar gosto, a cargo de Igor Gabriel (colaborador frequente dos irmãos Dardenne) e Alessandro Vanucci (que já havia trabalhado com a diretora em seus outros dois longas). Bem junto ao desenho de produção, a fotografia que destaca os tons bem vivos e coloridos é de Crystel Fournier, colaboradora tanto de Nicchiarelli quanto de outra cineasta importante, a francesa Céline Sciamma.

Talvez tenha faltado mais emoção ao abordar as paixões de Eleanor, tanto pelo companheiro quanto por seus ideais herdados do pai e trazidos para o feminismo, mas ainda assim é um filme bem digno e bonito e que tem tudo para ser sensação no circuito de filmes independentes quando acabar a Mostra de Cinema de São Paulo.

segunda-feira, outubro 19, 2020

LUA VERMELHA (Lúa Vermella)



Sucessão de imagens extraordinárias do mar e da lua. Lençóis cobrindo corpos formando imagens clássicas de fantasmas. A procura do corpo de um homem. Três bruxas no auxílio. O ganido muito estranho de um bode. Mortos e vivos convivendo em um estendido e parado tempo, em um luto que parece não ter fim. LUA VERMELHA (2020), de Lois Patiño, é cinema-poesia. É o tipo de filme que tem uma beleza plástica tão grande e um rigor formal tão admirável que lamentamos não estarmos vendo na telona de um cinema. Mas ao mesmo tempo nos sentimos gratos pela possibilidade de contemplar essas imagens e ouvir essas vozes.

Inclusive, há cenas interiores em que a iluminação também é igualmente impressionante. A história é um pouco difícil de compreender, mas trata-se de um filme mais para se sentir do que para entender. Não há interpretações no que estamos acostumados a entender pelo termo. Há imagens e vozes. Imagens que remetem à morte, vozes que trazem ao mesmo tempo paz e horror. As imagens dos fantasmas nos cenários da natureza também contribuem com o resultado. É o caso de filme que utiliza a singularidade das locações para construir sua trama, a partir da mitologia que o lugar dispõe.

E falando em locações, Patiño já havia feito um filme antes no mesmo lugar, Costa da Morte, no Nordeste da Galícia. Este novo trabalho é um retorno ao misterioso e fascinante local, a fim de, desta vez, contar a história de um mergulhador cujo corpo está desaparecido. O curioso é que a história desse homem surgiu apenas quando o cineasta estava no local, duas semanas antes de começar as filmagens, e assim transformou o que seria algo mais próximo de um documentário em um filme de ficção, envolvendo bruxas, monstros do mar e misticismo.

Como um cineasta que veio dos documentários, ainda que não seja do tipo naturalista, Patiño consegue aqui aliar o acaso dos processos que geralmente ocorrem nos registros documentais com um tipo de direção que parece ter em mente desde o início o que se deseja filmar. O resultado, com o áudio de diferentes pessoas agindo como mortos-vivos ou algo parecido, traz um ar de mistério e de beleza admiráveis. E há o trabalho de som, tanto o som da natureza quanto da música, que certamente em uma sala de cinema apropriada traria uma experiência ainda mais singular.

sábado, outubro 17, 2020

A MALDIÇÃO DA MANSÃO BLY (The Haunting of Bly Manon)



Em tempos de resistência a séries de minha parte, só mesmo Mike Flanagan para fazer eu me empolgar com uma delas com todo carinho e entusiasmo, mesmo já esperando ser um trabalho inferior ao maravilhoso A MALDIÇÃO DA RESIDÊNCIA HILL (2018), que é algo próximo de uma obra-prima e tem todos os episódios dirigidos por seu criador. Aqui Flanagan terceirizou: dirigiu apenas o primeiro, "The Great Good Place". Ainda assim ele conseguiu imprimir sua marca na série como um todo. A MALDIÇÃO DA MANSÃO BLY (2020) guarda várias similaridades com a minissérie anterior, utilizando novamente o método de ir aprofundando e apresentando melhor os personagens a cada episódio.

No caso, temos personagens vivos e também há os vários mortos. Esses é que trazem as histórias mais fascinantes e angustiantes, como a mostrada no episódio 7, o meu favorito. Essa ampliação do universo da novela de terror A Volta do Parafuso, de Henry James, fez eu me interessar mais ainda pela obra literária e pelas outras versões cinematográficas (falta eu ver ATRAVÉS DA SOMBRA, de Walter Lima Jr., e OS ÓRFÃOS, de Floria Sigismondi). E sim, eu sei que o texto original serve apenas de base para a construção de um roteiro que usa muitas liberdades para contar sua própria história de amor e morte.

Aliás, uma coisa que me encantou bastante neste MANSÃO BLY foi o caráter essencialmente romântico da história. Mas por romântico, eu me refiro ao romantismo "raiz", aquele que envolve dor, morte, sofrimento, assombração. No já referido sétimo episódio, "The Two Faces, Part Two", ficamos sabendo dos planos terríveis de Peter Quinn (Oliver Jackson-Cohen) para conseguir se livrar do purgatório em que vive desde que foi assassinado pelo misterioso espírito de uma mulher que já assombrava a casa há vários anos.

Aliás, é no episódio 8, "The Romance of Certain Old Clothes", quase todo filmado em preto e branco, que saberemos toda a história dessa mulher do século XVII (vivida por Kate Siegel, esposa de Flanagan). E a história é tão fascinante que teria força muito bem para ser um longa-metragem independente. No entanto, como parte do conjunto da obra se torna ainda mais poderosa, pois mais uma vez nos mostra a morte como algo extremamente perturbador. Ou seja, o temor maior aqui não é de morrer, mas é ter essa consciência da morte. Isso já havia sido mostrado nos episódios que revelam a morte de Peter e de Rebecca (Tahira Shariff), a governanta anterior da mansão.

A história, assim como a trama clássica de OS INOCENTES, de Jack Clayton, se inicia com a nova governanta, Dani Clayton (Victoria Pedretti), conseguindo o emprego a partir de uma entrevista com Henry Wingrave (Henry Thomas). O maltratado homem é o atual responsável pela mansão e pelas crianças, depois que os pais dos meninos faleceram. As crianças, aliás, são responsáveis por muito da força da minissérie. Tanto a doce Flora (Amelie Bea Smith) quanto o às vezes assustador Miles (Benjamin Evan Ainsworth). Essas crianças sabem de coisas que a jovem governanta jamais imaginaria. Ela, por sua vez, também já é assombrada por um fantasma pessoal.

No mais, antes que eu me esqueça, há mais três personagens muito importantes na linha do tempo do presente da série, mas preciso destacar Hannah Grose (T'Nia Miller), uma mulher que cuida com muito carinho da casa, mas que possui uma habilidade de locomoção temporal muito interessante. Essa brincadeira com as idas e vindas no tempo já era algo muito bem trabalhado em RESIDÊNCIA HILL e é novamente explorado com brilhantismo em MANSÃO BLY.

Aguardando agora o próximo projeto de Flanagan, outra série para a Netflix, em fase de gravações, chamada MIDNIGHT MASS. Por enquanto ainda não há uma data de lançamento, mas tudo leva a crer que será ainda mais especial do que esta, já que nela todos os episódios são dirigidos por Flanagan. E isso é um ótimo sinal.

sexta-feira, outubro 16, 2020

METRÓPOLIS (Metropolis)



Ando bastante cansado ultimamente. Nesta semana principalmente. Os textos que escrevi sobre os filmes da Mostra vistos em cabine foram escritos com uma dificuldade imensa por causa do cansaço mental. Não sei o quanto isso se apresenta claro nas linhas. De todo modo, não deixa de ser uma alegria poder estar iniciando uma Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ainda que de forma remota, ainda que não nas melhores condições.

De todo modo, como eu estava me habituando a ver mais ou menos um Fritz Lang a cada dois dias, essa nova rotina atrapalhou um pouco minha peregrinação pela obra do cineasta austríaco. E até já faz alguns dias que vi METRÓPOLIS (1927), que é um filme que, confesso, não está entre os meus clássicos mais queridos. Nesta segunda vez, consegui gostar mais um pouco, principalmente porque a nova cópia remasterizada e com duração ampliada está de dar gosto, mas também porque passei a conhecer melhor a poética do cineasta.

Por outro lado, continuam me incomodando algumas coisas no filme, como o seu final, por exemplo. Para minha surpresa, o próprio diretor também acha o final ruim. Ele disse que na época não tinha a mesma consciência política que foi adquirindo aos poucos. Achei curioso, pois é um final que parece agradar mais a empresários. Não à toa, Adolf Hitler adorou e quis trazer Lang para ser o seu cineasta-nazi mestre. No tal final, há uma confraternização entre o capital e o trabalho.

Na trama, a jovem Maria é uma espécie de mediadora e pacificadora para os trabalhadores escravizados, os que ficam no subsolo. Ela acredita em uma visão um tanto religiosa de uma figura que virá para os salvar ou encontrar o caminho. Há um irritante subtexto de aceitação que essa Maria boa traz. Tanto que quando a Maria má surge e fala para os trabalhadores quebrarem tudo, até achei que eles estavam fazendo o certo sim. Talvez fazer um épico de rebeldia contra o sistema fosse demais até para Lang, que dirá para os nazistas que já estavam a postos àquela altura na Alemanha.

Porém, não há como negar a influência de METRÓPOLIS principalmente nos filmes de ficção científica, como GUERRA NAS ESTRELAS, de George Lucas; BLADE RUNNER - O CAÇADOR DE ANDRÓIDES, de Ridley Scott; BATMAN, de Tim Burton; o videoclipe de Madonna "Express yourself", dirigido por David Fincher, e até na criação de um certo super-herói que mora em uma cidade chamada Metrópolis. Ou seja, o que há de mais valoroso no filme não são as ideias políticas da roteirista Thea von Harbou, mas a genialidade de Lang na inovação visual, algo já bastante presente em obras anteriores, mas aqui mostrado explícito devido à produção muito mais cara. E acabou por render prejuízos financeiros.

Fracasso comercial, o filme levou quinze meses para ser rodado, empregou 36.000 extras e 200.000 figurinos, Lang passou oito dias filmando dez segundos de stop-motion da visão da cidade, foi o filme mais caro da UFA na era do cinema mudo. A rejeição do público fez com que os produtores cortassem o filme bastante e muito se perdeu. Encontraram uma versão integral na Argentina em 2008.

Outra coisa que me incomoda no filme são os personagens, fracos, unidimensionais. O mais interessante é o quanto se pode tirar deles do ponto de vista visual, como o aspecto vilanesco languiano do inventor maluco vivido por Rudolf Klein-Rogge, ou a exagerada performance de Brigitte Helm, especialmente quando ela aparece como o duplo malvado. Certamente, ela é, de longe, a melhor intérprete do filme. O que é aquela cena dela sendo queimada na fogueira, hein?! Outras estranhezas visuais fazem parte do charme do filme: o cientista louco com mão de ferro ou os trabalhadores que se arrastam em direção às mandíbulas de uma máquina que é também o antigo deus Moloch.

A excelente direção de fotografia é de Karl Freund, que havia trabalhado com Lang em AS ARANHAS (1919-1920). Ele, assim como Lang, passaria a morar nos Estados Unidos. Chegou a dirigir alguns filmes lá também, entre eles A MÚMIA (1932), para a Universal.

quinta-feira, outubro 15, 2020

O PROBLEMA DE NASCER (The Trouble of Being Born)



Fazer filmes com conteúdos sexuais e que envolvam crianças hoje é mexer num vespeiro. E foi o que aconteceu com a cineasta Sandra Wollner, que fez um filme sobre a relação de um homem com uma androide-criança. Embora seja um filme que coloque as questões de maneira muitas vezes implícita, elas acabam por se tornarem o centro das atenções, embora não sejam as únicas questões abordadas. Afinal, o filme é muito mais sobre a crise existencial dessa garota-androide e também sobre a confusão de sentimentos que ela acumula ao longo de seus anos de existência.

O PROBLEMA DE NASCER (2020), exibido e premiado em Berlim, na nova seção Encounters, é o segundo longa-metragem de Wollner, que havia tratado da construção do ego em seu primeiro longa, THE IMPOSSIBLE PICTURE (2016), e que agora trata de algo mais como o desaparecimento, a dissolução do ego neste novo filme. Essa distinção ela mesma fez em entrevista dada à revista Film Comment de março deste ano.

Na entrevista ela destaca uma diferença básica entre seu filme e outro a que costumam compará-lo: A.I. - INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, de Steven Spielberg. O filme de Sbielberg baseado em ideia de Stanley Kubrick seria mais inspirado na história de Pinóquio, na vontade de um garoto criado artificialmente de se tornar alguém de carne e osso. No filme de Wollner, temos algo de certa forma ainda mais perturbador: a menina-androide queria apenas poder continuar fazendo a vontade de seu dono, continuar sendo seu objeto.

Como o filme trata dessa questão da objetificação, ainda que seja de uma criatura com inteligência artificial, mas com similaridades com humanos, ainda mais com uma garotinha, a questão do quanto o ser humano é capaz de trazer seus sentimentos mais sombrios para esses "brinquedos" vai se destacando. E a androide aos poucos vai demonstrando ter um tipo de consciência próxima da humana. Essa consciência, ou semi-consciência, se torna ainda mais próxima do espectador, pois é a própria robô que conta sua história, ainda que de maneira confusa e fragmentada. Como é fragmentada a própria narrativa.

Uma coisa que o filme destaca também é a sua fotografia com pouca iluminação, mesmo em cenas que se passam ao sol, na piscina. A sensação de meia luz acaba se tornando uma característica do filme e algo que combina com sua estranheza, com seu aspecto por vezes abstrato, especialmente quando Ellie, a androide, passa a conviver com uma senhora idosa e tem sua identidade mudada para a de um menino. Ellie, a jovem protagonista, passa a ser destituída de sua identidade anterior, mas as memórias, ainda que confusas, persistem, assim como a falta que ela sente do "pai". Nesse sentido, a voice-over no filme tem um papel muito feliz e importante.

Como se trata de um filme claramente de baixo orçamento, o aspecto de ficção científica passa a ser menos importante do que o aspecto dramático, da questão da identidade de Ellie, de suas angústias. Para dar um senso de estranheza à personagem, a diretora usou uma máscara de silicone na jovem atriz, que teve sua identidade preservada. Além do mais, a diretora fez questão de dizer que as cenas que mostram a garota nua não são dela mesma, mas de imagens geradas por computador. 

terça-feira, outubro 13, 2020

COZINHAR F*DER MATAR (Cook F**k Kill / Záby Bez Jazyka)



De início, demorei a me acostumar com o filme, até porque os primeiros dois capítulos deste COZINHAR F*DER MATAR (2019) são bastante apressados. E essa pressa passa a impressão de má realização. Essa impressão pode mudar a partir do terceiro capítulo, mais longo, mais lento e mais elaborado, inclusive com uma cena em tons teatrais e câmera estática (a cena do almoço). Cada capítulo apresenta diferentes versões da história errática de um homem com problemas familiares. E todos os capítulos tratam de violência doméstica de maneira, naturalmente, desconfortável. Aos poucos a tragédia e o pessimismo vão tornando o humor (negro) um pouco mais apagado e o filme vai adotando um tom mais sério.

Como a narrativa desta produção checa (e eslovaca) se inicia com um coro grego de mulheres do vilarejo em traje de banho, já se pode imaginar que não faltarão tragédias. Mas depois o filme chega com um tom de comédia, embora dificilmente vá arrancar risadas da plateia. Até porque, logo nos primeiros momentos, o protagonista quer convencer a mãe a passar o apartamento dela para ele (ao que parece, a esposa estaria chantageando o sujeito) e ainda a faz comer uma colher de pasta de amendoim, sendo que ela é alérgica. O resto do capítulo é ainda mais violento, tenso e incômodo, ainda que seja um tipo de violência diferente da vista em filmes de horror e afins. 

COZINHAR F*DER MATAR vai conquistando o interesse (por assim dizer) a partir dos terceiro e quarto capítulos, quando mais informações sobre os personagens nos são fornecidas. Assim, ficamos conhecendo o pai rico do protagonista Jaroslav (Jaroslav Plesl) e um pouco mais sobre a mãe de Blanka (Jazmína Cigánková), sua esposa. O filme vai apostando em situações que podem funcionar como um atrativo para a audiência, como a cena de sexo de Jaroslav com a própria sogra ou as tensões criadas em um supermercado. O choque também surge em uma cena envolvendo uma garotinha e uma rã. Ver também criança com arma na mão é outra coisa que incomoda.

O último capítulo traz uma realidade em que o protagonista é agora uma mulher. E imagina-se que com essa mudança de sexo se poderia mudar um pouco os padrões de comportamento danosos, as falhas de opção e as tendências à violência que surgem de todos os lados. Será?

O filme vem sendo comparado a CORRA, LOLA, CORRA, por razões óbvias, embora possa se pensar em FEITIÇO DO TEMPO também, embora aqui não haja consciência das múltiplas realidades e possibilidades por parte de nenhum dos personagens. E não há leveza. Não que essa fosse intenção da cineasta eslovaca.

segunda-feira, outubro 12, 2020

SUOR (Sweat)



É curioso ver um filme polonês contemporâneo e sentir uma diferença imensa em como se apresenta a sociedade de um país no intervalo de poucas décadas. Aqui vemos um cenário colorido e vibrante, muito distante, por exemplo, da Polônia cinza dos filmes de Kieslowski. O que não quer dizer que tudo seja exatamente feliz quanto se imagina a princípio. Em SUOR (2020), de Magnus von Horn, somos apresentados a uma jovem treinadora de ginástica famosa em seu país e bastante presente nas mídias sociais. Toda essa superficialidade dos dias de Instagram está lá, mas logo somos apresentados ao lado triste da personagem, Sylwia, às camadas por trás da fama, da beleza plástica e da rotina invejada por muitos.

SUOR foi um dos vários filmes selecionados para Cannes 2020, mas que, infelizmente, por causa da pandemia, tiveram que procurar outros meios de serem vistos. Com o selo de aprovação de Cannes (que tem um significado bastante importante), o filme chega agora à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, depois de exibições também na modalidade online em festivais na França, na Alemanha, na Suíça, na Islândia, no Canadá e nos Estados Unidos. O lado positivo desse meio de visualização é que aumenta consideravelmente as chances desses filmes serem vistos por muito mais espectadores.

SUOR é o segundo longa-metragem do sueco von Horn, mas quem brilha mesmo é a atriz, Magdalena Kolesnik, em seu primeiro papel como protagonista. A câmera não tira os olhos dela. Somos convidados a participar de sua intimidade, inclusive quando ela não precisa fingir o sorriso que normalmente usa diante das câmeras. E boa parte das vezes é ela mesma que se filma, fazendo seu shake, desembrulhando uma caixa que chegou com produtos de patrocinadores, ou mesmo desabafando sobre suas angústias. Um vídeo que a mostra chorando e triste por estar sozinha é objeto de repercussão nacional e um de seus patrocinadores chega a reclamar.

Há um momento que é o ponto de virada do filme, que é quando ela descobre um stalker estacionado perto de seu prédio. Incomodada com a situação, até porque o sujeito não é nada discreto na demonstração de sua admiração pela moça, ela conta o ocorrido em uma reunião de família e fica contrariada com a opinião da mãe sobre o sujeito - ele poderia ser uma pessoa boa, ela diz. Mais à frente, uma nova situação fará com que ela novamente reflita sobre a vida fora dos corpos bem definidos das academias e dos holofotes das redes sociais. E por mais que epílogo tenha me parecido frágil, não chega a comprometer o resultado e esse belo estudo de personagem.

quarta-feira, outubro 07, 2020

QUATRO DOCUMENTÁRIOS



Quem está acompanhando as últimas postagens do blog está percebendo que os documentários têm se mostrado mais presentes. Fico pensando se é por que a vida real está me chamando mais atenção ultimamente. E não é por causa do festival É Tudo Verdade, que aconteceu recentemente na modalidade virtual, pois só cheguei a ver um único filme neste festival, que foi o sobre os Paralamas. Como gosto de colocar coisas pessoais nos textos, senti necessidade de falar sobre o doc sobre o Sidney Magal, sobre o Caetano Veloso e sobre os cinéfilos de Nova York - esse último foi o que mais reverberou em mim, que me fez pensar na vida e também no documentário como gênero. Sobre os quatro filmes a seguir, o ideal é que eu falasse sobre eles de maneira mais demorada, mas infelizmente o meu tempo anda curto. Façamos o que é possível, então.

AS MORTES DE DICK JOHNSON (Dick Johnson Is Dead)

Este documentário que estreou recentemente na Netflix muito me fez pensar sobre a finitude da vida, sobre a velhice e, em especial, sobre o quanto é doloroso ver um familiar querido perdendo a memória aos poucos por causa da demência ou do Alzheimer. Kirsten Johnson, a diretora de AS MORTES DE DICK JOHNSON (2020), afirma, logo nos minutos iniciais do filme, sobre o quanto teme o momento em que ela perderá a pessoa que mais ama no mundo, seu pai, o Richard Johnson do título. Então, ela resolve se preparar para esse momento. Seu método é no mínimo curioso: encenar com o próprio pai e com a ajuda de dublês diferentes mortes possíveis para o idoso. O objetivo seria tanto ela quanto o pai se prepararem para a partida. Em alguns momentos, a brincadeira fica na fronteira do mau gosto, mas não deixa de ser bem curioso, especialmente o final. Há vários momentos bem tocantes e tristes que equilibram outros mais bem humorados.

NEVILLE D'ALMEIDA - CRONISTA DA BELEZA E DO CAOS

Neville d'Almeida é um cineasta com quem eu simpatizo bastante já faz alguns anos. Tanto gostava de ver as reprises de seus filmes na televisão, quanto cheguei a locar umas três vezes o VHS de MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA (1991) - por que será?. Mal sabia eu que havia rolado uma confusão em Gramado, quando da exibição deste filme, pois a Cláudia Raia foi uma apoiadora do Collor de Mello e acabou levando vaia junto com a equipe do filme, antes mesmo da exibição. Neville não deixou barato e brigou com o pessoal. Essa e outras histórias são contadas em NEVILLE D'ALMEIDA - CRONISTA DA BELEZA E DO CAOS (2018), de Mario Abbade, que também conta com depoimentos de várias pessoas que se relacionam de alguma forma com o cineasta, como atores e atrizes (Lima Duarte, Regina Casé, Joel Barcellos, Paulo César Pereio, Bruna Linzmeyer, Denise Dumont) e cineastas (Cacá Diegues, Marco Altberg, Cláudio Assis, entre outros). Sonia Braga, pelo visto, ficou sem falar com o diretor por causa do que achou ter sido uma super-exposição em A DAMA DO LOTAÇÃO (1978). As histórias mais interessantes são as que giram em torno de RIO BABILÔNIA (1982), tanto das loucuras das filmagens quanto da batalha para conseguir livrá-lo das garras da censura. Muito legal também tudo que se liga a Nelson Rodrigues, nos bastidores. Fiquei muito interessado nos primeiros trabalhos de Neville, JARDIM DE GUERRA (1970) e MANGUE BANGUE (1971). O primeiro já consegui; o segundo é bem maldito. Vamos ver se acho por aí. No mais, sigo na torcida por novos filmes do cineasta, mesmo sabendo que o cenário não está nada amigável.

OS QUATRO PARALAMAS

Engraçado que na década de 1980 os Paralamas do Sucesso, dentro do cenário das bandas de rock brasileiras, era a minha favorita. Até tive em fita K7 o álbum Big Bang (1989). Depois foi que outras bandas foram ganhando mais a minha simpatia, talvez por que as experimentações com um tipo de som mais brasileiro não me interessavam tanto assim naquele momento. Tanto que voltei a me interessar pela banda quando do retorno pós-acidente, com o excelente Longo Caminho (2002). O documentário OS QUATRO PARALAMAS (2020), de Roberto Berliner e Paschoal Samora, conta a história da banda destacando também a importância de José Fortes, o empresário da banda desde o início, desde quando começou a divulgar fitas demo e a agendar os primeiros shows em locais pequenos. Para o bem e para o mal o filme traz algumas canções inteiras. O videoclipe de "Alagados", por exemplo, é mostrado do início ao fim. Como eu já tinha visto algumas vezes, fiquei um pouco entediado. Como retrato da amizade dos quatro e de uma reflexão sobre a passagem do tempo, o filme é suficientemente forte.

O SAMBA É PRIMO DO JAZZ

Os documentários sobre artistas do cenário musical brasileiro continuam sendo muito bem-vindos. No caso de O SAMBA É PRIMO DO JAZZ (2020), de Angela Zoé, a artista homenageada é Alcione. E pra mim, que nunca fui fã ou mesmo observador da carreira da cantora, foi uma bela surpresa ver todo o seu percurso. Acho interessantes as cenas da atualidade, dos ensaios e da força e da mão-de-ferro de Alcione na condução do seu processo criativo, mas o melhor mesmo pra mim foi ver as imagens de arquivo, com a cantora aparecendo em diferentes visuais, desde a sua juventude. Também não sabia que ela tinha começado a carreira como cantora de jazz nos bares. Tanto que, quando ela foi chamada para gravar o seu primeiro disco, a gravadora estava querendo uma cantora de samba para rivalizar com Clara Nunes e Beth Carvalho, e Alcione falou: "olha, eu não canto samba." Ela acabou sendo convencida e gravou, depois foi se tornando também uma sambista, mas não exclusivamente. Faltou mais emoção ao documentário, mas, mesmo assim, foi bastante enriquecedor.

sábado, outubro 03, 2020

GUERRILHEIROS DAS FILIPINAS (American Guerrilla in the Philippines)



Por mais que a maior flexibilização no distanciamento social tenha me animado um pouco, principalmente agora com a volta do Cinema do Dragão, que está promovendo uma saborosa mostra retrospectiva do Krzysztof Kieslowski, ainda fica aquela sensação de se estar vivendo perigosamente, mesmo cumprindo todos os requisitos de segurança e de distanciamento. De todo modo, está sendo interessante visualizar este mundo meio apocalíptico. Ontem, ao sair do cinema, dois bares no entorno do Dragão estavam funcionando e todas as pessoas estavam lá sem máscara. Então, não sei o que esperar. Ou se podemos nos alegrar por isso. Mas não estou com inspiração nem tempo para falar de nenhum Kieslowski por ora. Quero cumprir com a missão de escrever sobre todos os Langs vistos. Vamos a um de seus trabalhos menos inspirados.

GUERRILHEIROS DAS FILIPINAS (1950) foi feito para pagar as contas, como o próprio Lang dizia. Ele estava precisando de dinheiro, assim como todo profissional. "Até um diretor precisar comer", dizia Lang, quando muitos o perguntavam sobre o motivo de ele ter aceitado fazer este filme. Ele já havia feito quatro filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Na verdade, quatro filmes anti-nazistas. Este aqui seria o quinto, mas abordando o conflito no Pacífico.

Uma coisa que me fez estranhar este drama de guerra foi o fato de ser bem distinto das obras anteriores do cineasta, todas realizadas em estúdio, em fotografia em preto e branco muito bonita e estilizada. Em GUERRILHEIROS DAS FILIPINAS, Lang adota uma fotografia em technicolor um tanto descuidada em comparação até com seus outros trabalhos em cores, nos westerns A VOLTA DE FRANK JAMES (1940) e OS CONQUISTADORES (1941). Nota-se, portanto, um grau muito menor de interesse e de entusiasmo.

Ainda assim, é possível traçar paralelos com outros filmes de Lang que lidam com heróis que lutam contra um inimigo que está em todos os lugares, como nos filmes anti-nazistas O HOMEM QUE QUIS MATAR HITLER (1941), OS CARRASCOS TAMBÉM MORREM (1943), QUANDO DESCERAM AS TREVAS (1944) e O GRANDE SEGREDO (1946). E aqui também o protagonista tenta meios de inteligência para vencer os inimigos, no caso, os japoneses que invadiram as Filipinas. O herói é vivido por Tyrone Power, um dos oito sobreviventes de um bombardeio de aviões japoneses. Eles estavam em um barco a motor. E acabam por desembarcar na ilha, um deles muito ferido, pedindo ajuda aos habitantes em um momento em que o exército americano estava prestes a se render aos japoneses.

O personagem de Power decide, então, fugir para a Austrália, em vez de ser feito prisioneiro. No entanto, a jangada improvisada não vai muito longe e ele acaba retornando e ajudando a resistência. Há um interesse amoroso também, mas acredito que ele mais atrapalha do que ajuda na história. Quando o esposo da mulher morre, fica aquela sensação de "graças a Deus, agora podemos ficar juntos". Nada contra, mas não sei se o público da época pensou nessa situação.

O filme se constrói a partir de episódios, de situações por que passam os soldados americanos, ao se esconder no meio da selva ou a procurar lugares onde possam se ocultar. Há o caso da cirurgia que o protagonista tenta fazer, em vão, por falta de médicos; as formigas nos pés de um deles enquanto o sujeito se esconde na selva de um soldado japonês; o trabalho de guerrilha usando rádio; o dinheiro falsificado que é criado pelos próprios oficiais americanos etc. E há a melhor cena, do ponto de vista gráfico: os soldados americanos armados escondidos dentro da igreja.

Dado o resultado para os padrões do cineasta, é possível entender por que Lang sequer comentou uma linha sobre o filme na entrevista dada a Peter Bogdanovich. Se bem que o próprio entrevistador pode ter preferido não comentar nada a respeito, tendo ele mesmo diminuído a importância da produção.

quinta-feira, outubro 01, 2020

CINEMANIA



Acho que a gente gosta de se olhar no espelho, mesmo quando não nos achamos tão bonitos assim. Ver CINEMANIA (2002), documentário de Angela Christlieb e Stephen Kijak, é como se ver no espelho em alguns momentos. E saber rir do ridículo. Mas estou falando de cinéfilos, não de pessoas normais, por assim dizer. O cinéfilo como uma espécime a ser estudada, mas com todo o carinho. É assim que o filme de apenas 83 minutos (podia ser maior) se propõe (ou se revela). Por mais que deixe um gosto um tanto amargo com relação ao estilo de vida solitário e obsessivo-compulsivo dos personagens, não quer dizer que eles sejam infelizes.

O filme apresenta cinco cinéfilos bem diferentes que moram em Nova York, uma cidade excelente para quem gosta de variedade de filmes. O primeiro apresentado é justamente o mais interessante, Jack, que já começa dizendo que teme perder as estreias e por isso muitas vezes chega a ver quatro ou cinco filmes por dia. “Toda minha vida gira ao redor disso”, ele diz.

Já Bill é um sujeito que tem um gosto maior por filmes de relacionamentos. E pelo cinema francês pós-Nouvelle Vague. Segundo Bill, “filme é um substituto para a vida, é uma forma de vida”. É engraçado vê-lo se preparando para as sessões, a pouca importância que dá à alimentação, as preocupações em estar sempre o mais confortável possível em uma sessão, a fim de ter a melhor experiência fílmica.

Harvey é talvez o menos marcante dos personagens. Mas ele é ótimo em memorizar as durações dos filmes e tem uma bela coleção de trilhas sonoras em vinil. Já Eric tem uma preferência por filmes clássicos e não tem muita paciência para filmes mais cabeçudos, como os de Alain Resnais. Roberta, como a única mulher dos cinco, é talvez a mais excêntrica. Talvez por ter adquirido o hábito de acumular papel, o que muito me lembrou o Seu Wilson Baltazar, meu amigo parceiro de cinema que faleceu neste ano com a vinda do Corona Vírus.

Assim como Bill, eu também quero estar totalmente confortável durante a sessão. E muitas vezes compro analgésicos quando estou sentindo alguma dor no corpo. Ou café para não ficar com sono. Assim como Bill, deixo de frequentar alguns espaços que têm a projeção ruim. Tenho essa coisa meio preciosista, querendo que o cinema ofereça o seu melhor para a apreciação da obra.

Quanto ao amor pelas estrelas do cinema, curiosamente nesta semana surgiu uma brincadeira no Facebook com a pergunta "com qual personagem do cinema você desejaria transar?". Eu fiz uma lista generosa. Copiando aqui. “Grace Kelly em LADRÃO DE CASACA. Ou Jean Seberg em ACOSSADO. Ou Natalie Wood em ESTA MULHER É PROIBIDA. Ou Sharon Stone em INSTINTO SELVAGEM. Ou Demi Moore em SOBRE ONTEM À NOITE. Ou Jennifer Connelly em AMOR MAIOR QUE A VIDA. Ou Emmanuelle Seigner em LUA DE FEL. Ou Ludivine Sagnier em SWIMMING POOL. Ou Denise Dumont em EROS - O DEUS DO AMOR. Ou Claudia Cardinale em O LEOPARDO. Ou...”

Claro que isso tudo é uma brincadeira, mas um dos personagens fala algo que se deve levar muito a sério, que é a questão do padrão que ele cria de beleza. Jack chega a dizer que, ao sair da sessão de A DAMA DE SHANGHAI, de Orson Welles, fantasiou com a Rita Hayworth. Mas com a personagem em preto e branco, uma espécie de fetiche. Por isso acho Jack o personagem mais interessante, por expor isso de maneira aberta, inclusive quando fala de seu fracasso sexual.

Uma coisa que fez eu me identificar muito com Jack foi vê-lo falando de sua lista de filmes anotados em seu caderninho. E de como a memória de cada filme também traz a lembrança das circunstâncias de cada momento da vida, dos problemas românticos etc. É Jack também que fala da questão do choro, do quanto chorou quando viu OS GUARDA-CHUVAS DO AMOR, de Jacques Demy, algo que também aconteceu comigo de maneira muito intensa.

Enfim, haveria muito o que falar sobre o filme, mas, quem se identificou de alguma maneira, deixo essa bela recomendação. Foi algo que me fez ganhar o dia. Quase me esqueci dos problemas.