sexta-feira, outubro 30, 2020

MALMKROG



De vez em quando surge um filme que funde a nossa cabeça. Mas de maneira boa, eu diria. MALMKROG (2020), do romeno Cristi Puiu, não tem pena de seus espectadores. Em suas três horas e vinte minutos de duração mal temos tempo de respirar diante de tantas discussões acerca de vários assuntos, analisados de maneira profunda, na maior parte das vezes, ou de maneira que irá denunciar a perversidade de seu locutor, como é o caso de um deles quando diz que se for preciso que a Europa tenha que massacrar os africanos para a manutenção de suas riquezas, que assim o faça.

MALMKROG, se não for o melhor filme da Mostra, é certamente um dos. O problema é que é um filme de difícil penetração, pela quantidade absurda de cultura, filosofia, teologia e História que é discutida entre cinco pessoas ricas na Rússia do século XIX, mais especificamente na Transilvânia, que na época fazia parte da Rússia. A região tem um longo histórico de invasão de povos (romanos, búlgaros, húngaros, entre outros) e de mudança de fronteiras. Hoje faz parte da Romênia.

Questões fascinantes são discutidas em língua francesa (as outras línguas são usadas para eles falarem entre si ou com os criados). Diria que se fosse um livro seria aquele livro que a gente pintaria com pincéis marcadores inúmeras passagens, mesmo aqueles trechos que representariam uma opinião absurda e preconceituosa, justamente como exemplo do pensamento das elites. Mas como é cinema, também precisamos prestar atenção no que está no quadro e até no que não está, nas escolhas do diretor daquilo que devemos ou não ver. E é impressionante o modo como ele coloca em cena cada personagem, com obsessivo cuidado, como se fossem peças de um jogo de xadrez. Puiu afirmou que usa pinturas como referência e não filmes. Isso justifica o lindo desenho de produção.

Na longa e lenta, mas não desagradável (longe disso!), metragem do filme, somos convidados a refletir sobre a guerra, a morte, Deus, o Cristianismo, o bem e o mal e, no final, até sobre o Anticristo. Por mais que seja uma experiência atordoante acompanhar esse jogo de retórica, não deixa de ser espantoso. Lembrei-me da experiência de ver WAKING LIFE, de Richard Linklater, em que o diretor americano nos joga montes de discussões filosóficas em um só pacote. E discussões que fazem o coração bater mais forte e a mente procurar se afiar para dar conta das informações e ao mesmo tempo refletir um pouco. Por isso, MALKROG é um filme que se beneficiaria bastante de uma revisão. De preferência na telona.

O filme é baseado nos escritos de um dos maiores filósofos da Rússia, Vladimir Sloviov. Sua obra se chama “Os Três Diálogos e o Relato do Anticristo” (não sei dizer se é inédita no Brasil). E Puiu prefere mostrar as discussões presentes nesses escritos na boca de seus cinco personagens principais: dois homens (Nikolai, um rico senhorio e ex-seminarista, e Edouard, um homem de negócios) e três mulheres (Olga, a mais jovem do grupo e que tem opiniões mais cheias de amor e considerada ingênua pelos demais; Ingrida, a esposa de um general russo e ardente defensora da guerra; e Madeleine, uma intelectual fria.) Cada um deles dá nome a um capítulo do filme. O outro capítulo, menor, recebe o nome do mordomo da casa.

Há quem se pergunte se o cinema é um meio apropriado para tratar de questões tão profundas e apresentar um filme desse tipo. Por que não seria? Se for de tão alto nível quanto é MALKROG, então, que oferece um deleite visual mesmo quando estamos perdidos na conversa, aí é que é bem-vindo mesmo. Há quem vá estranhar o quanto as discussões teológicas chegam a superar as discussões políticas, mas, certamente, isso faz parte da essência do texto de Sloviov.

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