sábado, outubro 31, 2020

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS



Em O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS (2020) vemos algo parecido com uma boneca russa em se tratando de criadores. Há o filme de João Botelho, que é baseado no romance de José Saramago, que conta a história envolvendo o poeta Fernando Pessoa, que por sua vez criou o heterônimo Ricardo Reis, o poeta das odes, de estilo clássico, e ganhou uma data de nascimento, mas não ganhou uma data de morte, como Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, seus outros dois heterônimos mais famosos. E Saramago, dono de ideias geniais, teve a feliz ideia de contar a história deste homem, médico e simpatizante da monarquia, que fugiu para o Brasil quando se instalou a república em Portugal.

O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance lançado em 1984, foi um dos livros que li na virada do ano passado para este, muito devagarinho, finalizando finalmente já no período inicial da pandemia. Não achei o livro dos mais fáceis de Saramago. Está na categoria dos mais áridos, ao lado de História do Cerco de Lisboa (1989). O autor se permite cada vez mais se deixar levar por abstrações, entrando na mente de seu protagonista e viajando em seu fluxo de consciência, ao mesmo tempo que também nos oferece um panorama do cenário político que se apresentava naquele ano de 1936, com a ascensão do nazismo e do facismo.

O recurso do fluxo de consciência é um pouco mais complicado para se fazer na adaptação para o cinema, especialmente quando não se adota uma narração em voice-over. João Botelho opta por contar tudo com imagens e com os diálogos de seus personagens. E que imagens! O diretor de fotografia João Ribeiro é colaborador de Botelho em outros trabalhos. E aqui ele obtém resultados esplendorosos no uso de luz e sombra com o preto e branco luminoso adotado. É talvez o elemento que mais nos seduz neste filme. 

A história se inicia com o retorno de Ricardo Reis a Portugal, após um período de 16 anos morando e trabalhando no Brasil. Quando ele chega, fica sabendo da notícia da morte de Fernando Pessoa, seu amigo e grande poeta, ainda que menos popular do que se tornaria com o passar dos anos. Como os encontros de Ricardo com o fantasma de Fernando estão entre os pontos altos do livro, o filme procura destacar esse elemento como o mais importante. Talvez traia um pouco a obra, desequilibrando-a, mas oferece um olhar mais existencialista sobre a vida e a morte. O tom fantasmagórico fica mais acentuado. 

Por outro lado, um dos momentos mais empolgantes do romance, que é a viagem de Ricardo Reis a Fátima para talvez encontrar o seu amor, a menina Marcenda (Victoria Guerra), é filmado de maneira rápida e desinteressante. O que é uma pena. Os relacionamentos de Ricardo Reis com as duas mulheres que conhece no hotel em que se hospeda recebem destaque mas carecem um pouco de força dramática. De todo modo, de maneira racional percebemos o embate entre o amor romântico e quase platônico por Marcenda e o amor mais carnal por Lídia, interpretada por Catarina Wallenstein, que brilha com seu sex appeal - ela pôde ser vista recentemente em UM ANIMAL AMARELO, de Felipe Bragança, integrante da mostra competitiva do Festival de Gramado.

E quase esqueço de mencionar Chico Diaz, uma escolha audaciosa do diretor para viver Ricardo Reis. A princípio, fiquei achando que ele não combinava muito com a imagem de um português, mas depois vemos o quanto o ator brasileiro se sai bem. Além do mais, o próprio Fernando Pessoa, vivido por Luís Lima Barreto, tem um tipo físico bem distinto da magreza do poeta português. Ou seja, o diretor não tinha a intenção de se aproximar da realidade física.

Não foi a primeira vez que João Botelho trouxe para o cinema Fernando Pessoa e seus heterônimos. Em FILME DO DESASSOSSEGO (2010), ele adapta a prosa poética de Bernardo Soares, o que deve ser uma tarefa ainda mais difícil do que a de adaptar um romance. Por outro lado, deve ser mais livre, pois o trabalho maior é de adaptar as ideias, os pensamentos e os sentimentos. Em O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS é diferente: há a preocupação de se contar uma história, uma linha narrativa, por mais que o caminho para contá-la dependa da criatividade do diretor e roteirista.

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