Quando a pandemia começou e todos ficamos em nossos lares trabalhando em home office e apreensivos com o que estava ocorrendo no mundo, Abel Ferrara foi o cineasta que eu escolhi para fazer a minha primeira peregrinação do ano. Sempre foi um diretor de meu interesse, mas por algum motivo eu desconhecia várias de suas obras. E felizmente hoje em dia é muito mais fácil de se conseguir as mais diversas obras de cada diretor que queiramos estudar.
Por isso ver SPORTIN' LIFE (2020) foi tão poderoso pra mim, já que une as obsessões de Ferrara e o tom apocalíptico dos dias de hoje, com o advento do Corona Vírus. O filme conta com imagens do Festival de Berlim, em fevereiro deste ano, quando o diretor foi apresentar SIBÉRIA (2020), e já mostra o clima de apreensão que se instalava pela Europa. Aos poucos o filme vai mostrando cenas da tragédia de nosso tempo, além de também encerrar destacando os protestos ocorridos após a morte de George Floyd, como se apontando para um futuro ao mesmo tempo de muita luta e de busca por justiça.
Ferrara entrecorta esses momentos de 2020 com cenas de vários de seus filmes, vários que dialogam com o momento atual, seja por apresentar uma atmosfera sombria, seja por trazer falas que parecem feitas para este instante. O cineasta já havia feito um filme sobre o fim do mundo, 4:44 - O FIM DO MUNDO (2011), estrelado por Willem Dafoe, seu maior parceiro.
Aliás, Dafoe, que está morando na Itália há alguns anos, é quase um protagonista deste documentário. Está quase sempre com Ferrara durante as coletivas de imprensa. E é engraçado como o diretor deixa tudo muito informal nessas entrevistas, como quando ele passa a resposta para o diretor de fotografia Stefano Falivene, seu colaborador eventual desde MARIA (2005); ou quando ele pede para o entrevistador repetir a pergunta, de modo que ele possa filmá-lo com a câmera de seu celular. Há esse interesse pelas novas tecnologias. Isso, na verdade, já existia desde seu namoro com o vídeo, na década de 1990, em filmes como OLHOS DE SERPENTE (1993) e BLACKOUT (1997).
Ferrara também é o cineasta rebelde que traz o espírito rock'n'roll para seus filmes. No caso de seus documentários, ele aproveita para apresentar o trabalho de sua banda, suas composições, como havia feito em NAPOLI, NAPOLI, NAPOLI (2009). A diferença aqui é que tudo parece mais jazzístico na montagem. Inclusive, há quem vá achar tudo uma bagunça sem muito critério. O diretor diz que o que está fazendo é um documentário sobre fazer um documentário e não sobre seus filmes. De todo modo, essa liberdade é contagiante.
O filme talvez não desperte o mesmo entusiasmo em pessoas que não tem alguma intimidade com a obra do cineasta, já que há diversas referências, diversos hipertextos. Mas não duvido que alguém, por algum acidente do destino, seja apresentado ao diretor com este filme e então decida se aventurar pelo seu trabalho. Quem sabe?
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