A mostra de São Paulo deste ano, com o formato quase que totalmente online, está possibilitando milhares de pessoas acessarem uma programação de filmes que não seria possível, a não ser gastando muito dinheiro - falo especificamente das pessoas que não moram em São Paulo, como eu. E está sendo muito gostoso ver os filmes em qualidade de imagem excelente - eles usam uma ótima plataforma. E ainda que eu não esteja tendo tanto tempo para me dedicar aos filmes como gostaria, os títulos vão se acumulando. e Alguns dos filmes receberão mais atenção que outros em títulos futuros, mas, para não perder muito tempo, falemos rapidamente de alguns filmes vistos.
17 QUADRAS (17 Blocks)
Curioso como documentários, especialmente estes que tratam de dramas familiares ocorridos em um longo intervalo de tempo, também nos fazem criar elos de simpatia e antipatia com os personagens, como acontece em obras de ficção. Afinal, é o que ocorre na vida real. Essa relação espectador-obra se torna importante para que o drama apresentado seja não só aceito mas principalmente ganhe nossa solidariedade. Nesse sentido, por exemplo, a personagem da mãe Cheryl não me despertou tanto esse sentimento, mas fiquei especialmente tocado com as dificuldades de Smurf, o irmão mais novo dos três, e que carrega sentimentos de culpa pelo ocorrido com o irmão mais velho. É o tipo de documentário que não trata apenas de vícios e superações, mas de todo um sistema social falho. O fato de fazer menção à distância da casa onde tudo se inicia para o Capitólio deixa isso bem claro e abre espaço para várias discussões. Direção: Davy Rothbart. Ano: 2019.
KUBRICK POR KUBRICK (Kubrick by Kubrick)
A estrutura não é muito diferente da de vários outros documentários que tratam da obra de cineastas. No caso deste aqui, o que há de diferente são os trechos das entrevistas que Stanley Kubrick deu ao crítico Michel Ciment, talvez o único sujeito que teve a honra de ter acesso a entrevistas com o realizador. O problema é que as obras de Kubrick são tão densas que simplesmente passar por elas acaba tornando o tema um pouco raso. Só de 2001 - UMA ODISSEIA NO ESPAÇO (1968) caberia um filme de muitas e muitas horas. Senti falta de sequer mencionarem obras do início da carreira, como A MORTE PASSOU POR PERTO (1955) e O GRANDE GOLPE (1956). Mas gosto de ver as entrevistas com pessoas que trabalharam com Kubrick e algumas delas se mostraram bastante traumatizadas com a experiência. E olha que a Shelley Duvall foi bem boazinha e não contou nada de ruim dos bastidores de O ILUMINADO (1980). Por outro lado, Malcolm McDowell sofreu pra caramba nas filmagens de LARANJA MECÂNICA (1971). Fisicamente, inclusive. E disso eu não sabia. Direção: Gregory Monro. Ano: 2020.
LIMIAR (Threshold)
O filme começa com "Ave Maria" de Haendel, para dar aquele ar solene. O que me agrada, inclusive para ver um filme pela manhã. No entanto, o que a dupla de diretores faz é só filmar algumas regiões mais desertas da Armênia e vender o filme como um produto de arte, experimental, livre. Há também cenas que me parecem mais interessantes, como o contato com pessoas da região, para mostrar aspectos de sua cultura (culinária, música etc.), mas é como se tudo fosse em vão na tentativa de nos colocar em uma experiência quase mística. Não rolou pra mim de jeito nenhum. Direção: Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson. Ano: 2020.
APENAS MORTAIS (Being Mortal)
O filme acompanha uma jovem solteira cujo pai sofre de Alzheimer e depois passa a apresentar outros problemas de saúde. O filme é centrado mais na reação e na luta da jovem diante das dificuldades do pai e também da mãe, do que no sofrimento do pai em si, em sua decadência física e mental, embora tudo seja quase explícito no que se refere à perda da própria dignidade quando a saúde falta. Durante o filme lembrei de A BALADA DE NARAYAMA, de Shohei Imamura, sobre um fim para os idosos. Aqui o diretor trata de uma realidade muito presente na atual China, que é a alta quantidade de idosos e também o alto de número de pessoas com demência/Alzheimer, além de alfinetar um pouco o sistema de saúde do país. Direção: Liu Ze. Ano: 2020.
NOVA ORDEM (Nuevo Orden)
Talvez o meu entusiasmo na primeira meia hora de filme tenha sido mais uma falha minha do que da obra de Michel Franco em si. Afinal, o que imaginamos ser um ataque rebelde vigoroso contra os ricos para a quebra de uma estrutura de poder cruel e desigual, acaba se revelando uma entrada em uma situação muito pior, com estupros, torturas, sequestros e assassinatos. Não vejo o filme como a obra polêmica que querem vendê-la. Pensava em Haneke e até em Noé como parâmetros, mas o cineasta mexicano não tem o mesmo talento de seus colegas provocadores. De todo modo, não deixa de ser um filme com uma cara parecida com este mundo distópico em que estamos vivendo. Ano: 2020.
O SÉCULO 20 (The Twentieth Century)
Alguns filmes têm um poder de me irritar impressionante. E embora eu tenha me atraído para esta obra não apenas por indicações, mas por ter algo de lynchiano (e de fato tem), a experiência não foi das mais agradáveis. Acredito que um pouco de conhecimento da História do Canadá ajudaria a curtir o filme no aspecto mais racional, mas mesmo dentro da razão demorei a apreciar o que há de singular no filme, que está basicamente em sua forma e em sua estranheza, vinda ou não do universo queer. O filme acompanha a trajetória de W.L. Mackenzie King em sua juventude. King foi Primeiro Ministro do Canadá por três vezes. O SÉCULO 20 usa imagem granulada, cores esmaecidas, cenário artificial e divisão por capítulos. Direção: Matthew Rankin. Ano: 2019.
CORONATION
A ideia me parece melhor do que o resultado neste documentário filmado remotamente e às escondidas do governo chinês, já que tece diversas críticas às ações da China para conter o vírus na sua fase inicial e o modo como algumas pessoas são tratadas quando chegam para receber as cinzas de seus entes queridos. Aliás, essa é a parte final do filme, que é a mais interessante. Acho também interessante a conversa com uma senhora bastante defensora do partido comunista chinês e muito crítica de quem sai do país para gastar dinheiro no exterior. Embora haja momentos bem dolorosos, não é um filme tão exploratório das desgraças do país durante a pandemia. Ele explora mais isso ao mostrar o lockdown em uma Wuhan congelada. Direção: Ai Weiwei. Ano: 2020.
OS NOMES DAS FLORES (Los Nombres de las Flores)
O tom de narrativa fabular que o filme dá a entender no início é até convidativo, atraente e simpático. A história de uma senhora que diz ter preparado uma sopa para Che Guevara no dia de sua execução e o lendário homem teria lhe oferecido um poema e uma flor. O filme vai se tornando desinteressante, não apenas pela narrativa um tanto arrastada, mas pela dificuldade que eu tive de me solidarizar com a senhora que teima em desobedecer as ordens dos militares que acreditam ser falsa a sua história. Há coisas interessantes do ponto de vista antropológico e também um visual deslumbrante da região rural da Bolívia, mas não consegui ver mais do que isto. Direção: Bahman Tavoosi. Ano: 2019.
Nenhum comentário:
Postar um comentário