quarta-feira, janeiro 31, 2024

27 CURTAS E UM MÉDIA-METRAGEM BRASILEIROS



Tem sido no mês de janeiro de cada ano que vejo mais curtas-metragens brasileiros. Isso acontece geralmente por ocasião da curadoria de duas associações de críticos, a ABRACCINE e a ACECCINE, de que faço parte. Faço o possível para conseguir dar conta de ver todos e não me contento em apenas ver: quero também escrever pelo menos um parágrafo que seja, no calor do momento. Estes foram os pequenos textos que escrevi ao longo do mês sobre os 28 filmes vistos. Uma boa safra.

AMOR BY NIGHT

Em se tratando de um filme que envolve uma rádio, eu diria que me falta sintonia para que possa compreender melhor o que o filme diz, inclusive compreender o áudio mesmo. Talvez tenha ficado um pouco surdo ao longo dos anos. Mas é inegável a beleza da direção de arte e da fotografia de AMOR BY NIGHT (2022), de Henrique Arruda, com tantos tons de cores, especialmente o verde, que mais remete à ficção científica, de encher os olhos. Na trama, uma locutora espacial vive uma vida dentro de uma cápsula, num futuro não especificado. A personagem tem uma ligação visual com a sci-fi retrô, com a tecnologia musical antiga e com a disco. Enquanto isso, o filme aos poucos nos apresenta às tristezas que ela parece querer negar ou evitar.

OS ANIMAIS MAIS FOFOS E ENGRAÇADOS DO MUNDO

Neste curta somos apresentados a um homem de cerca de 70 anos que trabalha como camareiro de um motel. Seu diferencial é que ele gosta de gravar áudios dos momentos íntimos dos clientes. Ele vende os áudios para um conhecido, que se excita com os sons. Além disso, o funcionário do motel sabe vender o produto. Acho interessantes esses filmes que exploram os desejos mais íntimos e taras bem peculiares das pessoas. Pena que este aqui eu vi com mais distanciamento, o que não quer dizer que tenha sido ruim. Até porque OS ANIMAIS MAIS FOFOS E ENGRAÇADOS DO MUNDO (2023), de Renato Sircilli, carrega um clima de suspense e de algo inesperado até o final.

CABANA

Um trabalho admirável este curta que se passa quase que inteiramente dentro de uma cabana e que chama a atenção quando percebemos que não há som nenhum. A voz das duas mulheres é substituída por legendas e a situação que é apresentada faz lembrar o Brasil escravocrata do século XIX. Por outro lado, a pessoa que surge é guerrilheira da revolução cubana, e há uma situação delicada e perigosa. A conversa entre as duas mulheres é tensa, e o forte está na expressividade das duas atrizes, cujas reações enfatizam a sensação de perigo. Incrível o uso da iluminação e das sombras no local.

CASA DE BONECAS

Creio que seja o caso de filme em que se embarca ou não na viagem. Há a questão de atrair em especial o público LGBTQIA+, mas eu diria que a essência de CASA DE BONECAS (2023), de George Pedrosa, pelo menos visualmente falando, é explorar o seu aspecto de pesadelo, de construção de um mundo em cor de rosa e com um misto de homens, animais e peças de metal. Não sei se entendi, mas a própria sinopse oficial já deixa o filme em aberto: "Nós, três profetas imateriais de rosa, que seduzem com corpos brilhantes e desejos sombrios, sempre estaremos dentro do coração um do outro. Dia após dia, nós mudamos e ficamos muito mais fortes."

CAMA VAZIA

Belo, incômodo, raivoso e lúcido curta que traz reflexões sobre o quanto a ciência tem prolongado não necessariamente a vida, mas o sofrimento do idoso doente ou simplesmente do doente. Consequentemente, os hospitais lucram mais, assim como os profissionais de medicina envolvidos. Corajoso o texto falado por Bernadet, que na época da rodagem foi hospitalizado e, junto com Rogério, decidiram fazer esse filme com um custo quase zero. CAMA VAZIA (2023), de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernadet, é uma dessas obras para se deixar um gosto amargo na boca. Se acontece isso vendo-o em casa, imagina numa sala cheia de festival.

A EDIÇÃO DO NORDESTE

Filme de edição, como já dá a entender pelo título. A tela preta com informações nos anuncia sobre o ano da criação do conceito do nordeste (1919), da separação por regiões (1941) e em seguida houve a criação do nordeste pela elite, sendo que o cinema teve um papel importante. A EDIÇÃO DO NORDESTE (2023), de Pedro Fiuza, não cita em palavras, mas mostra também a importância da literatura (Jorge Amado, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, José Lins do Rego etc.), que veio antes do cinema para ajudar a trazer essa ideia que mais buscou colocar cada pessoa nascida na região no mesmo saco. O filme tem uma montagem ótima, separando por temas: o cangaço, a seca, o êxodo rural, o recomeço de uma nova vida no Sudeste etc. É gostoso ver os tantos clássicos dialogando entre si dentro desses temas.

CAIXA PRETA

Um filme que necessita de duas coisas: 1) uma entrega do espectador para que entre na viagem proposta e se veja em transe; e 2) um pouco de informação extra que possa auxiliar na compreensão de certas cenas, certos áudios. Acredito que o momento de que mais gostei foi do áudio mais longo, com a tela toda preta. Podemos tirar os olhos da tela e nos concentrar no som. Já a cena do culto evangélico com influências africanas bem acentuadas, achei interessante, mas não sei se a intenção de vê-lo é de observação ou para entrar em transe, como muitos dos crentes no vídeo. É corajoso da parte dos diretores Saskia e Bernardo Oliveira fazerem um filme tão experimental com cerca de 50 minutos, já que o média-metragem é o mais marginal dos formatos, embora possa conseguir uma ou outra sessão num cinema alternativo. (Se bem que, justamente por causa de suas peculiaridades, ele acaba chamando a atenção de um grupo de cinéfilos.) CAIXA PRETA (2022) é um filme que busca a violência estética como forma de enfrentar a violência e o racismo e de certa forma consegue, mas a questão é: vai chegar aos herdeiros dos senhores de engenho?

CÉU

A simplicidade deste documentário carrega desde o início uma interrogação quanto à pessoa que é citada, elogiada e louvada por suas companheiras, louceiras na Comunidade Quilombola Serra do Talhado Urbano, em Santa Luzia, interior da Paraíba. Como não sabia nada sobre Maria do Céu, CÉU (2022), de Valtyennya Pires, acabou me surpreendendo e me comovendo. Infelizmente vivemos ainda numa sociedade doente e que deve levar um bom tempo para ser curada, se é que isso vai acontecer. E o símbolo de Céu, como uma flor num vaso, como aparece no cartaz, é representativo do que há de bom e belo neste mundo.

PROCURO TEU AUXÍLIO PARA ENTERRAR UM HOMEM

Este filme de Anderson Bardot já me ganhou pelas primeiras imagens, com um preto e branco muito expressivo. Mas há algo de misterioso e cruel que também muito me chama a atenção, embora tenha achado a trama confusa. De certa forma é um convite para rever o filme, que recebemos com muito prazer. Se o visual salta aos olhos, também impressionam as cenas envolvendo rituais desesperados de bruxas. Há um simbolismo envolvendo a opressão à transexualidade, mas o filme parece transcender a militância, sem, no entanto, deixá-la de lado. Em alguns momentos, PROCURO TEU AUXÍLIO PARA ENTERRAR UM HOMEM (2023) me fez lembrar É DIFÍCIL SER UM DEUS, de Aleksei German, pela riqueza plástica, mas também pela crueldade e atmosfera mitológica de certas cenas.



CORAÇÃO DA MATA

Na cidade de Nazaré da Mata, no interior de Pernambuco, um grupo de mulheres se prepara para festejar o primeiro maracatu rural 100% feminino, com as mulheres desempenhando os papéis, inclusive, dos reis e dos caciques. Uma das coisas mais bonitas de CORAÇÃO DA MATA (2022), de Camila Martins, nem está no maracutu, na festa em si, que só aparece praticamente no final, mas no modo como a câmera adentra as casas humildes dessas pessoas, flagrando as crianças comendo ou tomando banho, a relação de afeto com os bichos, a decoração muito simples, as paredes precisando de uma mão de tinta, a rotina de ir e voltar da escola, de visitar as amigas, de conversar com uma mulher idosa, de perceber o quanto a pobreza também tem uma ligação com a escolaridade, que muito provavelmente tem relação com a má alimentação, embora esse tema não seja tratado aqui.

ELA MORA LOGO ALI

Muito bom ver que o cinema brasileiro está mostrando mais sua cara, sendo mais plural também no que se refere a apresentar pessoas de estados do país que são normalmente pouco vistos. Em ELA MORA LOGO ALI (2023), de Fabiano Barros e Rafael Rogante, temos a chance de ver a história de uma mulher simples de Rondônia que passa o dia vendendo chips na rua e quando volta para casa cuida com carinho do filho com deficiência. Mas o mais interessante da narrativa é a relação que ela estabelece com uma moça que está lendo muito entretida e feliz um livro no ônibus. A mulher, que não sabe ler, fica admirada com o poder que aquelas palavras fazem e puxa conversa; a moça começa a contar a história do livro, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. O filme passa a seguir uma estrutura que lembra um pouco As Mil e uma Noites, já que o filho fica feliz sempre que a mãe traz um pouco da história do romance, que a moça contara para ela. O final me fez lembrar minha própria relação com a descoberta da leitura, uma das minhas memórias mais remotas da infância. Acredito que este filme seria ótimo se exibido em escolas, especialmente as que trabalham com educação de jovens e adultos.

O CAVALO DE PEDRO

Pra quem gostou de VENTO SECO (2020), O CAVALO DE PEDRO (2023) tem um gostinho parecido do longa do mesmo diretor, Daniel Nolasco. E isso é muito legal. Mas é preciso tirar as crianças da sala. Há o humor desavergonhado, o brincar com a exploração dos corpos masculinos pela visão do desejo da câmera, o sarro que tira com a masculinidade até de uma personalidade famosa por ser mulherenga, como é o caso de D. Pedro I, e há o sexo explícito. Pois é, quando achei que o filme ia acabar lá vem aquela cena para maiores de 18 anos. É interessante como o cinema gay masculino tem se tornado mais ousado do ponto de vista da sexualidade quase na mesma proporção que o cinema hétero foi ficando mais tímido. No mais, O CAVALO DE PEDRO tem um rigor formal que chama a atenção, além de um belíssimo uso de cores.

PULMÃO DE PEDRA

O que faz de PULMÃO DE PEDRA (2022), de Torquato Joel, um filme que ultrapassa o registro mais convencional de um documentário sobre um garimpeiro que sabe que tem uma vida curta pela inalação da poeira de seu próprio trabalho é o modo inventivo como a câmera cria as imagens da caverna, que coincidem ou brincam com a própria criatividade do personagem retratado, Joãozinho, um homem com alma de poeta. É um filme que tem mais pedra do que homem, mas talvez isso represente o quão pequeno é o homem para a natureza, até mesmo o homem rico que emprega o pobre que trabalha no garimpo.

QUEBRA PANELA

Eu já tenho uma boa vontade natural quando vejo que o filme é pernambucano. Já vi tanta coisa boa produzida nesse estado que já crio uma boa expectativa. Este QUEBRA PANELA (2022), de Rafael Anaroli, é muito inventivo, brinca com o fazer cinema através do olhar de quem está de fora. No caso, uma senhora muito humilde que vive de fazer as unhas das pessoas do bairro. Acontece que na sua rua estão filmando uma produção para cinema. E a ordem na vizinhança é que os locais colaborem nos momentos das filmagens. O filme tem umas tiradas muito interessantes, brincadeiras metalinguísticas como na cena da menina olhando o quadro. Há também um motivo de se estar feliz com os astros e estrelas que foram se formando em Pernambuco e no Brasil, como é o caso de Irandhir Santos, que é apenas citado, mas também visualizado na busca do celular da protagonista.

MOVENTES

Gosto do efeito de imagens bem pensadas (a janela clássica é muito bonita) aliadas a uma narração lírica. MOVENTES (2023), de Jefferson Cabral, é curtinho: na hora que a gente tá criando gosto o filme acaba. Mas falo isso como elogio. As imagens são límpidas, e lembram às vezes o cinema clássico japonês (talvez por causa do pequeno altar), noutras, há imagens que causam certa angústia, como a visão em tons azuis da pessoa que olha para a praia. Enquanto isso, na fala do patriarca que se muda para São Paulo, há algo que desperta um sentimento que faz lembrar ARÁBIA, aquele sentimento de pensar uma pequena revolução aproveitando momentos de greve de grupos de trabalhadores.

REMENDO

Este filme passou por Roterdã e venceu o prêmio de melhor curta em Gramado. Chamou a atenção entre críticos e cinéfilos. Achei inventivo o modo como lida com a comunicação, que por vezes é contemporâneo, mas às vezes remete ao passado analógico. Aliás, as fotos antigas e em preto e branco que de vez em quando aparecem quando certo personagem é citado é outro detalhe interessante, assim como a paquera com o cinema de horror – o protagonista parece uma espécie de vampiro, dentro daquele lugar onde dorme, e há outras passagens bem intrigantes. Na sinopse de REMENDO (2023), de Roger Ghil, Zé é um homem preto de meia idade que procura amor. Aí ele conhece uma mulher que se muda para o prédio de sua mãe. Não que esse aspecto narrativo mais convencional seja algo que o filme pareça se interessar tanto assim.

RAMAL

Tive certa dificuldade com RAMAL (2023), de Higor Gomes, embora o ache plasticamente bem bonito, além de dar voz a pessoas da periferia. Acontece que quando vejo esses garotos andando de motocicleta empinada já fico logo irritado. Talvez por simbolizar um tipo desnecessário de correr perigo e de se divertir. E ainda podem bater num carro ou em alguma pessoa. O engraçado é que no começo eu achei que o filme ia fazer algum tipo de crítica à masculinidade dos personagens, mas não se trata disso. E de certa forma isso é bom, já que o cinema é um meio que mais abraça do que julga. O filme caiu nas graças da crítica, ganhando prêmios em festivais importantes, como o de Curitiba e o de Vitória.

MÃRI HI – A ÁRVORE DO SONHO

Este filme de Morzaniel Ɨramari é um encanto desde as primeiras imagens ao som da fala de um yanomami, que só será visto ao final do filme. As palavras têm uma doçura natural, mas o que mais encantam são as imagens, muitas delas buscando reproduzir os sonhos daquele povo. E para isso o cineasta yanomami busca técnicas muito interessantes para trazer essa impressão onírica, como nas cenas de clarão das imagens da floresta. Há uma espécie de barreira que impede que vejamos mais desse povo, de sua cultura e de seu modo de pensar o mundo. E vejo isso como algo que depõe a favor de MÃRI HI – A ÁRVORE DO SONHO (2023), algo que o torna misteriosamente atraente.

A ALMA DAS COISAS

Certos documentários (a maioria, provavelmente) são vistos com um olhar de distanciamento, mas um olhar de curiosidade, especialmente quando seu objeto de estudo passa a chamar a atenção do espectador. Não sou um entusiasta do carnaval carioca, por exemplo, dos desfiles das escolas de samba. Por isso, fiquei surpreso quando os diretores de A ALMA DAS COISAS (2023), de Douglas Soares e Felipe Herzog, começaram a me deixar muito intrigado com este curta, que mostra o começo da criação de um personagem central de uma escola de samba, passando por várias etapas, inclusive a apresentação na Sapucaí. A narração do personagem chama a atenção para outros aspectos, quase filosóficos do ser.



BENÇA

Este BENÇA (2023) acabou me fazendo lembrar dos "filmes de prisão" de Aly Muritiba, que, coincidência ou não, também é de Curitiba. Não à toa, Mano Cappu está entre os diretores da série IRMANDANDE, série de prisão da Netflix. Este curta é simples, mas se percebe o amor no modo como os personagens, em sua maioria presidiários, são tratados no dia de visita, o dia que eles consideram sagrado. Um deles está triste que a namorada o largou; outro porque é o terceiro aniversário de seu filho pequeno na prisão; e a há outro caso especial. Tudo passa muito rápido nos 15 minutos de duração, mas isso pode ser visto como uma qualidade.

DINHO

Estou gostando de acompanhar a trajetória de Leo Tabosa. Este é o quarto que vejo dele, após o sucesso de BAUNILHA (2017), NOVA YORK (2018) e MARIE (2019). Seus filmes curtos, especialmente os de ficção, tem uma estrutura mais clássica e já parecem feitos para serem apreciados como um longa-metragem mais comercial, no bom sentido do termo. Até um elenco profissional ele já usa. Em DINHO (2023), temos Hermila Guedes e Renata Carvalho, excelentes, como as mães substitutas de um menino órfão cheio de imaginação. O filme não aprofunda muito a relação do menino com o coleguinha nem dele com suas tias, mas o pouco que é mostrado me pareceu muito amoroso e bonito. Ver na telona deve ser bem legal.

LAPSO

Como eu acho raro ver histórias de amor em curtas-metragens brasileiros, fiquei bastante feliz com LAPSO (2023), de Caroline Cavalcanti, que conta uma história da juventude negra de Belo Horizonte, mas também uma história de pessoas que se comunicam pela linguagem de sinais - a personagem de Beatriz Oliveira é surda. A diretora, Caroline Cavalcanti, tem trabalhado com filmes sobre pessoas com essa deficiência desde que se tornou também deficiente auditiva há cinco anos. Na trama, dois jovens se conhecem quando precisam cumprir pena de prestação de serviços numa biblioteca após praticarem atos de vandalismo. O filme tem alguns dos deliciosos clichês de comédias românticas (destaque para a cena do aniversário), mas tudo transposto com muita propriedade para a realidade de seus personagens. O filme foi selecionado para exibição no Festival de Berlim de 2024.

POR QUE NÃO ENSINARAM BIXAS PRETAS A AMAR?

Não há dúvidas de que o relato que ouvimos neste filme é impactante. Se a ação fosse contada com atores interpretando de maneira explícita, seria uma daquelas obras que trafegaria algo entre o exploitation e o realismo brutal, dada a violência que o narrador sofre. O que talvez tenha me incomodado um pouco em POR QUE NÃO ENSINARAM BIXAS PRETAS A AMAR? (2023), de Juan Rodrigues, foi o recurso de usar imagens aparentemente saídas de uma gravação em VHS (mas que, por alguma razão, estão com a data de 2022, ou talvez 2023). É um recurso que já estou vendo com certa frequência em alguns filmes em curta-metragem. Não sei se cada imagem foi pensada para cada palavra dita ou se as imagens como um todo funcionam como uma espécie de contraponto. Ou seja, enquanto as imagens mostram momentos de paz e tranquilidade, a narração fala de um pesadelo ocorrido. Talvez seja isso: talvez a intenção seja mostrar o quanto uma ação tão brutal acaba sendo esquecida diante das imagens aparentemente pacíficas de uma viagem a uma praia. Como se os violentadores merecessem o perdão.

THUË PIHI KUUWI – UMA MULHER PENSANDO

Um filme que funciona muito bem como uma dobradinha com MÃRI HI – A ÁRVORE DO SONHO, de Morzaniel Ɨramari. Ambos abordam, de diferentes prismas, os efeitos que uma determinada planta da floresta amazônica traz para os Yanomamis, em rituais religiosos. Em THUË PIHI KUUWI – UMA MULHER PENSANDO (2023), de Aida Harika, Edmar Tokorino e Roseane Yariana, a planta tem seu nome citado diversas vezes: "yãkoana". E ela é preparada por um homem, enquanto uma jovem (a narradora) assiste e faz conjecturas sobre o poder e os efeitos dessa planta. É um filme com uma simplicidade encantadora e imagino que a tendência é que essas produções se tornem melhores e mais ambiciosos.

PIRENOPOLYNDA

Achando interessante essa leva de filmes LGBTQIA+ vindo de Goiânia. Ao que parece, a cidade, e o estado também, apesar de ter uma tradição aparentemente mais machista da música sertaneja e da cultura que a circunda, possui uma cena gay bem ousada. Este PIRENOPOLYNDA (2023), de Izzi Vitório, Tita Maravilha e Bruno Victor, tem mais de 20 minutos e se fosse só a conversa das três travestis enquanto preparam comida, eu já ficaria satisfeito. Não sei se gosto tanto quando o filme se transforma em outra coisa - em outras coisas, na verdade. Como se fossem vários filmes num só, mas com um orgulho travesti da protagonista que dá organicidade ao todo. Há também um belo cuidado com os aspectos visuais, com uso de split screens, diferentes câmeras e cores vivas em cenas externas que valorizam a fotografia.

QUINZE PRIMAVERAS

Bastante inventivo o modo como o diretor constrói sua história, por assim dizer. Dentro do formato documentário, temos uma mulher travesti falando daquilo que lhe incomodou quando jovem, quando sofreu preconceito e resistência por tentar ser quem ela era. Mas o que achei mais interessante em QUINZE PRIMAVERAS (2022), de Leão Neto, foi o modo como ele chama a atenção para um certo álbum de retratos, para uma fotografia em particular. E depois há cenas de festas de aniversários de 15 anos de moças feitas em câmeras VHS. Em vários momentos ficamos nos perguntando em que sentido aquelas imagens se associam à mulher que está sendo entrevistada. E esse não saber faz parte do prazer e da graça de ver o filme.

BARRA NOVA

Tenho certa dificuldade de manter minha concentração em animações sem diálogos que acabam por trafegar caminhos de natureza onírica. Mas não há como não ficar encantado com a beleza, principalmente do ponto de vista visual mesmo, de BARRA NOVA (2023), de Diego Maia, que nos apresenta a uma garotinha vivendo uma experiência que foi definidora para sua vida. O título do filme se refere a uma praia cearense que tem a intersecção entre o rio e o mar. Então, o que achei mais bonito foram detalhes, como o vento, o mar, o olhar das crianças, o encontro com um urubu e uma baleia morta, o olhar carinhoso dos pais da menina. Às vezes entender é superestimado.

NOTURNO

Estou gostando de ver Tavinho Teixeira dando preferência, sempre que possível, para o cinema de horror. Ele teve um papel de grande destaque nos ótimos longas O CLUBE DOS CANIBAIS e PROPRIEDADE, esteve no filme em segmentos O NÓ DO DIABO, apareceu em um curta bacana recente chamado NÃO EXISTE PÔR DO SOL, e em NOTURNO (2023), de Irene Bandeira, ele é um dos poucos sobreviventes de um apocalipse zumbi. Ele vive olhando o que acontece pelas ruas com suas câmeras e até conversa com alguns dos zumbis, que têm nomes e respeito por parte do protagonista. Não sei se gosto tanto da conclusão, mas é um desses filmes que já conquistam pelo ator e pela temática. Para quem é de Fortaleza, é legal reconhecer alguns prédios.

terça-feira, janeiro 30, 2024

SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO (May December)



Quando eu percebo que não tenho a necessária intimidade com a poética de um cineasta, eu, vez por outra, procuro algum texto no Senses of Cinema que busque, em alguns parágrafos muito bem escritos, a essência do artista. O curioso é que o texto lá no referido site sobre o cineasta em questão, Todd Haynes, é de 2002. Ou seja, LONGE DO PARAÍSO (2002) não havia sequer sido lançado nos cinemas quando o texto foi escrito. Mesmo assim, com apenas três longas e três curtas do diretor, até então lançados, o autor do ensaio, Keith Uhlich, buscou desvendar os segredos do cineasta, que já naquela época tinha certa aura de mistério em suas obsessões e escolhas.

Hoje continuo achando a poética de Haynes deliciosamente misteriosa e intrigante. SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO (2023) aparece como que para confirmar essa característica, ou pelo menos essa impressão. Dos filmes que vi do diretor, a partir de MAL DO SÉCULO/A SALVO (1995), passando por VELVET GOLDMINE (1998), NÃO ESTOU LÁ (2007), a minissérie MILDRED PIERCE (2011), CAROL (2015) e o documentário THE VELVET UNDERGROUND (2021), entre outros, vamos buscando elementos em comum, alguns nem sempre perceptíveis.

O longa de ficção anterior de Haynes, O PREÇO DA VERDADE (2019), não parecia ser dele, não parece uma obra de autor, o que deixou no ar certo sentimento de que ele estaria se desprendendo de seus maiores interesses. Mas talvez seja só impressão mesmo, por mais que seja difícil não pensar no filme como algo quase esquecível. Eis que SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO traz de volta seu interesse pelas personagens femininas misteriosas e fascinantes. E pode, sim, ser visto como um de seus melhores e mais sólidos trabalhos.

O filme é inspirado na história de Mary Kay Letournou, uma professora de ensino fundamental que foi pega traindo o marido com seu aluno da sexta série, em 1996. O menino tinha apenas 12 anos, enquanto ela tinha 34. O caso foi parar em todos os jornais e principalmente nos tabloides. E isso continuou a ser alimentado e ganhando ainda mais força, já que ela engravidou do adolescente na prisão e depois ambos se casaram. Vili Fualaau, o menino que se tornaria homem, a vítima do abuso, cuidou de Mary até o fim de sua vida, apesar de eles terem se separado após 12 anos de casados, quando ela morreu de câncer de cólon.

Todd Haynes tinha material para recontar essa história se quisesse. E possivelmente faria uma obra tão vulgar quanto atraente para várias audiências. No entanto, ele preferiu contar uma outra história. Na trama do filme, Natalie Portman é Elizabeth, uma atriz que ganha acesso à residência da família de uma mulher que agora é casada com o jovem de quem abusara e depois pagara na cadeia por seu crime. A mulher, Gracie, é vivida brilhantemente por Julianne Moore, em sua quinta colaboração com Haynes. A história, portanto, se inicia mais de duas décadas após o escândalo/crime que mudou a vida de várias pessoas, inclusive da família anterior de Gracie.

A intenção de Elizabeth é perceber detalhes nas características e nos trejeitos de Gracie para construir sua personagem para o filme, e também de investigar o máximo que puder dos detalhes do ocorrido no passado. No tempo presente em que se passa a história, o primeiro filho de Gracie e de Joe (Charles Melton) agora está no momento de sair de casa, de entrar para a universidade. E é estranho quando vemos na mesma mesa o pai (Melton) e o filho (Gabriel Chung), ambos parecendo irmãos, ambos parecendo filhos de Gracie. Depois veremos outros detalhes do relacionamento entre Gracie e Joe, seus constantes choros à noite, e as usuais tentativas de Joe de confortá-la. Seria o choro dela ocasionado por culpa, uma espécie de chantagem emocional disfarçada, tristeza pela falta de trabalho ou por se sentir injustiçada ao longo de todos esses anos? A propósito, assim que Elizabeth chega na casa, há um pacote que a família recebe no portão. O conteúdo: fezes.

Um dos aspectos mais impressionantes de SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO, entre tantos que há, é como Elizabeth, ao buscar copiar Gracie, também busca assumir um papel de predadora, inclusive seduzindo Joe. Isso traz camadas para Elizabeth que a enriquecem e a tornam quase tão misteriosa quanto Gracie. Em determinado momento, Haynes as coloca juntas no mesmo quadro, enquanto elas experimentam uma maquiagem, e parece que algo muito sério está prestes a acontecer. E é como se todos os espectadores do cinema prendessem a respiração naquele instante. Além do mais, é essa cena que mais guarda semelhanças com a obra-prima de Ingmar Bergman, PERSONA.

As cenas entre Julianne Moore e Natalie Portman, quando estão sozinhas, transbordam intensidade e energia. É algo mágico. Vale destacar também a ótima atuação de Charles Melton, como a pessoa que começou uma família cedo demais – a cena da discussão de Melton com Moore, lá perto do final, é de dar um aperto no coração. Que bom que este filme teve exibição nos cinemas brasileiros (nos Estados Unidos e Canadá, foi para a Netflix). O cinema é o lugar ideal para apreciar esse tipo de obra, que também se destaca pela trilha sonora pouco convencional. Inclusive, a fotografia de Christopher Blauvelt, colaborador constante de Kelly Reichardt, é um destaque assim que botamos os olhos nas primeiras cenas. O filme foi rodado em película e sua iluminação faz lembrar os trabalhos de Vilmos Zsigmond para certos clássicos da Nova Hollywood.

+ DOIS FILMES

MAESTRO

Havia me esquecido do quanto Carey Mulligan é uma atriz extraordinária. Talvez porque minha última lembrança dela tenha sido com BELA VINGANÇA, de 2020, um filme que foge um pouco do registro realista. MAESTRO (2023), segundo longa-metragem na direção de Bradley Cooper, trata mais uma vez de música, seguindo os passos de NASCE UMA ESTRELA (2018), e valorizando, como bom filme de ator que é, as interpretações. Há pelo menos uns três embates de interpretações entre Cooper e Mulligan que já me fazem pensar nos clipes do Oscar 2024. Como não achei a vida de Leonard Berstein tão extraordinária assim, o que mais me chamou a atenção no filme foram as experimentações visuais, com uma fotografia em preto e branco de alto contraste que a princípio me lembrou Orson Welles e CIDADÃO KANE e em seguida o uso de cores vivas que lembram produções visuais das épocas retratadas. O começo do filme me causou um pouco de distanciamento, ainda que um distanciamento interessante. O distanciamento diminui com as cores e com uma maior ênfase nos dramas do casal, quando o maestro passa a pular mais a cerca e sair com rapazes, por quem sempre teve atração. A segunda parceria com o diretor de fotografia Matthew Libatique rendeu bons frutos e o trabalho de maquiagem está perfeito.

ANATOMIA DE UMA QUEDA (Anatomie d'une Chute)

A Palma de Ouro deste ano, ANATOMIA DE UMA QUEDA (2023), é um filme surpreendente e que vai quebrando as expectativas ao longo de toda a metragem. Em alguns momentos me fez lembrar os thrillers americanos mais convencionais, mas apenas pelos pontos de partida na trama. Tanto que minha cabeça já acostumada com os "supercines" da vida ficou me fazendo pensar em reviravoltas de última hora. Há também a questão da dúvida em torno da protagonista: seria ela culpada ou inocente da morte do marido? Foi suicídio, acidente ou homicídio? O uso dos flashbacks é absolutamente genial e há momentos em que a câmera se posiciona no meio das pessoas no tribunal como se não tivéssemos uma visão privilegiada da narrativa (e, de fato, não temos tanto assim). Sandra Hüller está excelente desde o começo e o garotinho Milo Machado Graner é sensacional. No mais, que beleza que foi encontrar o Cinema do Dragão lotado em plena quinta-feira para ver o suposto melhor trabalho de Justine Trier durante o Festival Varilux de Cinema Francês.

domingo, janeiro 28, 2024

PRISCILLA



Vi PRISCILLA (2023) duas vezes no cinema – a segunda, com a Giselle, que ficou um bocado mexida com a obra. Segui achando o filme tão bom quanto na primeira vez. Tão elegante quanto incômodo, embora esse segundo aspecto diminua quando se vê uma segunda ou terceira vez, por razões óbvias. Na primeira vez, eu sentia vontade de jogar o meu sapato na tela do cinema, a cada tortura passiva imposta por Elvis a Priscilla. O que não diminuiu foi a alegria das pequenas vitórias da protagonista frente a sua relação nada saudável com o Rei do Rock.

Talvez o melhor filme de Sofia Coppola desde UM LUGAR QUALQUER (2010), PRISCILLA é mais um exemplar da especialidade da diretora em lidar com o universo de pessoas aristocratas (ou próximas disso), bem como com a solidão imensa de personagens femininas. Nesse ponto, é possível pensar em PRISCILLA como o filme mais próximo de seu longa-metragem de estreia, AS VIRGENS SUICIDAS (1999) – embora visualmente (e até na questão do desejo) esteja também muito próximo de O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (2017). Seus tons pastéis e baby pinks estão de volta, inclusive.

Cada vez que vemos Cailee Spaeny (Priscilla) naquela mansão imensa que é Graceland, profundamente sozinha, pensamos na angústia e no mal estar também das meninas do filme de estreia de Coppola. A baixa estatura de Spaeny, aliás, foi uma escolha acertada para se destacar esse aspecto. Não apenas para trabalhar a adolescência da menina Priscilla naquele espaço habitado principalmente por homens, mas nas cenas em que ela está sozinha também.

No começo do filme, depois que a protagonista é apresentada, numa lanchonete alemã do início da década de 1960, fiquei aguardando, inclusive, uma outra atriz para interpretar a personagem quando adulta. Mas ter ganhado prêmio de melhor atriz em Veneza não foi um gesto qualquer para Cailee Spaeny. O fato de ela ter cerca de um metro e meio de altura contra os quase dois de Jacob Elordi ajuda a trazer um sentimento de opressão frente àquele homem que a tem como uma boneca de porcelana.

O que vemos é um outro tipo de abuso, que maltrata talvez mais que o da violência física. Adoro o final, uma dessas escolhas acertadas de quando acabar o filme. E não importa se o que é mostrado no filme é verdade; o que importa é a verdade do filme. No mais, sigo bastante intrigado com o modo explicitamente sombrio com que o cantor é pintado, a ponto de a diretora optar por fugir do ponto de vista da heroína por um instante para mostrá-lo abrindo suas asas como anjo caído em apresentação em Las Vegas. (E de fato, naquele momento da vida, ele estava, sim, caído e decadente.) 

Quando Priscilla deixa Graceland, aquilo é um momento de muita libertação, por mais que a letra da canção “I will always love you”, na voz de Dolly Parton, diga muito sobre um sentimento ainda de amor e de dor na partida. Linda demais!

+ DOIS FILMES

SAINT OMER

Eis um filme que pede uma reeducação do ouvir. Enquanto vemos SAINT OMER (2022), precisamos estar atentos e também muito sensíveis aos relatos da ré, uma mulher que reconhece – embora se julgue inocente, o que pode parecer contraditório – o afogamento de sua própria filha de pouco mais de um ano de idade. A primeira imagem de Guslagie Malanda surgindo no tribunal algemada é uma visão que remete aos tempos da escravidão. E certamente essa impressão é deliberada por parte de Alice Diop (são tantas pessoas brancas naquele espaço). O que me chamou a atenção foi o caráter humano do julgamento, que começa por querer entender aquela mulher, suas origens e o que a motivou a fazer o que fez. Há as palavras duras do promotor de justiça, mas há também depoimentos de testemunhas que são também bastante duros e por vezes reveladores, como o do pai biológico da criança, o tipo clássico de homem que quer tirar o corpo fora. E há, a todo o momento, a constatação do racismo estrutural. Gosto também de como o filme é elegante em sua forma. A cena da escolha do júri remete a Robert Bresson e há um cuidado com as cores (pele, roupa, parede) que ajuda a engrandecer a obra.

LEVANTE

O ponto de partida de LEVANTE (2023), de Lillah Halla, pode até fazer lembrar o francês O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan. Ambos são filmes sobre jovens mulheres que não querem que uma gravidez indesejada atrapalhe seus planos para o futuro. O filme brasileiro, no entanto, tem mais espaço para o humor, já que a trama lida com um grupo de jogadoras de vôlei, boa parte delas LGBTIQIA+ e o clima da turma é bem alto astral. A situação da protagonista traz tensão, pois está-se diante de algo que ainda é legalmente proibido no Brasil, sem falar que há toda uma questão de julgamento da população. O filme tem uma bandeira pró-aborto bem clara e aberta. Não se trata apenas de defender casos especiais, mas de defender o direito da mulher de fazer o que deseja com seu próprio corpo. Não sei se gosto das personagens que funcionam como vilãs da história, mas talvez tenha sido importante para a diretora pintá-las como ridículas. LEVANTE tem também aspectos visuais que chamam a atenção, positivamente. Um belo longa de estreia.

sábado, janeiro 20, 2024

MAL VIVER



Ter contato com o cinema de Portugal requer não apenas muito interesse de nossa parte, mas muito esforço para ir atrás das obras nos diversos caminhos disponíveis – nem sei quão fáceis ou difíceis são de se encontrar certos filmes em serviços de streaming, por exemplo. Além do mais, quem gosta de cinema de várias partes do mundo (e de diversos gêneros) acaba tão sobrecarregado de coisas interessantes para ver que a muito rica e interessante cinematografia lusitana acaba sendo deixada de lado, até porque são poucos os filmes que chegam a nosso circuito. No ano passado, por exemplo, vi o lindo LOBO E CÃO, de Cláudia Varejão, FOGO-FÁTUO, de João Pedro Rodrigues, e A VIDA SÃO DOIS DIAS, de Leonardo Mouramateus (mas este é metade brasileiro); neste ano, vi CIDADE RABAT, de Susana Nobre, e agora este MAL VIVER (2023), de João Canijo. 

Ao chegar em casa, depois da sessão do filme de Canijo, fui procurar pela filmografia do diretor no IMDB. Para minha surpresa, o sujeito dirige filmes desde os anos 1980. E não só: trata-se de um dos mais celebrados cineastas portugueses da atualidade – ou de todos os tempos. MAL VIVER faz par com VIVER MAL, do mesmo ano, a ser lançado em breve no Brasil. Ambos foram exibidos no Festival de Berlim e o primeiro ganhou o Urso de Prata, em júri presidido por Kristen Stewart.

MAL VIVER é um filme que chama a atenção para os pequenos detalhes desde a primeira imagem, com a personagem de Anabela Moreira na piscina de um hotel com seu cachorrinho, em plano geral. A chegada da mãe (Rita Blanco) e da filha (Madalena Almeida) vão mexer com a sua, por assim dizer, paz. O relacionamento entre elas (e as outras mulheres da família) não é fácil e isso vai tornando o filme tão aflitivo quanto GRITOS E SUSSURROS, do Bergman. Até porque o trabalho de Canijo também é muito caprichado do ponto de vista plástico. As cores das roupas, das paredes, a disposição das pessoas e dos objetos no quadro, tudo isso é pensado de forma muito delicada.

Além do mais, os diálogos, que no começo se mostram aparentemente calmos, ainda que cheios de angústia, vão mostrando os sentimentos cada vez mais desesperados das personagens. São três gerações de mulheres que agem de maneira muito distinta. Piedade (Moreira) sofre claramente de depressão. Não consegue ter uma maior aproximação com a filha adolescente, Salomé (Almeida), que por sua vez cobra da mãe uma manifestação maior de afeto, por se sentir rejeitada por ela, especialmente durante todo o tempo que passou vivendo com o pai, falecido há poucos dias. Piedade também sofre com a mãe, Sara (Blanco), uma mulher que tem uma espécie de maldade na alma, especialmente no que se refere a Piedade, e isso pode ter nascido de algum tipo de rancor cujas origens o filme não deixa muito claro.

MAL VIVER é dessas obras que trazem palavras cortantes, inquietações da alma, separações visuais que muitas vezes denotam uma desarmonia entre as personagens, não necessariamente nascida da vontade delas. Destaco um momento em que Salomé fala com a mãe enquanto esta está no banheiro, lavando o rosto. Elas buscam algum tipo de reconciliação, mas Piedade, especialmente, tem muita dificuldade de se aproximar da filha. Especialmente belo e triste o momento em que Piedade se aproxima da família, que está olhando um álbum de fotos, para oferecer um vestido para a menina provar.

Interpretações fabulosas de todas as atrizes (não apenas do trio principal), um trabalho de mixagem de som singular e um roteiro construído coletivamente que traz muita verdade e muita dor. Mal posso esperar para ver VIVER MAL, que mostra o ponto de vista das pessoas que estão hospedadas no hotel. Alguns diálogos desses hóspedes são vistos de maneira muito rápida em MAL VIVER e certamente ver os dois filmes será uma experiência não apenas complementar, mas humana.

Infelizmente vi o filme numa sessão com um público bem pequeno (eu era uma das três pessoas presentes). Mas talvez ter a outra sala do Cinema do Dragão exibindo SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO contribua bastante para esse esvaziamento. Eu mesmo preferi ver primeiro o filme de Haynes para no dia seguinte conferir o Canijo.

+ DOIS FILMES


TIA VIRGÍNIA

Depois do coming of age AS DUAS IRENES (2017), Fabio Meira opta por retratar personagens maduros num clima claustrofóbico de uma velha casa. A trinca de atrizes é genial. Vera Holtz é Virgínia, que é a irmã que não se casou e vive na casa da família, cuidando da mãe acamada de 99 anos de idade. É dia de natal e suas duas irmãs, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso), estão chegando para a tradicional reunião familiar, regada a muitas discussões e muitas mágoas. A família, especialmente quando retratada na maior parte por mulheres, é um verdadeiro tesouro de dramaticidade. O filme lembra tanto as peças de teatro de Tennessee Williams quanto os filmes mais femininos e de clausura de Ingmar Bergman, mas com aquela cara muito brasileira. Em vários momentos, TIA VIRGÍNIA (2023) traz sensações incômodas que o aproximam de um filme de horror, mas o horror aqui seria o da realidade, representado especialmente pelo envelhecimento e pelo desgaste psicológico/mental.

MONSTER (Kaibutsu)

O novo filme de Hirokazu Koreeda, MONSTER (2023), está entre seus melhores, mais ambiciosos e mais angustiantes trabalhos. Especialista nas dores no seio familiar, o mestre japonês desta vez conta uma história com pontos de vista diferentes, à moda RASHOMON. O primeiro segmento, por assim dizer, é o da mãe do garoto, que fica preocupada com possíveis agressões que o filho estaria recebendo na escola e vai até à direção para reclamar. O professor que seria culpado por agredir o aluno ganha o segundo segmento e o tão aguardado ponto de vista das crianças fica para o final. O que mais incomoda, no bom sentido, em MONSTER é o quanto a dificuldade de comunicação (e às vezes insistir na mentira) torna a vida de todos os envolvidos um inferno. As angústias da mãe e do professor têm um quê de kafkianas, com regras impostas dificultando a resolução dos problemas e gerando mais aflições. Já a situação das crianças me fez lembrar um pouco CLOSE, de Lucas Dhont, no que se refere às imposições da sociedade.

quinta-feira, janeiro 18, 2024

DEZ CURTAS INDICADOS AO OSCAR 2023



No ano passado, acabei não conseguindo ver os 15 curtas indicados às três categorias (ficção, documentário e animação), e já desencanei e desisti, pois o tempo está escasso. Mas acredito que vale a pena deixar registrados meus breves escritos sobre cada um desses trabalhos vistos.

MY YEAR OF DICKS

Comecei minha jornada pelos curtas indicados ao Oscar pelo que tem o título mais atraente. Não sei se chega a ser um bom filme, mas gostei especialmente dos capítulos finais. A cena do pai conversando com a protagonista sobre sexo é impagável, assim como a última cena. Ou seja, na lembrança, é um bom filme sim. A cena no cinema é quase boa, assim como a do parque de diversões. A diretora usa diferentes estilos de animação e de estados de espírito para determinados capítulos e até brinca em algum momento com a animação estilo anime. MY YEAR OF DICKS (2022), de Sara Gunnarsdóttir, foi vencedor do festival de Annecy e talvez isso tenha trazido visibilidade para o prêmio da academia.

COMO CUIDAR DE UM BEBÊ ELEFANTE (The Elephant Whispers)

O vencedor do Oscar na categoria documentário em curta-metragem deste ano foi esta história sobre um casal que vive na região rural da Índia que cuida de dois bebês elefantes. O elefante que se destaca na história de COMO CUIDAR DE UM BEBÊ ELEFANTE (2022), de Kartiki Gonsalves, é o mais jovem, Raghu, que chega precisando de cuidado à aldeia. É um filme cheio de paisagens bonitas, de imagens ternas dos dois humanos com os elefantes, mas não vejo nada que chame tanto a atenção do ponto de vista formal. O fato de estar na Netflix faz com que ele esteja mais à disposição e não deixa de ser uma boa oportunidade de um público maior ter acesso a alguns dos curtas competidores. A vitória deste filme faz lembrar a vitória de PROFESSOR POLVO, outro curta sobre relações de afeto entre pessoas e animais, vencedor do prêmio de melhor documentário no Oscar 2021. Talvez seja uma tendência, talvez seja uma maneira de conquistar a academia pelo amor. No caso do filme dos elefantes, isso me incomodou um pouco mais, pois a trilha sonora triste e insistente é bem irritante.

THE FLYING SAILOR

É engraçado que as animações mais adultas costumam me deixar mais confuso do que documentários ou curtas em live action. Principalmente essas que têm a intenção de evitar totalmente os diálogos e contar sua "história" apenas com imagens. Em THE FLYING SAILOR (2022), de Amanda Forbis e Wendy Tilby, o que temos é basicamente um marinheiro que recorda toda sua vida em poucos instantes, após a explosão de um navio arremessá-lo aos céus. Sinceramente, não vi muita coisa, por mais que se compreenda alguns simbolismos de destaque, como o fato de ele ser visto completamente nu após a explosão, remetendo à infância, nu como veio ao mundo, sem o abrigo da superficialidade que o mundo proporciona. A explosão especificamente remete a Halifax, cidade no Canadá, em 1917.

AN OSTRICH TOLD ME THE WORLD IS FAKE AND I THINK I BELIEVE IT

Curta-animação divertidíssimo sobre um vendedor que não está conseguindo uma meta mínima e recebe uma visita muito estranha de um avestruz, que diz que toda sua vida é uma farsa. AN OSTRICH TOLD ME THE WORLD IS FAKE AND I THINK I BELIEVE IT (2022), de Lachlan Pendragon, é mais ou menos como MATRIX, das Wachowski, e a ideia não é muito nova, mas o jeito como o diretor conta a história faz toda a diferença, principalmente por causa do uso da metalinguagem, que funciona de maneira ainda mais divertida com a animação em stop-motion. São 11 minutinhos que passam tão rapidamente que até poderiam render um longa.

LE PUPILLE

A diretora de AS MARAVILHAS (2014), Alice Rohrwacher, conserva seu interesse em trabalhar com crianças dentro de um cenário bucólico, embora aqui se explore as meninas estudantes de uma escola de freiras em um espaço mais fechado. Tão fechado que a religião surge para condenar uma delas, depois que a garotinha coloca uma canção na vitrola e faz as demais dançarem e cantarem. A madre superiora (Alba Rohrwacher) acha aquilo um absurdo e lava a língua das meninas com sabão. A revanche se dá no momento do bolo doado. Acho uma graça o canto das crianças ao final, tentando buscar uma lição da história contada. Em LE PUPILLE (2022, foto), podemos destacar a bela fotografia de Hélène Louvart, a mesma de A VIDA INVISÍVEL, de Karim Aïnouz.

AN IRISH GOODBYE

Vi este curta no bolão de alguns amigos e até achei que fosse mais interessante do que realmente é. Talvez o que traga mais chances para ele seja apresentar um ator com Síndrome de Down como um dos protagonistas e isso fazer do filme o melhor exemplar para a representatividade dos cinco indicados da categoria live action. Na trama de AN IRISH GOODBYE (2022), de Tom Berkeley e Ross White, dois irmãos discutem após a morte da mãe, enquanto carregam suas cinzas, sobre seus futuros rumos. Um quer partir; outro quer ficar. E no meio de tudo a uma lista com cem coisas para fazer antes de partirem. Se a intenção é emocionar, acho que os diretores passaram longe disso, hein.

THE RED SUITCASE (La Valise Rouge)

Um dos grandes méritos de THE RED SUITCASE (2022), de Cyrus Neshvad, é nos pegar tanto pela empatia diante da garota iraniana que está prometida a um casamento encomendado entre o pai e o noivo, quanto pelo suspense, num jogo tenso de gato e rato da tentativa da menina de fugir, de se livrar daquele homem, disfarçada de alguém do ocidente. Como recentemente o caso das iranianas que fizeram um levante contra o "véu" islâmico causou muito clamor, já torcemos de cara pela garota. Que ela seja muito feliz longe de sua família e de seu país, infelizmente, totalitário.

O EFEITO MARTHA MITCHELL (The Martha Mitchell Effect)

Caso óbvio de filme escolhido para ser destaque nas indicações do Oscar (na categoria curta-documentário) mais pelo tema do que pela qualidade na forma e na criatividade de se contar a história. O filme de cerca de 40 minutos nos apresenta a uma das figuras mais importantes da política americana dos anos 1970, atuando principalmente nos bastidores, mas também dando entrevistas na imprensa, sendo uma figura muito importante para a renúncia do presidente Richard Nixon em 1974, pelo seu (suposto?) envolvimento com o que ficou conhecido como escândalo watergate. Mas talvez as diretoras de O EFEITO MARTHA MITCHELL (2022), Anne Alvergue e Debra McClutchy, tenham um interesse maior em trazer à tona a figura da mulher que tentava dizer a verdade, mesmo sendo silenciada violentamente pelo partido republicano, e que na época era vista por muitos como pouco confiável ou até louca. Típico caso de desconsiderar uma mulher pelo que ela diz chamando-a de louca ou descompensada. Uma pena que o documentário seja tão insosso a ponto de não sentirmos absolutamente nada pela personagem, talvez pela opção por um estilo de reportagem tradicional.

HOW DO YOU MEASURE A YEAR?

A ideia nem é tão original assim. De cabeça lembrei de ANNA DOS 6 AOS 18, de Nikita Mikhalkov, que também acompanha, mas em longa-metragem, o passar do tempo de uma criança até chegar perto de atingir a idade adulta. Em HOW DO YOU MEASURE A YEAR? (2022), o diretor Jay Rosenblatt fez o mesmo com sua filha, mas com perguntas mais rápidas e a partir dos dois anos de idade. Num momento fiquei um pouco tenso, quando ele pergunta do que ela tem mais medo e a criança diz: "de você". De todo modo, apesar da simplicidade no projeto, não deixa de ser fascinante ver o passar do tempo no aspecto físico, e também no quanto Ella vai amadurecendo psicologicamente e percebendo mais coisas em seu universo fora da família.

HAULOUT

Quando comecei a ver HAULOUT (2022), de Maxim Arbugaev e Evgenia Arbugaeva, achei se tratar apenas de mais um filme de observação do mundo animal, em especial do mundo gelado do Ártico. Mas eis que as imagens poderosas que surgem na tela das morsas próximas ao biólogo marinho (único personagem em cena além dos animais) me deixaram muito impressionado. O melhor é não contar muita coisa, sob o risco de estragar as surpresas de quem ainda não viu o filme, mas vale dizer está bem longe do que se espera de um documentário mais tradicional. Há pouquíssimas falas e há imagens do horizonte (com as morsas) que até me fizeram lembrar John Ford - mas pode ter a ver apenas com a iluminação natural que surge de fora para dentro da pequena casa de madeira onde o cientista se instala.

quarta-feira, janeiro 17, 2024

TRENQUE LAUQUEN



Nem parece que estou de férias (e vejo essas férias passarem voando, é impressionante). Tenho visto poucos filmes, viajei apenas por três dias, mas a verdade é que não estou conseguindo administrar muito bem meu tempo – a função dos smartphones é deixar a gente ainda menos focado. No mais, coisas para resolver não faltam. Mas paremos um pouco para falar sobre um dos filmes mais extraordinários da safra recente, TRENQUE LAUQUEN (2023), de Laura Citarella, que é um filme que vai contra este momento em que vivemos, de falta de foco, de necessidade de relaxar e acompanhar uma longa narrativa, com prazer.

Ao que parece, existe uma força contrária a essa tendência atual de as pessoas terem se acostumado a vídeos curtíssimos no celular, de ficarem cada vez mais impacientes, sem foco e indispostas a narrativas longas e lentas. De vez em quando essas pessoas (ou algumas pessoas) querem se desligar do celular e se perder num filme como este, de 4h21 de duração – maior que as 3h30 do épico de Scorsese, e por isso mesmo com mais dificuldade de encontrar espaço no circuito, mesmo o alternativo.

TRENQUE LAUQUEN, de título não muito atraente – a não ser talvez para os argentinos, que conhecem a cidade com esse nome –, chegou à primeira posição do top 10 da Cahiers du Cinéma do ano passado e chamou a atenção de um número maior de cinéfilos. A maioria, como eu, sequer havia ouvido falar na diretora (eu, inclusive).

A sensação de ver o filme é tão deliciosa quanto a de ver LA FLOR (2018), o lendário filme de mais de 13 horas de Mariano Llinás, que é colaborador de roteiro e edição deste. Aliás, a atriz principal do filme de Laura Citarelli, Laura Paredes, assim como Elisa Carricajo, que desempenha papel fundamental na história, são estrelas do opus de Llinás. O que mais me encantou em TRENQUE LAUQUEN foi a junção do mistério com o amor. Ou o amor pelo mistério, que Laura (a atriz e a personagem) deixa transparecer no brilho de seus olhos e faz encantar seu parceiro de investigação Ezequiel (Ezequiel Pierri).

O interessante é que todo o jogo envolvendo as cartas de amor encontradas em livros de biblioteca acaba por se transformar em outra coisa ao longo da narrativa. E isso é muito bom para o filme, quando suas histórias vão se desenvolvendo à medida que as tramas de cada personagem, no passado ou no presente, juntam-se para formar um belo quebra-cabeças. Do ponto de vista do lirismo e do mistério, principalmente. O penúltimo capítulo, que destaco, é tão envolvente que não chega a incomodar o fato de ele ser o mais longo (suponho). Ao contrário, poderia até ser maior, já que é um deleite. A falta de pressa de Citarelli encanta, e adoro algumas cenas com diálogos entre personagens, como as cenas entre Rafael (Rafael Spregelburd) e Normita (Cecilia Rainero); ou Laura e Elisa Esperanza (Elisa Carricajo), enquanto esta acaricia sua barriga de gestante, com um sorriso sereno – e isso no meio de uma situação de mistério e muita curiosidade.

TRENQUE LAUQUEN é uma declaração de amor às narrativas que traz ainda um monte de ousadias que faz com que o cinema argentino se eleve em nosso conceito – recentemente eu já havia me encantado com a proposta formal de OS DELINQUENTES, de Rodrigo Moreno, mas o filme de Citarelli traz uma proposta ainda mais audaciosa. E não apenas pelo aspecto de maratona relativo à sua duração, mas por fugir, com frequência, ao que se espera da trama.

Por exemplo, logo no início do filme somos apresentados a dois homens, Rafael e Ezequiel, que estão à procura de uma mulher, uma botânica de nome Laura, que foi embora sem deixar vestígio aparente. Rafael, namorado de Laura, é o cara que conduz com mais atividade a busca, enquanto Ezequiel segue calado. Acontece que é Ezequiel quem sabe mais de Laura, conforme saberemos no capítulo seguinte, que se concentrará na relação estabelecida entre Ezequiel e Laura, e a histórias de cartas de amor de décadas passadas encontradas em livros. Depois veremos um flashback de Rafael, e tudo sem pressa nenhuma, com longas tomadas, longos planos-sequência, conversas espaçadas, mas altamente saborosas. Acontece que as coisas mudam em “Trenque Lauquen – Parte II”, quando ficamos sabendo por onde anda Laura e o que ela anda fazendo. Trata-se de um convite a nos perdermos junto com a personagem por caminhos totalmente inusitados.

A própria diretora, em entrevista presente no site da BFI conta que o seu maior interesse é nunca encerrar o mistério, nunca fechar, nunca dar respostas prontas. E é isso que eu gosto também no filme, esse caráter meio Lynch, meio Borges. Por isso há essa vontade de começar um novo mistério na parte dois sem que o mistério da primeira parte seja solucionado.

Quatro curiosidades:
1) Laura Paredes já havia interpretado a personagem Laura em outro filme de Citarelli, OSTENDE (2011). E isso me deixou muito curioso para conferir essa obra.
2) TRENQUE LAUQUEN levou seis anos para ser finalizado.
3) O primeiro capítulo se chama “La Aventura” e sua trama guarda semelhanças com o clássico A AVENTURA, de Michelangelo Antonioni.
4) Ezequiel Pierri não é ator profissional: ele é marido da diretora e o papel foi criado para ele.

+ DOIS FILMES

A SOCIEDADE DE NEVE (La Sociedad de la Nieve)

Não resta dúvida que A SOCIEDADE DE NEVE (2023) é um filme muito envolvente, ainda mais que a história real em si é incrível. Lembro que quando criança eu vi no SBT a produção mexicana SOBREVIVENTES DOS ANDES (1976), a primeira a tratar do caso, e fiquei muito impressionado com essa história de pessoas tendo que comer carne humana para sobreviver na montanha. A escolha de J.A. Bayona para esta terceira versão da história (a outra foi dirigida por Frank Marshall: VIVOS, de 1993) foi acertada, levando em consideração o resultado de O IMPOSSÍVEL (2012), quando o diretor soube tratar de uma tragédia de grandes proporções com muito talento e carregando no melodrama, sem medo. Aqui, no entanto, senti falta de um trabalho melhor com o desenvolvimento dos personagens. Lidar com tantos, sem saber muito sobre eles (o início é bem apressado) dificultou para mim um maior envolvimento com a situação dramática. As cenas que comoveram a muitos, por exemplo, não conseguiram ter o mesmo efeito em mim. No entanto, não há como negar a ótima produção, a caprichada cena do desastre aéreo, a boa escolha de elenco e a opção por ser o menos "exploitation" e o mais respeitador possível com todos os envolvidos no acidente.

PUAN

Os olhos do mundo estão voltados para a Argentina atualmente. Infelizmente por perceber que o país, que já não está bem das pernas há muitos anos, está sob risco maior nas mãos de um louco de extrema direita. E esse clima é sentido em PUAN (2023), de María Alché e Benjamín Naishtat, por mais que haja também a intenção de tratar a insegurança do protagonista de maneira leve. Logo numa das primeiras cenas, o filme nos conquista com algo parecido com o que se via nas screwball comedies dos anos 30. São risos que duram bons minutos. Para depois ir nos colocando aos poucos nos dilemas desse professor de filosofia que se vê ameaçado quando chega um outro colega, da Alemanha, e com muito mais esperteza de conquistar as pessoas do que ele. Gosto muito de como o filme vai levando esse homem para seu destino final, que pode ser o de reconquista ou de fracasso. Ou talvez um pouco dos dois, dada a melancolia portenha no próprio filme reconhecida até com certo orgulho.

segunda-feira, janeiro 08, 2024

GLOBO DE OURO 2024



Não sei se estava com saudades ou não do Globo de Ouro. Talvez estivesse. A interrupção da premiação, com todas as polêmicas, e depois o retorno aos poucos, foi meio que um balde de água fria para a tradição de ver a divertida festa nos meses de janeiro de cada ano. Que vem com a vantagem de eu não me preocupar em acordar cedo no dia seguinte para trabalhar, como geralmente acontece com o Oscar. E se eu não costumo me lembrar dos premiados no Oscar, o que dirá no Globo de Ouro? Mas é um evento importante, até para solidificar algumas tendências para a corrida do Oscar. Por mais que os votantes não sejam os mesmos, os prêmios têm os seus pesos nestes primeiros meses do ano. Sem falar que é divertido ver o pessoal da televisão com o do cinema, embora neste ano eu estivesse bem por fora dos indicados à televisão. 

Quanto à festa, o que é aquele apresentador, hein? Um tal de Jo Koy. Estava há pouco assistindo à análise do Dalenogare da premiação (no YouTube) e ele disse que nunca viu nenhum host de premiação tão ruim. E realmente foi de dar vergonha. Piadas horríveis (aquela da duração de OPPENHEIMER é triste demais), silêncio constrangedor dos convidados em certos momentos, sorrisos amarelos das pessoas mencionadas por ele. Ao que parece, a organização teve dificuldade de conseguir um bom host. Chris Rock e Ali Wong já haviam recusado a oferta. Deve demorar um pouquinho para a premiação recuperar a credibilidade e entrar nos eixos, mas uma hora dá certo.

No que se refere aos prêmios, acho que os únicos que me deram um pouco de alegria foram os dois para Justine Triet (para roteiro e para filme em língua estrangeira). Nem sabia que gostava tanto de ANATOMIA DE UMA QUEDA. Aliás, sabia, mas não tanto assim. Acho que entrou o fator surpresa, especialmente na categoria de roteiro. Parabéns aos votantes. Também gostei de ver Emma Stone subir ao palco para receber seu prêmio por POBRES CRIATURAS. Não vi o filme ainda, mas adoro a atriz e também o diretor, Yorgos Lanthimos, que já faturou o prêmio maior em Veneza.

Já as estatuetas para Christopher Nolan e OPPENHEIMER, não vi muita animação em minha bolha e nem na própria festa. O mesmo digo da premiação para Lily Gladstone, por ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES, por mais que goste, sim, de seu desempenho. O filme de Martin Scorsese passou a impressão de ter perdido um pouco a força na corrida para o Oscar, mas talvez esteja visualizando errado a situação. Além do mais, as tendências mudam. É bem possível que alguns filmes comecem a ganhar mais força, como OS REJEITADOS. No terreno das atuações, ao que parece o Oscar para Robert Downey Jr. e Da’vine Joy Randolph já está assegurado, segundo alguns especialistas. A ver.

Quanto aos dois prêmios novos criados, achei interessante darem visibilidade à comédia stand-up. Fiquei até curioso para ver alguns dos indicados. E a categoria mais polêmica, “melhor realização cinematográfica e em bilheteria”, só o nome já é um pouco tosco, mas gosto da maioria dos indicados, ao menos daqueles que vi. Até diria que os indicados a essa categoria são melhores que os indicados às categorias principais. Imagina só: tem JOHN WICK 4 – BABA YAGA, GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 e MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS: PARTE UM. Ganhou BARBIE, como esperado, o que muitos veem como prêmio de consolação, mas isso vai render postagens, comentários e outros debates ao longo dos dias.

No mais, a festa foi um pouco chata, mas dois atores/comediantes deram o ar de suas graças e fizeram a alegria de todos: Will Ferrell e Kristen Wiig. Muito divertida a brincadeira que fizeram. E não é a primeira vez que eles dão esse show show. “The Golden Globe has not changed”, diz no final Will, fazendo rir até o Harrison Ford, que tem fama de ranzinza.



Prêmios da Noite

Cinema

Melhor Filme (Drama): OPPENHEIMER
Melhor Filme (Comédia/Musical): POBRES CRIATURAS
Melhor Direção: Christopher Nolan (OPPENHEIMER)
Melhor Ator (Drama): Cillian Murphy (OPPENHEIMER)
Melhor Ator (Comédia/Musical): Paul Giamatti (OS REJEITADOS)
Melhor Atriz (Drama): Lily Gladstone (ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES)
Melhor Atriz (Comédia/Musical): Emma Stone (POBRES CRIATURAS)
Melhor Ator Coadjuvante: Robert Downey Jr. (OPPENHEIMER)
Melhor Atriz Coadjuvante: Da’vine Joy Randolph (OS REJEITADOS)
Melhor Roteiro: Justine Triet e Arthur Arari (ANATOMIA DE UMA QUEDA)
Melhor Trilha Sonora: Ludwig Göransson (OPPENHEIMER)
Melhor Canção Original: Billie Eilish e Finneas O’Connell por "What was I made for?" (BARBIE)
Melhor Animação: O MENINO E A GARÇA
Melhor Filme em Língua Estrangeira: ANATOMIA DE UMA QUEDA (França)
Melhor Realização Cinematográfica e em Bilheteria: BARBIE

Televisão

Melhor Série (Drama): SUCCESSION
Melhor Série (Comédia/Musical): O URSO
Melhor Minissérie, Série Antológica ou Telefilme: TRETA
Melhor Ator de Série (Drama): Kieran Culkin (SUCCESSION)
Melhor Ator de Série (Comédia/Musical): Jeremy Allen White (O URSO)
Melhor Ator em Minissérie, Série Antológica ou Telefilme: Steven Yeun (TRETA)
Melhor Atriz de Série (Drama): Sarah Snook (SUCCESSION)
Melhor Atriz de Série (Comédia/Musical): Ayo Edebiri (O URSO)
Melhor Atriz em Minissérie ou Telefilme: Ali Wong (TRETA)
Melhor Ator Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme: Matthew Macfayden (SUCCESSION)
Melhor Atriz Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme: Elizabeth Debicki (THE CROWN)
Melhor Especial de Stand-up na TV – RICKY GERVAIS - ARMAGEDDON



quinta-feira, janeiro 04, 2024

PROMÈNE-TOI DONC TOUT NU!



Tenho tanto filme badalado para comentar, mas escolho justamente um que nunca foi lançado no Brasil e pouca gente vai lembrar. Na verdade, seria um filme que ficaria esquecido se seu diretor não se tornasse um dos mais queridos da atualidade. Emmanuel Mouret foi aquele diretor que me encantou lá em 2010 com FAÇA-ME FELIZ (2009) numa das edições do Festival Varilux de Cinema Francês. E o resto é história, uma história que fui contando ao longo dos anos aqui no blog. Em busca de filmes inéditos do realizador, ainda no entusiasmo causado por seu mais recente trabalho, CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022), comecei a ir atrás de obras que nunca foram lançadas no Brasil, nem em cinema, nem em mídia física. E talvez nem mesmo em exibições na televisão. 

Curiosamente, acabei de ler uma matéria sobre a queda da popularidade da mídia física versus o aumento do uso dos serviços de streaming, e alguém que é entrevistado comenta sobre a questão da pirataria, que seria responsável pelo fim da mídia física etc. Mas há uma diferença entre pirataria e buscar filmes que você não veria em lugar algum, que muito dificilmente será lançado no Brasil e, portanto, não será comercializado. Claro que não dá para prever e ficaria feliz da vida se alguma dessas distribuidoras independentes lançassem um box com filmes de Mouret, especialmente trazendo os mais raros, mas por enquanto não há. Sem falar que existem também os curtas do realizador, que existem em quantidade maior do que eu imaginava – inclusive recentemente ele dirigiu, entre os anos de 2017 a 2019, quatro deles.

PROMÈNE-TOI DONC TOUT NU! (1999) é o primeiro (quase) longa-metragem do diretor. Com 50 minutos de duração, trata-se de uma síntese do que ele trabalharia em suas obras futuras. É possível, inclusive, fazer uma associação direta com o título mais recente do realizador, já que o protagonista é também um homem com dificuldade de dar o próximo passo, no que se refere ao relacionamento com a namorada. O título destaca uma dificuldade que o personagem tem em relação à namorada (e algo que ela cobra dele): andar nu diante dela com naturalidade.

E o interessante dos trabalhos de Mouret está no quanto ele destaca um suave e envolvente erotismo a partir de certo acanhamento do herói. No início do filme, inclusive, ele está todo de branco e chama atenção para o fato (de estar de branco), tanto para o pai, quanto para a namorada. Ele está de branco e, no entanto, não se suja, enfatiza o rapaz. Há aqui, talvez, algum tipo de moralismo ligado ao sexo, mas há também, posteriormente, um gosto escondido por brincadeiras sexuais, como quando a amiga oferece a irmã para ele fazer um experimento. E até brincam com um “cara ou coroa” para ele saber com qual das duas ele "dormirá". Lembrei, inclusive, da cena deliciosamente erótica de SÓ UM BEIJO POR FAVOR (2007), que também lida com esse lado mais tímido do protagonista.

O beijo é algo geralmente bastante valorizado na obra de Mouret e aqui não é diferente. Claro que neste é tudo ainda muito cru diante do que ele trabalharia nas obras seguintes, mas é muito bom de ver o filme com o olhar do futuro, como numa máquina do tempo, sabendo do grande cineasta que ele se tornaria, a partir de uma influência, principalmente, do cinema de Éric Rohmer, especialmente as comédias de verão, como os deliciosos PAULINE NA PRAIA e CONTO DE VERÃO.

Em breve, verei e comentarei por aqui sobre alguns curtas de Mouret. Não duvido que sejam uma beleza.

+ DOIS FILMES

ESCAPE (L'Échappée)

Basta uma imagem de Pénélope Lévêque para chamar atenção para ESCAPE (2009), terceiro curta-metragem da cineasta Katell Quillévéré, disponível na Mubi. Saber que se trata de uma obra que lida com muita sensibilidade dos desejos secretos de uma jovem por seu professor de piano é mais um motivo. Nos 16 minutos de duração, com a história se passando basicamente no quarto da jovem, o foco principal está nos olhares, explícitos por parte da moça, nem tanto assim por parte do professor. É impressão minha ou os cineastas franceses (inclusive as cineastas mulheres) são os que mais estão lidando com temas mais espinhosos? Lembrei-me do controverso ENORME, de Sophie Letourneur, que não tem nada a ver com ESCAPE no tema, mas que parece ser uma obra perigosa, por assim dizer. Um filme como ESCAPE, vejo como essencial: a arte existe também para explorar e deixar aflorar o que se passa nos corações e mentes.

CIDADE RABAT

Uma mulher na casa dos quarenta anos conquista sua liberdade depois da morte da mãe. É mais ou menos essa a trama de CIDADE RABAT (2023), de Susana Nobre, se fosse um filme de trama. Aqui importam mais as pequenas coisas, as ações ordinárias, como botar o saco de lixo na lata do outro lado da rua ou verificar com a irmã o andamento dos processos burocráticos da herança. Talvez o momento em que o filme mais traz algo um pouco mais extraordinário seja na cena da abordagem da polícia rodoviária. No mais, talvez por eu estar sonolento, me faltou uma conexão maior tanto com certa poesia do cotidiano quanto com as perdas e as vitórias da protagonista. Há também uma relação com a filha adolescente que é pouco explorada, talvez para não tirar tanto a luz da heroína.

quarta-feira, janeiro 03, 2024

O CAMINHO DA TENTAÇÃO / CAMINHO DA TENTAÇÃO (Pitfall)



Comecemos nossos trabalhos para o blog neste ano novo. O filme escolhido por mim como meu primeiro de 2024 foi pela curta duração e o resultado acabou sendo surpreendente. O CAMINHO DA TENTAÇÃO (1948) me agradou tanto que já foi colocado na minha lista de noirs favoritos. Fui checar se o filme estava no 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer. Não estava. Também André De Toth não está no livro O Cinema Americano dos Anos Cinquenta, de Olivier-René Veillon. Isso me deixou ainda mais surpreso, já que De Toth teve seu auge justamente nessa década. Seria o fato de que os trabalhos do cineasta não são tão fáceis de se estudar como autor? Ou não é nada disso? 

Os demais filmes que havia visto do realizador são bem diferentes entre si e foram apreciador em momentos bem espaçados: o terror MUSEU DE CERA (1953), o noir CIDADE TENEBROSA (1953), que eu vi por motivos de Martin Scorsese (ele o destacou em seu documentário UMA VIAGEM PESSOAL ATRAVÉS DO CINEMA AMERICANO) e o western QUADRILHA MALDITA (1959), que eu vi por motivos de Quentin Tarantino, por ocasião do lançamento de OS OITO ODIADOS. Ou seja, não dei o devido valor ainda ao cinema de De Toth, diretor que Scorsese gostava de chamar de “contrabandista”, ou seja, ele importava ideias incomuns para dentro do cinema clássico hollywoodiano.

De Toth é um cineasta húngaro que começou a fazer filmes em seu país a partir de fins dos anos 1930. Fez cinco filmes por lá, creditado como Tóth Endre) e partiu para Hollywood, dando início a um período de cinco décadas de realizações com PASSAPORTE PARA SUEZ (1943). Quando realizou O CAMINHO DA TENTAÇÃO já estava bem estabelecido e filmando com grandes estrelas dentro do sistema de estúdios da época e do clima soturno predominante. Em O CAMINHO DA TENTAÇÃO, há muito do que geralmente vemos nos exemplares desse ciclo: as armas, as sombras, a femme fatale (embora Lizabeth Scott seja bem boazinha aqui), a tentação para o homem casado, o medo e o perigo com relação à família, o personagem ardiloso e tenebroso.

E falando em Lizabeth Scott, não faz muito tempo que a vi em LÁGRIMAS TARDIAS, de Byron Haskin, realizado um ano após o filme de De Toth. No noir de Haskin, ela se apresenta com uma atuação insana e muito mais detentora do rótulo “femme fatale”. No filme de De Toth ela é um símbolo do desejo de um homem de família que logo no começo da narrativa deixa claro, inclusive para a própria esposa, que está um pouco cansado da rotina “casa-trabalho-casa”. Uma marca que o próprio roteiro deixa para que o espectador seja convencido de que uma aventura poderia cair bem. Por outro lado, a família de comercial de margarina que ele tem não deixa de ser adorável.

Fiquei pensando no quanto O CAMINHO DA TENTAÇÃO é representativo desse embate interior do homem comum americano: ao mesmo tempo que ele se vê apaixonado pela mulher atraente que acaba de conhecer, não quer perder a família ideal que construiu com muito esforço e dedicação. Se bem que hoje é fácil compreender que o homem daquele tempo estava entediado justamente por causa da estrutura familiar que ele próprio criou. E a figura da femme fatale surge como uma forma de culpar a mulher (e não o homem) pelos danos que ela causa à instituição familiar.

Mas De Toth quebra essa tendência ao mostrar uma Lizabeth Scott muito doce e que faz questão de não se envolver mais com o protagonista logo que descobre que ele é casado. Dick Powell está ótimo como esse homem comum, Jane Wyatt está adorável como a esposa carinhosa e Raymond Burr está odioso e assustador como o grande vilão. Cada manobra dele para atacar o herói da história é de arrepiar, seja a surra que ele lhe dá em plena garagem, seja o plano de envolver o ex-presidiário e causar um possível assassinato, numa das cenas mais tensas que eu vi nos últimos anos.

Outro ponto muito positivo está no o roteiro, que é simples, mas cada palavra que sai da boca dos personagens é como lâmina afiada. Não à toa eles só falam o necessário. Há momentos de muito medo e suspense e outros de angústia e gratidão. Sem falar na atmosfera de sonho que o filme parece carregar, tanto em cenas solares (Powell passeando de barco com Scott), quanto em cenas noturnas (Powell se dirigindo a pé para a delegacia). E aquele final não exatamente feliz, nem exatamente triste, é de deixar a gente com um nó na garganta.

Filme visto no box Filme Noir Vol. 6

+ DOIS FILMES

NATAL DIABÓLICO (Christmas Evil / You Better Watch Out)

Meu filme escolhido para celebrar a data comemorativa foi este NATAL DIABÓLICO (1980), de Lewis Jackson, bem menos famoso que NATAL SANGRENTO, de Charles E. Sellier Jr., para citar outro slasher com um Papai Noel psicopata. Este aqui eu até achei mais interessante, pois é um filme feito pouco antes do ano da grande febre dos slashers. Ou seja, ele tem uma preocupação menor com a contagem de corpos e procura enfatizar a psicologia do personagem quando adulto e trabalhando numa loja de brinquedos. O prólogo é muito interessante e mostra o pai de uma das crianças vestido de Papai Noel e entrando pela chaminé para deixar os presentes das crianças. O trauma que acontece logo a seguir é o garoto ver o Papai Noel fazendo sexo oral em sua mãe. Outro motivo de esse filme ser um corpo estranho dentro do subgênero é que só nos 50 minutos de narrativa é que o personagem inicia sua matança. É possível compreender que o filme não seja tão querido assim pelos fãs do gênero, mas também é possível compreender por que se tornou cultuado com o tempo, já que há algumas cenas muito boas dentro de um todo irregular. Gosto muito da cena inspirada em M – O VAMPIRO DE DUSSELDORF e da cena da entrada dele na casa de um desafeto do trabalho. O protagonista tem suas próprias noções de certo e errado e possui livros dedicados aos bons meninos e meninas e também aos maus. Ou seja, não deixa de antecipar também uma tradição forte dos slashers: a do senso de moralidade deturbada. Filme visto no box Slashers XV.

A ILHA DAS ALMAS SELVAGENS (Island of Lost Souls)

Esta primeira adaptação para o cinema de A Ilha do Dr. Moureau (1896), de H. G. Wells, é sensacional. Até hoje segue impressionando, com seu grau de perversidade e horror. Há também um pouco de lascívia, já que, entre as criaturas do Dr. Moureau, vivido com brilhantismo por Charles Laughton, está uma mulher que será usada como objeto de desejo (e experimento) para o visitante da ilha, o náufrago vivido por Richard Arlen. A ILHA DAS ALMAS SELVAGENS (1932), de Erle C. Kenton, é curtinho (tem apenas 70 min), passa voando, e a atmosfera da selva e das criaturas faz parte da graça. A Paramount aproveitou a popularidade que o gênero horror estava ganhando naquele momento pós-depressão, especialmente a Universal, para também capitalizar numa obra que hoje não é tão popular quanto deveria. Filme visto no box Obras-Primas do Terror 6.