terça-feira, janeiro 30, 2024

SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO (May December)



Quando eu percebo que não tenho a necessária intimidade com a poética de um cineasta, eu, vez por outra, procuro algum texto no Senses of Cinema que busque, em alguns parágrafos muito bem escritos, a essência do artista. O curioso é que o texto lá no referido site sobre o cineasta em questão, Todd Haynes, é de 2002. Ou seja, LONGE DO PARAÍSO (2002) não havia sequer sido lançado nos cinemas quando o texto foi escrito. Mesmo assim, com apenas três longas e três curtas do diretor, até então lançados, o autor do ensaio, Keith Uhlich, buscou desvendar os segredos do cineasta, que já naquela época tinha certa aura de mistério em suas obsessões e escolhas.

Hoje continuo achando a poética de Haynes deliciosamente misteriosa e intrigante. SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO (2023) aparece como que para confirmar essa característica, ou pelo menos essa impressão. Dos filmes que vi do diretor, a partir de MAL DO SÉCULO/A SALVO (1995), passando por VELVET GOLDMINE (1998), NÃO ESTOU LÁ (2007), a minissérie MILDRED PIERCE (2011), CAROL (2015) e o documentário THE VELVET UNDERGROUND (2021), entre outros, vamos buscando elementos em comum, alguns nem sempre perceptíveis.

O longa de ficção anterior de Haynes, O PREÇO DA VERDADE (2019), não parecia ser dele, não parece uma obra de autor, o que deixou no ar certo sentimento de que ele estaria se desprendendo de seus maiores interesses. Mas talvez seja só impressão mesmo, por mais que seja difícil não pensar no filme como algo quase esquecível. Eis que SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO traz de volta seu interesse pelas personagens femininas misteriosas e fascinantes. E pode, sim, ser visto como um de seus melhores e mais sólidos trabalhos.

O filme é inspirado na história de Mary Kay Letournou, uma professora de ensino fundamental que foi pega traindo o marido com seu aluno da sexta série, em 1996. O menino tinha apenas 12 anos, enquanto ela tinha 34. O caso foi parar em todos os jornais e principalmente nos tabloides. E isso continuou a ser alimentado e ganhando ainda mais força, já que ela engravidou do adolescente na prisão e depois ambos se casaram. Vili Fualaau, o menino que se tornaria homem, a vítima do abuso, cuidou de Mary até o fim de sua vida, apesar de eles terem se separado após 12 anos de casados, quando ela morreu de câncer de cólon.

Todd Haynes tinha material para recontar essa história se quisesse. E possivelmente faria uma obra tão vulgar quanto atraente para várias audiências. No entanto, ele preferiu contar uma outra história. Na trama do filme, Natalie Portman é Elizabeth, uma atriz que ganha acesso à residência da família de uma mulher que agora é casada com o jovem de quem abusara e depois pagara na cadeia por seu crime. A mulher, Gracie, é vivida brilhantemente por Julianne Moore, em sua quinta colaboração com Haynes. A história, portanto, se inicia mais de duas décadas após o escândalo/crime que mudou a vida de várias pessoas, inclusive da família anterior de Gracie.

A intenção de Elizabeth é perceber detalhes nas características e nos trejeitos de Gracie para construir sua personagem para o filme, e também de investigar o máximo que puder dos detalhes do ocorrido no passado. No tempo presente em que se passa a história, o primeiro filho de Gracie e de Joe (Charles Melton) agora está no momento de sair de casa, de entrar para a universidade. E é estranho quando vemos na mesma mesa o pai (Melton) e o filho (Gabriel Chung), ambos parecendo irmãos, ambos parecendo filhos de Gracie. Depois veremos outros detalhes do relacionamento entre Gracie e Joe, seus constantes choros à noite, e as usuais tentativas de Joe de confortá-la. Seria o choro dela ocasionado por culpa, uma espécie de chantagem emocional disfarçada, tristeza pela falta de trabalho ou por se sentir injustiçada ao longo de todos esses anos? A propósito, assim que Elizabeth chega na casa, há um pacote que a família recebe no portão. O conteúdo: fezes.

Um dos aspectos mais impressionantes de SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO, entre tantos que há, é como Elizabeth, ao buscar copiar Gracie, também busca assumir um papel de predadora, inclusive seduzindo Joe. Isso traz camadas para Elizabeth que a enriquecem e a tornam quase tão misteriosa quanto Gracie. Em determinado momento, Haynes as coloca juntas no mesmo quadro, enquanto elas experimentam uma maquiagem, e parece que algo muito sério está prestes a acontecer. E é como se todos os espectadores do cinema prendessem a respiração naquele instante. Além do mais, é essa cena que mais guarda semelhanças com a obra-prima de Ingmar Bergman, PERSONA.

As cenas entre Julianne Moore e Natalie Portman, quando estão sozinhas, transbordam intensidade e energia. É algo mágico. Vale destacar também a ótima atuação de Charles Melton, como a pessoa que começou uma família cedo demais – a cena da discussão de Melton com Moore, lá perto do final, é de dar um aperto no coração. Que bom que este filme teve exibição nos cinemas brasileiros (nos Estados Unidos e Canadá, foi para a Netflix). O cinema é o lugar ideal para apreciar esse tipo de obra, que também se destaca pela trilha sonora pouco convencional. Inclusive, a fotografia de Christopher Blauvelt, colaborador constante de Kelly Reichardt, é um destaque assim que botamos os olhos nas primeiras cenas. O filme foi rodado em película e sua iluminação faz lembrar os trabalhos de Vilmos Zsigmond para certos clássicos da Nova Hollywood.

+ DOIS FILMES

MAESTRO

Havia me esquecido do quanto Carey Mulligan é uma atriz extraordinária. Talvez porque minha última lembrança dela tenha sido com BELA VINGANÇA, de 2020, um filme que foge um pouco do registro realista. MAESTRO (2023), segundo longa-metragem na direção de Bradley Cooper, trata mais uma vez de música, seguindo os passos de NASCE UMA ESTRELA (2018), e valorizando, como bom filme de ator que é, as interpretações. Há pelo menos uns três embates de interpretações entre Cooper e Mulligan que já me fazem pensar nos clipes do Oscar 2024. Como não achei a vida de Leonard Berstein tão extraordinária assim, o que mais me chamou a atenção no filme foram as experimentações visuais, com uma fotografia em preto e branco de alto contraste que a princípio me lembrou Orson Welles e CIDADÃO KANE e em seguida o uso de cores vivas que lembram produções visuais das épocas retratadas. O começo do filme me causou um pouco de distanciamento, ainda que um distanciamento interessante. O distanciamento diminui com as cores e com uma maior ênfase nos dramas do casal, quando o maestro passa a pular mais a cerca e sair com rapazes, por quem sempre teve atração. A segunda parceria com o diretor de fotografia Matthew Libatique rendeu bons frutos e o trabalho de maquiagem está perfeito.

ANATOMIA DE UMA QUEDA (Anatomie d'une Chute)

A Palma de Ouro deste ano, ANATOMIA DE UMA QUEDA (2023), é um filme surpreendente e que vai quebrando as expectativas ao longo de toda a metragem. Em alguns momentos me fez lembrar os thrillers americanos mais convencionais, mas apenas pelos pontos de partida na trama. Tanto que minha cabeça já acostumada com os "supercines" da vida ficou me fazendo pensar em reviravoltas de última hora. Há também a questão da dúvida em torno da protagonista: seria ela culpada ou inocente da morte do marido? Foi suicídio, acidente ou homicídio? O uso dos flashbacks é absolutamente genial e há momentos em que a câmera se posiciona no meio das pessoas no tribunal como se não tivéssemos uma visão privilegiada da narrativa (e, de fato, não temos tanto assim). Sandra Hüller está excelente desde o começo e o garotinho Milo Machado Graner é sensacional. No mais, que beleza que foi encontrar o Cinema do Dragão lotado em plena quinta-feira para ver o suposto melhor trabalho de Justine Trier durante o Festival Varilux de Cinema Francês.

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