quarta-feira, abril 26, 2023

CAÇADAS ERÓTICAS



Nas lembranças do Facebook de hoje, aparece a pequena homenagem que fiz ao Seu José Wilson Baltazar, falecido vítima da COVID-19, logo nos primeiros meses da pandemia, três anos atrás. Seu Wilson, mesmo octogenário, era um entusiasta do erotismo no cinema. Até mesmo no documentário em curta-metragem sobre ele, dirigido por Gabriel Petter, ele fez questão de enfatizar essa sua forte relação, como se a libido não tivesse prazo de validade, como se o tesão pelo cinema seguisse passeando lado a lado, ao longo do tempo, com o tesão pelo sexo.

E por que falar sobre o Seu Wilson numa postagem sobre CAÇADAS ERÓTICAS (1984)? Ora, é óbvio fazer esse tipo de relação. Assim como ele, ainda tenho uma atração por esse tipo de obra mais “sem-vergonha”, bem típica do espírito do cinema produzido na Boca (e também em várias produções da Embrafilme) daquele período. Minha atração certamente não é mais a mesma de quando era adolescente ou na casa dos 20, é claro, mas é sempre bom perceber que esse tipo de obra que valorizava tanto o sexo segue muito mais apimentada e excitante do que a grande maioria das produções de sexo explícito feitas em esquema industrial nos dias de hoje.

Outra coisa que é preciso contextualizar é que lá naqueles anos 1980, não havia a facilidade de acesso à pornografia como hoje, a não ser que a pessoa comprasse uma revista de sacanagem nas bancas, ou frequentasse os cinemas empoeirados e com cheiro de “qboa” que exibiam tais filmes. Não que eu esteja igualando CAÇADAS ERÓTICAS e as produções mais respeitadas e populares da Boca como sendo de sexo explícito. Na verdade, a chegada do sexo explícito veio para acabar com esse tipo de cinema, que contava com a atuação de diretores talentosos (alguns geniais) e astros e (principalmente) estrelas adoradas pelos fãs. A questão é que esse tipo de erotismo softcore fazia sucesso pela menor facilidade do acesso ao hardcore

Esta produção em segmentos da Dacar, produtora do rei das pornochanchadas David Cardoso, se junta a outras mais bem avaliadas da companhia, como A NOITE DAS TARAS (1980), AQUI, TARADOS! (1981), PORNÔ! (1981) e A NOITE DAS TARAS II (1982), isso apenas para citar os filmes de episódios, geralmente dirigidos por mais de um cineasta. Vale destacar que Cardoso foi também produtor de filmes importantes de cineastas de alto gabarito, como Jean Garrett, Alfredo Sterheim, Ody Fraga e Ozualdo Candeias, além de também se aventurar na direção.

CAÇADAS ERÓTICAS é um desses casos. A direção é assinada por Cardoso e Cláudio Portioli, esse segundo mais conhecido como diretor de fotografia de dezenas de filmes importantes do nosso cinema. Este exemplar do cinema erótico de resistência, embora tangencie o pornográfico, é um belo exemplar de construção de comédia com erotismo. É um filme de segmentos irregular (como geralmente acontece com esse tipo de obra), e com um tipo de humor deliciosamente vulgar, pensado para um público mais popular ou para aquelas pessoas mais finas, porém despidas de preconceito.

O primeiro segmento, com participação de David Cardoso e Matilde Mastrangi, se diferencia bastante dos outros dois pelo casal de astros presente em toda sua glória e beleza, além do luxo de ser rodado em Portugal, com várias cenas externas, inclusive. As cenas de sexo entre os dois são bem quentes e não há uma preocupação com uma trama, por assim dizer, sendo Mastrangi uma espécie de espiã portuguesa tarada e Cardoso a sua vítima favorita.

O episódio 2 traz algo mais parecido com uma trama, com a personagem de Sonia Garcia disposta a se vingar do namorado, transando com o primeiro homem que aparecer pelo caminho. Acontece que o namorado também não quer ficar atrás e há um surpreendente desfecho. No terceiro segmento, um grupo de mulheres punks vive de aplicar golpes em homens, aproveitando-se da fraqueza deles no que se refere a sexo. Esse é o mais escrachado e “sujo” dos três. 

Apesar de as cenas de sexo serem simuladas, nota-se, principalmente no segmento com Cardoso e Mastrangi, um tipo de desprendimento que faz com que tais cenas pareçam bastante espontâneas e quase reais – tanto David quanto Matilde se mostram muito tranquilos com seus belos corpos nus em ação, além de entrarem com muita vontade na proposta do humor. Além do mais, ao longo do filme, há várias cenas em que são mostradas revistas pornográficas sendo folheadas pelos personagens ou mesmo estampadas nas bancas, como um claro documento daquele delicado (e triste?) período de transição – a própria Dacar aderiria ao sexo explícito nos anos seguintes, como forma de sobrevivência. Afinal, os boletos precisam ser pagos.

+ TRÊS FILMES

A RAINHA DIABA

Ver A RAINHA DIABA (1974), de Antonio Carlos da Fontoura, no cinema é uma experiência muito especial, pois fica mais grandioso, mais shakesperiano até, com sua rede de intrigas entre bandidos para destronar a dona da boca, a personagem do título, vivida por Milton Gonçalves. Mas, pra mim, quem rouba a cena mesmo, sempre que aparece, é Nelson Xavier, como um dos bandidos associados à Diaba, mas que planeja traí-la e se tornar o novo chefão. Para isso, ele faz um jogo de sedução impressionante com o personagem do jovem Stepan Nercessian. Como ninguém presta mesmo, o que resta é apreciar esse sangrento filme de crime brasileiro, muito ousado para aqueles anos de chumbo em que vivia o Brasil. Há uma trilha sonora rock que combina com as cenas de violência e com as cores muito vivas da fotografia de José Medeiros (MEMÓRIAS DO CÁRCERE). Grande e corajosa performance de Odete Lara, como a cantora de bordel e prostituta que sofre por amar a pessoa errada. O filme também funciona como um documentário sobre a época, com a moda masculina mais sexualizada, e as gírias adotadas pela malandragem carioca.

NOITES ALIENÍGENAS

Muito bom ver que o nosso cinema, aos poucos, está conseguindo abarcar a dimensão do nosso vasto território e de nossa rica cultura. O premiado NOITES ALIENÍGENAS (2022), de Sérgio de Carvalho, primeiro filme do Acre a ter uma repercussão nacional, chama a atenção desde o início, com sua proposta de proximidade da câmera em seus personagens. Chico Diaz como o traficante hippie simpático já conquista de cara, cantando "Cachorro Urubu", do Raul Seixas. Aos poucos vamos conhecendo mais personagens. Alguns deles ganharão mais força na trama; outros, talvez tenham tido suas tramas perdidas na sala de montagem, como a menina que sonha em estudar medicina (na Bolívia ou em São Paulo). Aliás, as menções à Bolívia e ao Peru (como também visto em outro filme ambientado no norte do Brasil, RIO DO DESEJO) deixam claras a maior proximidade dessa região com os demais países da América do Sul, por mais que a unificação do português numa área tão vasta como a do Brasil seja admirável. NOITES ALIENÍGENAS também tem participação ativa dos povos indígenas em cena importante, assim como mostra a força das igrejas evangélicas, por mais que o filme aponte seus holofotes mais para os grupos de traficantes locais e a consequência na vida das pessoas. O filme representa um momento muito especial de um novo cinema brasileiro.

O RIO DO DESEJO

Baseado em conto de Milton Hatoum, O RIO DO DESEJO (2022), de Sérgio Machado, conta a história de um quadrado amoroso formado por uma jovem mulher (Sophie Charlotte) e três irmãos (Daniel de Oliveira, Gabriel Leone e Rômulo Braga). Eu diria que o filme tem um potencial incrível e que poderia ter rendido muito melhor na sua dramaticidade. Sem querer dar spoiler, há uma cena perto da conclusão que poderia causar arrepios e muito choro se fosse feita com mais inspiração. Ainda assim, temos um belo elenco, várias cenas marcantes e gosto muito quando Sophie Charlotte está com Gabriel Leone. É quando a química parece de fato funcionar. Apesar de ser uma história de caráter universal, o fato de se passar no Amazonas, longe da capital, faz a diferença, até por não termos tantos filmes assim explorando a região norte do país sem apelar para algum tipo de exotismo. Charlotte está apaixonante, como tinha de ser.

domingo, abril 23, 2023

BEAU TEM MEDO (Beau Is Afraid)



Na época que vi HEREDITÁRIO (2018), fiquei tão empolgado que até cheguei a revê-lo em outra sessão. E fico feliz ao ver que há um punhado de novos e talentosos diretores fazendo cinema de horror (ou algo tangenciando o gênero) na atualidade, sendo que Ari Aster é um dos que se destaca. MIDSOMMAR – O MAL NÃO ESPERA A NOITE (2019) ajudou a ressaltar a imagem de grande realizador, embora ali já se perceba algum tipo de autoindulgência, talvez pela duração do filme, que até possui uma versão “do diretor”, estendida, lançada inclusive em BluRay no Brasil. E este par de filmes foi suficiente para que a sessão de ontem no Cinema do Dragão de BEAU TEM MEDO (2023) estivesse lotada. É interessante ver quando há um público entusiasmado por um diretor em especial.

Mas BEAU TEM MEDO tem algo de muito errado, dentro de seus acertos eventuais – se bem que cada vez que tenho pensado mais no filme esses acertos não se parecem mais acertos. E há o mal estar. Não sei se o mal-estar provocado pelo filme (semelhante a uma espécie de angústia) vem do turbilhão de perturbações mentais, grandes frustrações e possíveis descobertas do protagonista, ou se a verborragia de seu terceiro ato já estava enchendo o saco, por mais que traga alguma coisa de interessante na temática, em questões clássicas de psicanálise freudiana. (Poderia culpar também o meu momento pessoal atual, com problemas familiares que têm tirado o meu sono e aumentado minha ansiedade.)

O que eu gostei no início do filme foi da apresentação desse personagem que tem um jeito de ver o mundo todo desvirtuado por uma ótica própria – embora no final toda a narrativa pregressa passe a ser questionada numa suposta reviravolta. Ao final, tive uma sensação semelhante ao que passei durante o torturante sessão de SINÉDOQUE, NOVA YORK, de Charlie Kaufman, e isso, meus amigos, não é nada bom. Na cena do julgamento, inclusive, quando o filme atinge o limite do insuportável, parece que minha vontade foi atendida, ao menos. Mas isso é terrível.

Uma das coisas que me deixou ao mesmo tempo incomodado e irritado foi o quanto Beau (Joaquin Phoenix) passa o filme inteiro sendo violentado, pisoteado, atropelado, esfaqueado, humilhado, torturado e ainda assim fica muito temeroso de perder sua vida. Sei que isso não pode ser nada legal de se pensar (desistir de tudo), pois as vidas podem mudar de rumo em algum momento, mas o filme proporciona esse tipo de pensamento (semelhante à experiência de DANÇANDO NO ESCURO, do Lars Von Trier). No meio da história, recebemos uma informação do próprio protagonista (fornecida por sua mãe num flashback) que se ele um dia transar, ele morrerá imediatamente do coração, como aconteceu com seu pai, com seu avô etc. Que isso seria algo genético. Ou seja, temos mais um filme sobre a possessividade e a perversidade de uma mãe judia, que me fez lembrar o segmento de Woody Allen em CONTOS DE NOVA YORK, mas certamente há vários outros exemplos melhores.

Algumas cenas poderão ficar na memória, como as do bairro de fim do mundo, a cena de sexo de Beau, ou as memórias de sua infância, quando conhece uma garota e se apaixona. A sequência de animação, dirigida pelos chilenos Cristobal León e Joaquín Cociña, também é muito boa e quase nos faz esquecer do que acontecia na trama em live action. Mas isso é pouco para um filme de três horas de duração e para um diretor que já faz autocitações (decapitação, queda de um homem das alturas), tendo um conjunto de obra ainda pequeno para tal. De todo modo, BEAU TEM MEDO ainda tem meu respeito. Tem a assinatura de seu realizador, que se mostrou bastante talentoso, e que imagino que deveria fazer uma obra “menor” da próxima vez – esta é a produção mais cara da A24, tendo custado 55 milhões de dólares. Ah, e por favor, que seja um filme plasticamente bem menos feio.

+ TRÊS FILMES

SUZUME (Suzume No Tojimari)

É uma oportunidade e tanto poder conferir no cinema uma animação de Makoto Shinkai. Lembro com carinho do meu primeiro  contato com seu trabalho, no início dos anos 2000, com seus curtas SHE AND HER CAT (1999) e VOICES OF A DISTANT STAR (2002). Depois só tive contato novamente com sua arte através do ótimo longa YOUR NAME. (2016), talvez o seu mais bonito trabalho. Este SUZUME (2022), por ser mais de fantasia do que de ficção científica, me pega menos, mas em diversos momentos me vi encantado com a riqueza visual do filme, com a assinatura marcante de mostrar o céu da maneira mais bonita possível, como se o mundo fosse sempre cheio de mistério e beleza. E mistério é algo que não falta em SUZUME, que conta a história de uma estudante do ensino médio que conhece um rapaz e acaba entrando em contato com um mundo de portas que se abrem para o sobrenatural, afetando o Japão através de terremotos, algo que já faz parte dos traumas que o próprio país carrega ao longo de séculos. E há também o trauma da bomba atômica, que aparece de forma simbólica inúmeras vezes no filme. Aliás, não apenas neste filme, como já sabemos, mas Shinkai ajuda a enriquecer, de forma poética, essa cicatriz. O filme é atraente para o público infantil também por trazer a cadeira de três pernas e o gato falante. Como história de amor, não vejo como sendo tão forte quanto YOUR NAME., mas como um road movie "viajante" é mais rico. Também gosto de como o filme termina, fechando questões essenciais à memória da jovem protagonista.

O URSO DO PÓ BRANCO (Cocaine Bear)

Eis um filme que tem seus momentos divertidos e que já conta com uma premissa das mais atraentes, além de ter uma vontade forte de abraçar o filme B e a comédia. Apesar das cenas de desmembramento e dos ataques sangrentos do urso às pessoas, O URSO DO PÓ BRANCO (2023) é bem leve. Até acho que se investisse mais no suspense teria resultados melhores. A cena do urso subindo as árvores, por exemplo, ganharia bastante se adicionada a um pouco de medo e apreensão. Do elenco, destaque para as crianças. Aliás, corajoso da parte de Elizabeth Banks idealizar esse tipo de filme mais absurdo incluindo crianças, mesmo lembrando que ela tem no currículo um dos filmes mais inacreditáveis do novo século, a comédia de gosto duvidoso PARA MAIORES (2013), em que dirigiu um dos segmentos.

O TRUQUE DA GALINHA (Feathers)

Numa trama surreal, numa festa de família, num truque de mágica que dá errado, homem desaparece e dá lugar a uma galinha. Depois disso, a esposa tenta resolver os inúmeros problemas tendo que se virar sem dinheiro. Aliás, é intencional o filme mostrar close-ups da mulher pagando sempre por bens e serviços que surgem como consequência do ocorrido na festa. Com um senso de humor muito particular, no esquema "rir para não chorar", o filme acompanha uma jornada de surpresas, sofrimentos e às vezes risos. Além de trazer um enredo bastante original, O TRUQUE DA GALINHA (2021), de Omar El Zohairy, ainda funciona como um meio de entendermos e nos solidarizarmos com pessoas pobres que vivem em territórios desolados do Egito. Gosto da conclusão e de inúmeras situações, embora ache que o filme poderia ser um pouco menor em sua duração.

sexta-feira, abril 21, 2023

A MORTE DO DEMÔNIO – A ASCENSÃO (Evil Dead Rise)



Muito provavelmente, THE EVIL DEAD (1981) foi o filme de terror mais marcante do início de minha cinefilia. Foi um barato ver o público pulando em meio aos jump scares e se divertindo com o senso de humor muito próprio que casa incrivelmente bem com o horror. Lembro que fui mostrar, anos atrás, o DVD do filme a meu sobrinho e, com 10 minutos de projeção, ele ficou com medo e pediu para parar. Vi o filme no lançamento nos cinemas brasileiros, em 1989, no saudoso Cine Fortaleza, local de muitas emoções em meus primeiros anos como cinéfilo. Chegou com o título “Uma Noite Alucinante – Como Tudo Começou” (eu não tenho total certeza desse subtítulo e não achei em lugar nenhum na internet, mas tenho quase certeza e lembro das letras vermelhas na fachada do cinema). A escolha por esse subtítulo aconteceu porque o mesmo filme já havia sido lançado no mercado de vídeo como “A Morte do Demônio” em 1985 (será que tinham medo de competir com o VHS?) e a sequência de 1987 havia saído em vídeo como “Uma Noite Alucinante”. Ou seja, há essa confusão de títulos por aqui. Mas tudo bem, um monte de filme de horror barato e bacana sofre com isso também, tanto aqui, quanto nos Estados Unidos, na Itália etc. 

Sei que naquele maio de 1989, eu saí do cinema tão feliz com a sessão, com aquele espetáculo tão singular, que chamei meus amigos da igreja para rever o filme comigo no fim de semana. Acho que foi a segunda vez que fiz isso – a outra foi com CORRA QUE A POLÍCIA VEM AÍ, que fiz questão de levar meus amigos para ver também. Aliás, esse foi outro marco de cinema em que o público embarcou com muito prazer. Se THE EVIL DEAD foi o filme com o maior número de pulos da cadeira por minuto, a comédia do trio ZAZ foi o título com o maior número de piadas por segundo – e que pelo menos naquela época funcionou bem demais para a audiência. 

Os anos 1980 trouxeram essa marca de humor e leveza que foi se perdendo com o tempo. Os filmes de horror do período eram recheados de muito humor, às vezes de maneira não intencional. Tanto que, na época que vi HELLRAISER – RENASCIDO DO INFERNO, e me deparei com um drama muito sério e pesado, fiquei impressionado com esse novo encaminhamento, um prenúncio de uma nova tendência. O atual momento é de filmes de horror menos centrados no humor e mais na dramaticidade.

Mexer com a série clássica de Sam Raimi e todas as suas hipérboles e manter a aura séria é algo corajoso, mas não impossível, como pôde se ver em A MORTE DO DEMÔNIO (2013), o remake dirigido por Fede Alvarez, que ficou muito bonito visualmente e que se adequou aos novos tempos. Eu diria que o novo filme, A MORTE DO DEMÔNIO – A ASCENSÃO (2023), dirigido por Lee Cronin, é ainda mais bem-sucedido.

Ao optar por se distanciar da floresta e contar uma nova história a partir das ideias originais – o livro e como os corpos mortos se comportam quando invadidos pelos maus espíritos –, Cronin (THE HOLE IN THE GROUND, 2019) se vê com liberdade para criar imagens belas e poderosas, algumas delas impressionantes, como uma das cenas vistas pelo olho mágico do apartamento onde se passa a maior parte da trama. Além do mais, o próprio prólogo já adianta que o novo capítulo da franquia não se destacará pelas sutilezas no uso de imagens gráficas. O gore é muito bonito e é de dar gosto ver os personagens banhados em sangue, embora uma das cenas de desfecho tenha me parecido muito conveniente em termos de enredo. Mas, se não quero ver o filme como uma obra tão preocupada com o enredo, é tranquilo relevar.

Na trama, Beth (Lily Sullivan) é uma jovem mulher que trabalha para uma banda de rock e volta para Los Angeles a fim de falar com sua irmã mais velha Ellie (Alyssa Sutherland) e rever seus três sobrinhos, dois adolescentes e uma criança. A família habita um apartamento que, depois de um terremoto, fica sem acesso às escadas. É devido ao terremoto também que o filho de Ellie achará o livro dos mortos e alguns vinis com conteúdo sinistro. Os discos e o livro desencadearão a entrada em cena de demônios ou espíritos malignos que se apossam dos corpos mortos de suas vítimas. Como acontece no primeiro e nos outros filmes, cada pessoa que é morta por essa criatura maligna também se transforma. E aqui capricharam bastante nos efeitos de maquiagem. 

Senti falta de uma construção maior de suspense ou mesmo de medo, mas acredito que esse segundo aspecto depende mais do espectador – não sou mais o adolescente que viu o primeiro filme no cinema e saiu encantado e gratificado pelos sustos, pelo gore e pelo humor. A opção por um trabalho mais sério, como o filme de 2013, é compreensível. O cinema de horror mais “sério” de hoje não impede que o novo diretor homenageie não apenas Sam Raimi, mas também vários cineastas do gênero dos anos 1980, na beleza plástica, nas ideias e na forma feliz como lida com os clichês.

+ TRÊS FILMES

PÂNICO AO ANOITECER (The Town That Dreaded Sundown)

Considerado um precursor de SEXTA-FEIRA 13, PÂNICO AO ANOITECER (1976), de Charles B. Pierce, é baseado numa história real ocorrida numa pequena cidade do interior do Arkansas, que sofreu com os ataques de um homem encapuzado que usava diferentes métodos de matar suas vítimas, escolhidas aparentemente de maneira aleatória. Há uma narração usada para enfatizar o tom documental que faz lembrar alguns noirs produzidos na velha Hollywoood, mas que também funciona muito bem para que o filme não precise tanto de uma estrutura muito amarrada. Afinal, os personagens principais são os policiais encarregados de pegar o tal "assassino fantasma". Um dos méritos do filme é ter um visual bem cru e realista, que lhe confere uma veracidade que só perde um pouco quando o personagem do próprio diretor aparece fazendo algumas trapalhadas. Parece ter sido uma tentativa de tornar o filme menos pesado para as audiências, usando um alívio cômico pouco engraçado. Há cenas bem intensas e aterrorizantes e destaco a da jovem que é amarrada na árvore e morta com o uso de um trombone. Menos pela morte e mais pela ótima performance da atriz. Também podemos destacar outra atriz que se saiu muito bem em cena aterrorizante com o assassino, Dawn Wells, cujo nome aparece em destaque no cartaz. Filme visto no box Slashers VIII.

A FACE DA CORRUPÇÃO (Corruption)

Fico imaginando o impacto que este filme deve ter tido na época de seu lançamento, pois até hoje é uma obra que tem um grau de intensidade na violência e nos atos dos personagens que aterrorizam, especialmente quando a trama passa a se tornar mais interessante do que se esperava. Na história, Peter Cushing é um cirurgião que namora uma modelo (Sue Lloyd) e que se dedica a reconstituir parte do rosto dela, depois que um acidente numa boate a deixa com uma queimadura. A FACE DA CORRUPÇÃO (1968), de Robert Hartford-Davis, une o filme de cientista maluco com o filme de psicopata, e vai ficando mais interessante quando entram novos personagens, lá pela metade da narrativa, trazendo boas reviravoltas. Gosto do uso da câmera distorcida na cena do trem. Filme visto no box Obras-Primas do Terror 19.

TRILOGIA DE TERROR (Trilogy of Terror)

Seria interessante se atualmente a onda de filmes de segmentos ainda estivesse em alta. Este telefilme dirigido por Dan Curtis e baseado em contos de Richard Matheson contém todos os segmentos estrelados por Karen Black. O primeiro segmento de TRILOGIA DE TERROR (1975) a mostra como uma professora de literatura que é cortejada por um de seus alunos. O final é surpreendente. O segundo segmento mostra a atriz vivendo duas personalidades diferentes e o terceiro é o que apresenta o boneco de madeira da capa, que ganha vida e sai perseguindo a mulher pelo apartamento. É o mais longo dos três e tem um suspense eficiente, embora eu ache que tenha sido mais impactante na época de sua exibição na TV. Filme visto no box Obras-Primas do Terror 19.

quinta-feira, abril 20, 2023

OLHOS DE SERPENTE (Snake Eyes)



Eu guardo uma lembrança muito boa do impacto que tive nos primeiros minutos de OLHOS DE SERPENTE (1998), semelhante ao que aconteceu em O RESGATE DO SOLDADO RYAN, de Steven Spielberg, curiosamente, uma produção do mesmo ano. Ou seja, na minha cabeça, eram filmes brilhantes em seus minutos iniciais, mas que perdiam força ao longo da metragem. Minha percepção mudou, pelo menos em relação ao filme de Brian De Palma, já que não tive oportunidade de rever o Spieberg ainda. E mudou para melhor. A força do filme não está apenas nesses atordoantes minutos iniciais, na cena do assassinato na luta de boxe e no pânico na multidão. Até porque De Palma retorna algumas vezes a esse momento ao longo da trama, de diferentes perspectivas, seja através de memórias (uma delas muito suspeita), seja por registros de câmeras.

OLHOS DE SERPENTE é um dos filmes em que De Palma mais explora seu talento com jogos de câmera e até o split-screen parece mais inovador. Trata-se de uma espécie de filme-síntese do autor, trazendo de volta questões de confiança e desconfiança nas relações, como nos anteriores O PAGAMENTO FINAL (1993) e MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996). Acredito que o filme, com uma produção que conta com tantos figurantes e tanto apuro técnico, só tenha sido possível por causa do sucesso nas bilheterias de MISSÃO: IMPOSSÍVEL. Porém, não chegou a se pagar no mercado americano: custou cerca de 100 milhões e só faturou 40 nas bilheterias.

OLHOS DE SERPENTE é talvez o filme em que De Palma mais trabalha o aspecto formal em detrimento do conteúdo. Há uma estranheza no início, mas não uma estranheza semelhante à de SÍNDROME DE CAIM (1992), que remete talvez a produções de gênero italianas. O uso do plano-sequência, no começo, disputa o nosso interesse com a personalidade do personagem de Nicolas Cage, um sujeito que tem um tipo de malandragem que não parece combinar com a de um policial, como logo saberemos se tratar. Ele é um sujeito que aceita subornos, faz negócios pouco honestos e vê na figura do oficial da marinha vivido por Gary Sinise a personificação da honestidade em pessoa. São como dois irmãos (tema caro a De Palma), como duas imagens retratadas num espelho deformador. Um deles parece o homem exemplar; o outro, a ovelha negra. Os duplos são complexos. Sinise é revelado como vilão, mas ele parece ter certas razões para chegar àquele caminho tortuoso; Cage é o herói, mas um herói que, no epílogo, terá que pagar também por suas falhas.

De Palma se mostra um cineasta bastante moralista, nesse sentido. Não basta o protagonista se redimir com a situação da trama principal do filme: é preciso também que suas ações pregressas sejam passadas a limpo. Sobre essa questão do moralismo, a figura da personagem feminina heroica de Carla Cugino se diferencia de outras do cineasta, no sentido de que ela sobrevive no final, e muito provavelmente por sua pureza: diferente de Nancy Allen em UM TIRO NA NOITE (1981), que estava tendo um caso com homens casados; ou de Emmanuelle Béart em MISSÃO: IMPOSSÍVEL, que traiu o marido vilão. Não sei o quanto isso se manifesta de forma consciente ou não nas intenções do realizador.

De todo modo, isso também só deixa explícito o quanto o filme é complexo nesse trabalho de construção dos duplos. Não se trata aqui de uma pessoa boa versus uma pessoa má, como em OS INTOCÁVEIS (1987) ou PECADOS DE GUERRA (1989), mas há muitos tons de cinza. E há também o fracasso de quase todos os personagens, desde o campeão boxeador que se vende, passando pelo vilão, pelas pessoas que o apoiam e finalmente pelo herói, numa visão bastante cínica da vida. E isso até pode ser simbólico se pensarmos que este filme foi a última produção de De Palma inteiramente americana. Depois disso ele precisaria do suporte de outros países para finalizar suas obras.

Sobre o plano-sequência do início, que é incrível até para os detratores do filme, acompanhamos Cage por mais de 15 minutos dentro do ginásio Millennium até o tiro que matará o secretário de defesa dos Estados Unidos, que conversava com uma misteriosa mulher de peruca loira (Cugino). Nesse plano-sequência, há uma série de coisas a se prestar atenção, uma série de personagens estranhos que a câmera faz questão de enfatizar, de modo a aumentar o clima de suspense e de atordoamento.

Trata-se de uma sequência que foi preciso ser orquestrada com um trabalho coletivo que necessitaria de talento e de muito dinheiro para sua materialização. Daí a nossa gratidão pela existência desse filme, por ocasião dos dois sucessos anteriores do diretor. Poder ver OLHOS DE SERPENTE em casa tem as suas vantagens, como poder voltar à cena quantas vezes quisermos, para estuda-la. É possível, inclusive, acompanhar com mais calma a última cena final, que acontece enquanto os créditos sobem, e que traz um interessante easter egg. Isso, após a ótima conversa final entre Cage e Cugino.

No mais, vale destacar a brilhante trilha sonora do grande Ryuchi Sakamoto, falecido recentemente. No começo, confesso que achei seu trabalho parecido com o de Pino Donaggio, responsável pela música de alguns dos melhores trabalhos de De Palma, mas, muito provavelmente, minha comparação é equivocada.

+ TRÊS FILMES

SICK

Diferente do ótimo SOZINHA (2020), o thriller anterior de John Hyams, este novo filme tem altos e baixos, momentos de extrema tensão que funcionam com muita simplicidade e outros que nos tiram o interesse. SICK (2022) é mais um filme da nova linha de slashers, sendo que este conta com Kevin Williamson no roteiro, o que pode trazer um pouco de nostalgia por causa de PÂNICO e de EU SEI O QUE VOCÊS FIZERAM NO VERÃO PASSADO. A sacada inteligente é ambientar a trama em 2020, em plena pandemia de COVID-19, e trazer a questão das festas clandestinas, as chamadas festas do fim do mundo. Achei o prólogo interessante, mas excessivamente simples, mas é o que dá o tom desse filme que opta pela básico, inclusive com uma pouca quantidade de personagens, e pela reciclagem dos clichês de maneira eficiente.

O PERFUME DA SENHORA DE PRETO (Il Profumo della Signora in Nero)

Uma das melhores qualidades deste giallo de Francesco Barilli está em sua beleza plástica. É cada fotograma lindo que enche os olhos neste O PERFUME DA SENHORA DE PRETO (1974) ... No entanto, senti falta de me envolver mais com o drama da protagonista (Mimsy Farmer), uma mulher que fica atormentada com supostas lembranças do passado, incluindo a visita de seu eu infantil. É atípico no sentido de demorar muito a mostrar cenas de mortes explicitamente, mas é tradicional no quanto explora os traumas de infância de maneira parecida com o que se costuma ver no ciclo de filmes do gênero da época. Ainda assim, eu diria que rever cenas soltas do filme pode ajudar a guardá-lo num cantinho especial da memória afetiva, com suas cores belas e seu aspecto etéreo. Destacaria duas cenas em que o sexo agressivo se apresenta brutal o suficiente para se configurar como trauma.

AS CHAMAS DO INFERNO (Don’t Go in the House)

Ultimamente tenho ficado mais curioso para ver os slashers dos anos 70, quando o subgênero não estava tão estabelecido assim, do que os dos anos 1980, até porque os seventistas parecem mais vigorosos e violentos. AS CHAMAS DO INFERNO (1979), de Joseph Ellison, tem essa pegada, além de uma forte e explícita influência de PSICOSE. O próprio protagonista é um psicopata que mora com a mãe morta num casarão e ouve vozes para que ele se vingue de mulheres e saia matando-as. A diferença aqui é que os assassinatos são cometidos com um lança-chamas. Felizmente (ou infelizmente para os mais sádicos), há uma única morte bem mais gráfica. Depois o filme opta por não se repetir. Afinal, os slashers se caracterizam por trazer originalidade e diferença nas mortes praticadas. Assim, este filme prefere explorar o inferno interior do protagonista. Nem sempre é um bom filme, mas em alguns momentos chega a ser ótimo. Gosto das cenas finais.

sábado, abril 15, 2023

MEDUSA



Embora não tenha visto tantos filmes quanto gostaria, a quantidade de títulos que tenho visto e sobre os quais não tive tempo de escrever a respeito de maneira mais aprofundada aqui para o blog chega a ser assustadora. Atualmente, o pouco tempo que me resta após o expediente na escola tem sido para recuperar um pouco as energias e raramente tenho conseguido ver um filme inteiro, devido ao cansaço. Mas acho que estou me repetindo. Já devo ter falado sobre isso diversas vezes. Então, como não é algo que está sendo possível mudar, por ora, aproveito esta manhã/tarde de sábado para rememorar um dos melhores filmes vistos neste ano. Acredito que ainda é o meu favorito brasileiro do ano: MEDUSA (2021), de Anita Rocha da Silveira.

Os três filmes escolhidos abaixo, para complementar a postagem, inclusive, são também dirigidos ou codirigidos por mulheres e também são filmes de gênero (terror/suspense/western) que funcionam como espelhos da sociedade brasileira contemporânea. E é muito interessante ver o quanto as mulheres cineastas têm abraçado o cinema de gênero no Brasil. E olha que uma das mais importantes diretoras de filmes de terror do país, já faz um tempo que não lança trabalho novo no cinema, tendo preferido fazer trabalhos para a televisão/streaming. O último longa-metragem de Juliana Rojas (em parceria com Marco Dutra) foi o incrível AS BOAS MANEIRAS, em 2017. (Ainda sobre os quatro filmes escolhidos para esta postagem: todos eles são protagonizados por mulheres e trazem performances incríveis e poderosas.)

Por isso é bom ver que há várias outras diretoras com essa preferência, como é o caso de Anita Rocha da Silveira, que já havia estreado brilhantemente na direção de longas com MATE-ME POR FAVOR (2015). Neste seu segundo longa-metragem, ela mostra um domínio do ofício de direção que me faz gostar tanto do filme, de sua ambientação, de seu humor mordaz, de sua inteligência, de suas atrizes e de sua mise-en-scène, que até o final, que me deixou dividido e talvez pouco satisfeito, eu estou tentando relevar – ou, quem sabe, até compreender melhor.

Mari Oliveira está ótima como uma das cantoras de um grupo vocal de uma igreja evangélica. A princípio, achei que o filme iria se centrar na personagem da novata que chega à igreja, mas aos poucos vemos que Mari é a personagem central. O filme se passa num pesadelo em que o Brasil se transforma num evangelistão e pessoas que ousam não "aceitar Jesus" são punidas por grupos de moças usando máscaras. Assim como MATE-ME POR FAVOR, MEDUSA funciona como cinema de horror e como algo próximo a uma comédia provocadora - especialmente nas cenas na igreja, nas reuniões de jovens e vídeos de YouTube.

MEDUSA é um excelente retrato do período em que o bolsonarismo tornou o Brasil uma realidade de terror, mas funciona também como um alerta, já que sua história é uma distopia. Imagine viver num mundo em que se é cobrado a aceitar o que se deve louvar ou acreditar (ou fingir acreditar). Além do mais, como as cenas externas se passam principalmente à noite, o espaço fora da iluminação artificial da igreja, é como se fosse um mundo tomado pelo medo, exceto quando um grupo de pessoas passa a optar pela rebeldia e fazer festas clandestinas em lugares escondidos, e sob a luz do luar, como se aproveitando as possibilidades da natureza para sentir prazer com a arte e com o corpo jovem e saudável, tentando não se importar com a ditadura imposta pela “teocracia”.

Espero que o próximo filme da realizadora não demore tanto a se materializar. 

+ TRÊS FILMES

CARVÃO

Impressionante a força da direção deste primeiro longa-metragem de Carolina Markowicz. Desde o prólogo, CARVÃO (2022) diz a que veio, sem entregar as surpresas vindouras. Trata-se de um daqueles filmes que se beneficiam de se saber o mínimo possível antes de entrar na sessão. Maeve Jinkings está extraordinária como uma mãe de um menino pequeno, esposa de um carvoeiro (Rômulo Braga) e filha de um velhinho moribundo. Sua vida e de sua família mudam com a proposta de uma mulher. O que me deixou boquiaberto na performance de Maeve é no quanto ela se transforma na personagem, deixando de lado apenas a sombra da atriz que conhecíamos de outros papéis. Aqui, como uma mulher endurecida pela vida na região rural e com pouca instrução, ela chegou a me assombrar. E olha que temos também outros grandes atores no elenco: Rômulo Braga, o argentino César Bordón e Camila Márdila, em papel pequeno mas marcante. O tom sombrio do filme é uma forte marca, e há algo até de cinema fantástico, mas um fantástico que surge rasgando o naturalismo. Desde já, um dos melhores e mais surpreendentes filmes brasileiros do ano.

FOGARÉU

O filme escolhido para fechar a Mostra Retroexpectativa do Cinema do Dragão foi este muito interessante drama carregado de mistério e também das feridas do nosso passado como país, feridas que ainda insistem em permanecer presentes. Na trama, Bárbara Colen é uma jovem que visita sua família para saber do inventário, do que ela tem de direito nas terras da fazenda de seu tio, agora que sua mãe faleceu. Mas sua intenção é também descobrir mais sobre seu passado, descobrir segredos guardados por muitos anos, e quem sabe descobrir segredos daquela estranha cidade. O filme é ótimo quando abraça o mistério e se perde um pouco quando busca conclusões e respostas. Até acho que até poderia ter sido mais ousado nos aspectos fantásticos, antes de se enraizar tanto no realismo. FOGARÉU (2022), de Flávia Neves, traz outro grande momento de Colen, uma das mais brilhantes atrizes de sua geração.

MATO SECO EM CHAMAS

Conheço pouco o cinema de Adirley Queirós, mas uma das coisas que percebi vendo mais este filme do realizador (que assina desta vez com Joana Pimenta) é que ele tem uma assinatura bem perceptível. Adora mostrar a geografia áspera das cidades-satélite de Brasília e de brincar com cinema de gênero de um jeito muito próprio. Se em BRANCO SAI, PRETO FICA (2014) havia a sci-fi, agora ele brinca com o western, ao nos apresentar a um grupo de mulheres que trabalham com petróleo na comunidade Sol Nascente, em Ceilândia-DF. Elas são tão fortes e cheias de marra que viram lendas urbanas, até mesmo são temas de canções, como os foras-da-lei do velho oeste americano. Adirley e Joana não temem as tomadas longas e sem pressa, mesmo que isso resulte numa obra com mais de duas horas e meia de duração. Vale a pena ver MATO SECO EM CHAMAS (2022) com o corpo mais descansado (e não como eu vi, numa maratona louca). Destaque para as três mulheres principais da trama. A câmera se enamora delas, principalmente das duas irmãs (Chitara e Lea). O filme aproveita muito bem os momentos mágicos que são as conversas entre as duas. Além do mais, há uma coragem admirável de tomar partido do grupo marginalizado, até por entender, como em ARÁBIA, mas com bem menos sentimentalismo, o porquê do surgimento do banditismo de pessoas pobres na tão desigual e complexa sociedade brasileira.

sexta-feira, abril 07, 2023

TÁR



Ver TÁR (2022) no cinema é outra coisa (havia ficado muito triste com o fato de a distribuidora brasileira não ter lançado o filme por essas paragens). E deu para perceber os motivos de o filme pedir sempre uma tela grande: o trabalho de escala que Todd Field faz, que vem desde as letras pequenas dos créditos (que são difíceis de ler na tela pequena), passando pela dimensão maior com que os cenários parecem dispor para trabalhar com os personagens e seus movimentos, além da valorização de cada parte de sua janela scope. A cena de Lydia Tárr conversando com os alunos no teatro, por exemplo, dá o tom. O teatro parece tão monumental nas lentes de Field que as cadeiras parecem saídas do cenário de O INCRÍVEL HOMEM QUE ENCOLHEU.

Rever o filme também é uma oportunidade de prestar mais atenção, com prazer, nos detalhes. Quem o vê apenas como um excelente trabalho de Cate Blanchett (e de fato é o papel de sua vida) não viu o filme, na verdade. Claro que sem ela o filme não existiria (falou o diretor), mas o que vemos é uma obra que tem um rigor formal tão perceptível que fica óbvio que estamos diante de um trabalho fora do comum.

Não sei o quanto o filme será um documento de nosso momento no futuro, no que se refere à questão da cultura do cancelamento e as questões envolvendo artistas que cometem atos reprováveis (Bach é cancelado por um personagem por ser misógino e mulherengo), mas, sendo o cinema uma arte que trabalha mais com a empatia do que com o julgamento, é fácil nos colocarmos no lugar de Lydia – pelo menos em alguns momentos – e compreender sua atração pela jovem violoncelista, por exemplo, ainda que fique um pouco no escuro o que ela fizera com a jovem que cometeu suicídio. Apenas para dar conta desse aspecto do filme, uma terceira e quarta revisões seriam bem-vindas, já que é possível estabelecer elos entre o que ela diz, o que ela faz e o que seu subconsciente tenta avisar através de sonhos, os quais dão a TÁR um ar de um cinema fantástico invadindo o que supostamente seria uma biopic.

O curioso é que foi preciso que Field fizesse uma obra assim, grandiosa, para que ele chamasse mais atenção para seus trabalhos anteriores, de menor pretensão, talvez, e que agora sinto a curiosidade de rever, embora lembre de ter gostado de ambos na época do lançamento. A questão é que TÁR é tão bom que quase nos esquecemos que também há um trabalho de direção de atores incrível, destaque para o elenco feminino lindo e internacional: ao lado de Blanchett estão Nina Ross, Noémie Merlant e Sophie Kauer, uma música de verdade estreando como atriz. Lembrando que o trabalho de atores era algo já bastante evidenciado em ENTRE QUATRO PAREDES 2001) e em PECADOS ÍNTIMOS (2006).

A princípio, TÁR não parece um filme fácil (pelo menos, não para plateias impacientes), mas depois é só se habituar com o andamento – as primeiras sequências são bem longas e algumas delas mostram longos diálogos, duas com dois homens do meio da música erudita, em restaurantes. Mas Field nunca escolhe o ângulo de câmera mais óbvio e isso faz toda a diferença, assim como a escolha da própria iluminação na fotografia do alemão Florian Hoffmeister (ALÉM DAS PALAVRAS), às vezes optando por uma penumbra bonita. O filme não se apressa a apresentar sua história, embora ela seja menos importante do que a nossa aproximação com a heroína, do que conhecermos um pouco mais suas manias, seu egoísmo e seu temor de estar aos poucos perdendo a capacidade de conduzir sua vida. Logo ela, que é uma maestro (assim no "masculino" mesmo).

Tive um pouco de dificuldade de sentir o filme mais palpável, mas esse teor um pouco etéreo o torna mais atraente (aliás, eu diria que no cinema é possível ver o filme um pouco mais palpável, por ser o espaço ideal para vê-lo). No mais, foi uma bela sacada de Field começar seu filme com os “créditos finais”, com todos os técnicos responsáveis por detalhes supostamente menos importantes da construção de um filme, deixando para o fim o elenco etc. É como se o diretor estivesse deixando claro que, mesmo um gênio como Lydia Tárr, só está nos holofotes por causa de muitas outras pessoas, auxiliando com muito talento e competência. E não deixa de ser também um gesto de humildade do próprio Field, ele mesmo se mostrando um gigante na condução de seu maior filme, pedindo aplausos para todos aqueles que contribuíram para a materialização de sua obra.

+ TRÊS FILMES

ENTRE MULHERES (Women Talking)

Sarah Polley faz um filme que traz muita coisa para a discussão, muitos problemas e sofrimentos criados para as mulheres dentro do mundo do patriarcado. E ela opta por uma obra com mais amor do que raiva, embora a raiva passe e esteja presente, especialmente na personagem de Jeff Buckley, a que sofre agressão do marido constantemente. Enquanto isso, a personagem de Rooney Mara transborda amor apenas pelo olhar. O título original parece sintetizar de maneira modesta sobre o que o filme trata (simplesmente mulheres falando), mas também tem o poder de dizer que, naquele momento, é a vez das mulheres falarem. Tanto que o personagem de Ben Whishaw, que é o único homem presente nas reuniões, pois é a única pessoa que sabe ler, representa o masculino que chora de dor pelos danos provocados por pessoas do seu gênero. Ainda que seja um filme de muitos diálogos, fugindo bastante do que costumamos ver no próprio cinema indie americano, há um cuidado com o visual que se destaca já desde a escolha por uma janela hiper-larga (2,76:1), pela montagem que junta passado e presente e também imagens que às vezes contrastam com o que é dito. O fim de ENTRE MULHERES (2022) tem uma melancolia carregada de esperança, embora seja uma esperança que precise ser nutrida com ações e com paciência, pois o mundo ainda demorará muito para mudar, já que os homens ainda não aprenderam a agradecer às mulheres pelos presentes recebidos. Infelizmente não pude ver no cinema, pois a minha sensibilidade ocular com projeção tremida estragou essa oportunidade e me fez sair da sessão (não sem antes reclamar com o gerente). Com isso, preferi vê-lo em casa.

A BALEIA (The Whale)

Oitavo longa-metragem de Darren Aronofsky, que tem se mostrado cada vez mais ousado em ir longe com suas histórias e situações que beiram o mau gosto e o grotesco. Mais do que nunca, eu diria. Não deixa de ser admirável, pois vejo um diretor no controle da situação, mas que parece cada vez mais querer optar pelo choque para chegar a um tipo de transcendência. Vem causado muita polêmica com A BALEIA (2022); há quem o acuse de gordofobia e, nesse sentido, ele é sem dúvida exploratório até dizer chega. Ainda assim, eu gosto de muita coisa do filme, em especial da personagem da filha, vivida por Sadie Sink (STRANGER THINGS), mas principalmente de toda a atmosfera que é criada dentro de uma casa que parece trazer um cheiro de mofo e suor ou qualquer outra coisa desagradável. Enquanto isso, quase sempre está chovendo lá fora, num cenário bem teatral, mas que também remete à obra anterior do diretor, MÃE! (2017), por se passar num único espaço, quase sempre fechado. Contudo, as cenas que parecem feitas para virar clipes para o Oscar são bem constrangedoras.

TRIÂNGULO DA TRISTEZA (Triangle of Sadness)

Só reproduzindo o texto que escrevi na época que vi TRIÂNGULO DA TRISTEZA (2022), anterior ao resultado da premiação:

Pronto. Já dá para sonhar com um Oscar memóravel, com TUDO AO MESMO TEMPO etc. ganhando melhor filme e o Ruben Östlund ganhando direção. Que beleza, hein! Não odiei o filme como muitos odiaram; tampouco me entusiasmei. Na verdade, dei umas boas (mas preguiçosas) risadas na cena do barco na tormenta e depois disso o último ato, que lembra um pouco O ANJO EXTERMINADOR, também não me disse muito. Palma de Ouro. Lembrando seus concorrentes:

HOLY SPIDER, de Ali Abbasi
LES AMANDIERS, de Valeria Bruni Tedeschi
CRIMES OF THE FUTURE, de David Cronenberg
THE STARS AT NOON, de Claire Denis
FRERE ET SOEUR, de Arnaud Desplechin
TORI AND LOKITA, de Jean-Pierre & Luc Dardenne
CLOSE, de Lukas Dhont
ARMAGEDDON TIME, de James Gray
BROKER – UMA NOVA CHANCE, de Hirokazu Kore-eda
NOSTALGIA, de Mario Martone
R.M.N., de Cristian Mungiu
DECISÃO DE PARTIR, de Park Chan-Wook
SHOWING UP, de Kelly Reichardt
LEILA’S BROTHER, de Saeed Roustayi
BOY FROM HEAVEN, de Tarik Saleh
A ESPOSA DE TCHAIKOVSKY, de Kirill Serebrennikov
HI-HAN (EO), de Jerzy Skolimowski

quinta-feira, abril 06, 2023

NUVENS FLUTUANTES (Ukigumo)



Às vezes temos a impressão de que não temos muito controle sobre nossas vidas. E quando a vida apresenta uma série de baques, de situações duras, restam dois caminhos: buscar um pouco de fé para seguir em frente, ou seguir em frente, mesmo assim, esperando, quem sabe, que os ventos da sorte mudem a nosso favor. Nem sempre esse segundo caminho é o ideal, mas é muito comum que aconteça e pode ser visto de maneira impactante e triste em NUVENS FLUTUANTES (1955), meu primeiro contato com o cinema de Mikio Naruse.

Os filmes de Naruse eram até pouco tempo atrás inéditos em mídia física no Brasil, até que a Versátil Home Video começou a trazer vários de seus filmes em suas coleções. Inicialmente, saíram quatro obras do realizador no box A Arte de Mikio Naruse, que inclui QUANDO A MULHER SOBE A ESCADA (1960); depois mais 13 filmes nos boxes O Cinema de Mikio Naruse (volumes 1 e 2), que trazem obras aclamadas como VIDA DE CASADO (1951) e MULHER INDOMADA (1957); além do DVD duplo de O SOM DA MONTANHA (1954), que contém vários extras e cinco filmes da fase silenciosa do diretor. Optar pelo lançamento de obras com pouco apelo comercial como esses, num mercado cada vez mais segmentado, que é o da mídia física, é um ato de amor e de coragem por parte da distribuidora. E, portanto, é algo que merece não só nosso respeito, mas também nossa contribuição para valorizar esse trabalho tão importante.

Como NUVENS FLUTUANTES foi meu primeiro contato com Naruse, não tenho ainda intimidade com a poética do realizador, embora vontade não falte para adentrar o seu universo. Ainda mais porque esse filme é um dos mais brilhantes melodramas que eu já vi. E um dos mais tristes. Podemos até pensar em A VIDA DE O’HARU, de Kenji Mizoguchi, como um exemplar do mesmo período, como uma dupla de histórias devastadoras sobre espíritos quebrados e desesperança, mas o filme de Naruse é até mais moderno na forma (será?) e mais complexo no modo como apresenta o drama de seus personagens. 

Afinal, há algo misterioso que une o casal de protagonistas. Enquanto a mulher, Yukiko (Hideko Takamine, presença constante em vários filmes de Naruse), ama demais o homem, a ponto de isso se tornar o sentido para sua existência; o homem, Tomioka (Masayuki Mori, de O IDIOTA, de Akira Kurosawa), carrega em si uma espécie de desencanto pela vida, de amargor, que nem mesmo o amor devotado de uma mulher é capaz de fazê-lo mudar seu comportamento. No entanto, não é apenas Yukiko que o procura: ele também a procura em momentos distintos de suas vidas. Porém, com frequência, ele magoa Tomioka com palavras e gestos (como ter casos com outras mulheres, ou se voltar mais para sua esposa, já que ele é um homem casado).

Em determinado momento, quando os dois viajam para um hotel numa montanha, ele diz que pensava em cometer duplo suicídio com ela, mas depois diz que ela não é bonita o suficiente para morrer com ele. E há o sorriso, às vezes sem graça, e às vezes carregado de alguma esperança de Yukiko, que nos deixa desolados. E Naruse vai conseguindo nos prender a essa relação turbulenta e cheia de dor paulatinamente, sem pressa.

Assim, à medida que nos aproximamos da conclusão, essa relação vai também nos consumindo, em especial nas cenas em que os dois partem para uma ilha onde Tomioka trabalhará como guarda florestal. No meio da viagem, a chuva torrencial entra em sintonia com a angústia da relação dos dois, cujo sentimento é muito claro para Yukiko, mas que talvez seja ainda mais doloroso para Tomioka, que carrega em si tanto sentimentos de culpa quanto um espírito despedaçado pela dúvida.

Em NUVENS FLUTUANTES, apesar do sofrimento de Yukiko, é ela a personagem mais forte, é ela que tem a certeza do amor e que sente esse amor de maneira mais intensa. Outro diretor poderia abordar isso de maneira inversa – há quem diga que quem ama mais sofre mais e por isso é mais fraco. Mas, ao que parece, não é bem assim que as coisas são. E Naruse, já numa fase madura de sua vida, nos ensina um bocado sobre a vida, o amor e os relacionamentos. Por outro lado, ver apenas fortaleza em Yukiko é também cruel de nossa parte, é glorificar seu sofrimento, já que ela passa, ao longo da narrativa, por diversas situações, inclusive tendo que viver como prostituta para sobreviver naquele Japão do pós-guerra, mostrado de maneira tão miserável. Apesar disso, no meio das favelas e becos em que é ambientada boa parte da história, a elegância dos personagens teima em resistir.

NUVENS FLUTUANTES tem uma estrutura diferente do que se espera de uma história de amor ou de fim de amor, já começando com a relação destruída, uma relação que havia começado anos atrás na Indochina, quando o Japão ainda não havia perdido a Segunda Guerra Mundial, não estava com o ego tão ferido e com a sociedade tão empobrecida. Aliás, é bem possível fazer um paralelo entre a glória do passado e a tristeza do presente, tanto do país quanto da relação em questão. E há o estilo de Naruse, as várias cenas das pessoas indo embora das ruas e becos, sempre vistas de costas. É um filme bem dolorido, um dos mais tristes já realizados, e por esse outros motivos, essencial.

+ TRÊS FILMES

O MONSTRO RESSUSCITADO (El Monstruo Resucitado)

Quando a Versátil lançou o box de cinema de horror mexicano, o primeiro filme que peguei para ver foi O ESPELHO DA BRUXA (1962). E fiquei absolutamente encantado com tanta beleza visual, mas principalmente com a imensa criatividade do diretor e seus roteiristas (curiosamente, entre eles está o mestre Carlos Enrique Taboada). Então, fiquei curioso para ver este filme mais antigo de Chano Urueta, O MONSTRO RESSUSCITADO (1953), que não é tão brilhante quanto o filme de 62, mas é impressionante em muitos aspectos, pegando tanto influências dos filmes de monstros da Universal quanto, provavelmente, dos quadrinhos de terror dos anos 1950. Na trama, um homem com o rosto desfigurado convida uma bela jornalista (Miroslava) para conhecer a mansão onde ele realiza experimentos bizarros. Na verdade, ele tem interesse na mulher e ela dá a entender que tem um interesse mútuo. Mas, quando esse homem descobre que ela está tentando apenas se aproveitar dele e escrever uma grande história jornalística, ele tenta se vingar dela. Acho que o filme funcionaria melhor se o tal homem desfigurado não falasse tanto, até porque Urueta tem um cuidado visual que se destaca bastante nas cenas sem diálogos. Ainda assim, há momentos inacreditáveis que valem demais a apreciação. Visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Mexicano 3.

UM DE NÓS MORRERÁ (The Left Handed Gun)

O filme de estreia de Arthur Penn, UM DE NÓS MORRERÁ (1958), é esta história com tintas trágicas com o objetivo de mostrar um Billy the Kid diferente, despido da glória e mais parecendo um garoto sem muita capacidade de pensamento e um tanto desorientado e angustiado. Um dos momentos mais representativos desse aspecto de revisionismo do personagem é a conversa rápida que ele tem com o sujeito responsável por espalhar suas "glórias" para o leste do país. O filme é também importante ser visto por ser dirigido por Penn, o homem que daria o pontapé inicial na chamada Nova Hollywood. Visto no box O Cinema de Arthur Penn.

CONTRASTES HUMANOS (Sullivan's Travels)

Meu primeiro Preston Sturges, graças ao box lançado pela Versátil recentemente (O Cinema de Preston Sturges). Por algum motivo, o cineasta não foi tão incensado quanto vários contemporâneos seus. E vendo CONTRASTES HUMANOS (1941), esta bela comédia com uma inteligente crítica social, vemos o quanto o diretor é bom. Na divertida trama, Joel McCrea é um diretor de cinema que, percebendo que não tem experiência com a pobreza, resolve sair sem nenhum tostão e experimentar essa vida para adquirir expertise. No caminho, conhece uma bela loira (Veronika Lake), que quer lhe acompanhar na empreitada. Adoro o ato final, que eleva bastante o resultado da obra.

terça-feira, abril 04, 2023

COMEDIANS IN CARS GETTING COFFEE – SEGUNDA TEMPORADA



A ideia em 2021 era conseguir ver todos os episódios de COMEDIANS IN CARS GETTING COFFEE disponíveis (ou não) na Netflix. Acabei parando no meio da segunda temporada (2013), mas que bom que tive a ideia de ir escrevendo minitextos sobre os episódios imediatamente após vê-los. Não garante qualidade nos textos, mas ao menos não fico com a impressão de ter visto os episódios em vão. Retomei esses dias os episódios dessa segunda temporada, que é curtinha e conta com nomes fortes, como Chris Rock, Sarah Silverman e David Letterman. Lembrando que a ideia é tentar ver os episódios na ordem de lançamento original, e não na ordem que a Netflix colocou.

“I'm Going to Change Your Life Forever”

A comédia está mudando um pouco a impressão de que é um clube do Bolinha, mas lembro que na época que vi pela primeira vez a Sarah Silverman, em 2007, demorei um pouco a me acostumar com seu jeito. Aqui o Jerry até fica um bocado sem falar, pois ela é bastante falante. Além de muito simpática. Um detalhe que me chamou a atenção, embora não seja nada: eles estão no carro e Jerry pergunta: você está a fim de tomar café? Ela demora alguns segundos para responder, séria. Senti falta de mais reflexões sobre a vida, mas a atmosfera é agradável e Sarah estava faminta e pede um lanche bem reforçado. Depois ainda passam numa loja de doces. Alegria com açúcar no final. Gosto de como ela parece estar curtindo o passeio, no final, e sugere que eles partam para San Francisco.

“I Like Kettlecorn”

Em determinado da conversa entre David Letterman e Jerry, David pergunta se é normal eles conversarem tanto no café. Jerry diz que não, que eles estão conversando mais pois se dão muito bem. David acha que ele está esperando algo realmente bom para incluir no episódio. E, de fato, a impressão que fica é essa mesmo. Ao chegar no café, David parece desconfortável e pergunta se todas aquelas pessoas são atores ou são pessoas mesmo. E se eles podem mandá-las embora. No mais, achei pouco atrativa a conversa. Talvez seja mais interessante para quem conhece os comediantes anteriores ou contemporâneos de David (só tinha ouvido falar no Richard Pryor, dentre os citados).

"No Lipsticks for Nuns"

Passados dois anos, deu saudade de ver o Jerry levando convidados para tomar café, passear e bater papo. Retomei de onde parei a segunda temporada, com este divertido episódio com Gad Elmaleh, conhecido como o "Jerry Seinfeld da França", pelo estilo de comédia que ele faz, centrada no cotidiano. Jerry resolve levar um carro francês dos anos 1950, que dá um bocado de trabalho para chegar aos lugares, mas Jerry costuma ficar muito tranquilo nessas situações. São três os locais: um lugar onde vende batata frita com molho de manga (fiquei doido para experimentar), um local onde vende baguete e uma cafeteria, onde eles se empanturram de mais comida. Ah, e ainda passam numa doceria para um cupcake. Gostei do humor de Elmaleh, das piadas sobre americanos vendo jogo de beisebol e de pessoas se encontrando em elevadores. São duas pessoas com um elevado grau de harmonia, o que é muito agradável de ver.

"You'll Never Play the Copa"

A tradição de comediantes americanos é tão rica que de vez em quando eu me dou conta que não conheço vários nomes muito importantes da comédia (de todos os tempos). É o caso de Don Rickles, que fez sua fama na década de 1950, tendo trabalhado com Frank Sinatra, sobre quem contou algumas histórias interessantes a respeito do jeito prepotente (mas também carismático) do ator e cantor. Dá para perceber o abismo geracional entre Jerry e Don, mas também se percebe o enorme respeito de Jerry para com esse homem que tinha então 87 anos - Don morreu aos 90 anos em 2017. Das conversas, não percebi muita coisa interessante, talvez mais coisas nas entrelinhas, como o modo como Don baixa o tom de voz para contar uma história como se fosse um grande e perigoso segredo.

"Really?!"

Não é dos episódios mais brilhantes, e talvez não haja muitos momentos de risos, mas a presença, o carisma e a simpatia de Seth Meyers fazem valer os 15 minutos de duração. Além do mais, Meyers se mostra bastante modesto: considerava-se o menos talentoso do Saturday Night Live e sempre achava que poderia não agradar nos shows solo de comédia. O episódio é um dos que mais destaca o carro na introdução e também na conversa. Trata-se de um da própria coleção de Jerry, um Porsche 911 de 1973. O passeio é rápido e agradável. Tomam um café em Nova Jersey, passando pelo pedágio, em tempo de chuva suave. Seth Meyers cita Don Rickles: fala do dia em que ele tentou se aproximar dele para dizer o quanto o admirava etc.

"Kids Need Bullying"

É menos divertido do que eu esperava, levando em consideração a presença de Chris Rock. Jerry o pega num Lamborghini Miura de 1967, que ele considera um dos carros mais lindos e fantásticos de todos os tempos. Chris talvez até tenha o deixado meio sem jeito, quando diz que estar com alguém legal independe de estar num táxi ou num supercarro. O título do episódio talvez seja o que mais se destaca na conversa no café: o fato de que as crianças precisam de bullying para que no futuro se tornem cientistas ou algo assim. Faz algum sentido e Jerry não traz contraponto para a discussão, até porque isso faz parte do humor. Outra coisa marcante do episódio: quando Jerry acelera para mostrar a força do carro na estrada, eles são parados por um policial rodoviário. Chris já fica gelado, pois sabe do histórico de racismo do país onde vive.

sábado, abril 01, 2023

MISSÃO: IMPOSSÍVEL (Mission: Impossible)



Acho que preciso dar um gás na minha peregrinação pelo cinema de Brian De Palma. Comecei a (re)ver seus filmes em 2021 e já estou há dois anos nessa brincadeira. E não há um grande motivo para isso, levando em consideração que os filmes do realizador são uma delícia de ver, embora eu saiba que o motivo é tanto o cansaço, quanto a minha incrível capacidade de me dispersar. A revisão de MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996) acabou coincidindo com o novo filme da franquia que está para chegar em julho. MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS: PARTE 1 (2023) já é o sétimo filme com Tom Cruise no papel de Ethan Hunt e muita coisa mudou de lá para cá. Quando De Palma aceitou dirigir um blockbuster de espionagem, ele teve que fazer algumas concessões, mas também chegou a agir como uma espécie de “traidor” dentro da grande corporação que é Hollywood. No fim das contas, na batalha entre o filme de produtor (Tom Cruise e Paula Wagner) e de diretor, o autor venceu, eu diria.

É a primeira vez que revejo este filme desde que o vi no cinema, se não me engano no Cine São Luiz. Uma das coisas que mais chamou a atenção foi a tecnologia de meados dos anos 1990, em comparação com a dos dias de hoje. Também chama a atenção a menor quantidade de cenas de ação, que aumentariam bastante a partir do segundo filme, quando a franquia foi ganhando mais status de espetáculo. Dentro da filmografia do De Palma parece uma de suas obras menos pessoais, mas só aparentemente, já que sua poética está lá nos duplos, nas traições, na figura paterna pouco confiável, nas preferências formais. Lembrava-me da cena do cofre, uma das mais antológicas de toda a franquia, mas havia me esquecido da ótima cena no trem-bala, mais perto do final. Meu interesse em rever o filme foi mais pelo De Palma, mas não nego que bateu vontade de rever todos os demais.

Em geral, eu não quebro muito a cabeça para entender filmes de espionagem. Na maioria das vezes, aceito o conceito de mcguffin e relaxo. Mas, lendo sobre este primeiro MISSÃO: IMPOSSÍVEL, soube que parte da crítica reclamou bastante do quanto a trama era confuso, de como era difícil entender o que estava acontecendo. Acredito que hoje em dia esse tipo de comentário seria menos comum. Não achei o filme tão difícil de compreender e logo no início fica muito claro que o personagem de Jon Voight, o líder da IMF Jim Phelps, é o traidor, e que Ethan Hunt (Cruise) é responsabilizado pela morte de toda sua equipe. Ou de quase toda. A esposa de Jim, Claire (Emmanuelle Béart) reaparece viva para confundir ainda mais a cabeça de Ethan, que se encontra numa posição de não confiar em ninguém, nem mesmo no chefe Kittridge (Henry Czerny).

O interessante da primeira cena de missão do grupo inicial, que traz também no elenco Emilio Estevez, Kristin Scott Thomas e Ingeborga Dapkunaite, é que temos uma boa parte de atores famosos que seriam vítimas fatais das ações do traidor do grupo. Mais à frente, uma outra equipe é montada, mas também com chances de traição – Jean Reno é o traidor; Ving Rhames é a pessoa de confiança (Rhames permaneceria na franquia até os dias de hoje).

A missão inicial é impedir que um diplomata roube a chamada lista NOC, que contém os nomes de agentes americanos infiltrados, de uma embaixada em Praga. Porém, o chefe da CIA já sabia do traidor infiltrado no grupo da IMF e já havia montado uma segunda equipe de espiões. As cenas das mortes do primeiro grupo trazem uma situação geralmente comum nos filmes de Brian De Palma, que é o engano através da imagem. A ilusão lembra UM TIRO NA NOITE (1981) e DUBLÊ DE CORPO (1984), por exemplo.

Uma coisa que é a cara do De Palma é a angústia provocada pelo adultério – lembremos do quanto a cena do sexo seguido da morte de Angie Dickinson em VESTIDA PARA MATAR (1980) é impactante. E isso é colocado de maneira ao mesmo tempo sutil e incômoda neste thriller, no momento em que Hunt sente atração pela esposa do supostamente falecido Jim, uma figura paterna que ele até então respeitava. O próprio filme deixa dúvidas se há uma consumação da relação carnal entre Hunt e Claire, através de cortes para outras cenas após um momento sensual dos dois – a escolha de uma atriz como Béart definitivamente não é em vão: ela vinha de filmes que exploravam sua beleza, como A BELA INTRIGANTE, de Jacques Rivette, e CIÚME – O INFERNO DO AMOR POSSESSIVO, de Claude Chabrol. Por isso, Ethan teme que Claire tenha usado seu corpo para seduzi-lo.

Ao fazer um filme de espionagem com traição, De Palma faz referência a um outro título de seu mentor Alfred Hitchcock, INTRIGA INTERNACIONAL, que contém uma situação semelhante entre homem e mulher, com o personagem de Cary Grant atraído por uma Eva Marie Saint que é amante do vilão. E ao fazer um filme de espionagem com traição ele mais uma vez faz lembrar do De Palma adolescente, que procurou filmar a traição do próprio pai. Ou seja, pode não parecer dentro de um blockbuster de 80 milhões de dólares (e que renderia mais de 450 milhões em bilheteria mundial), mas com De Palma, tudo pelo visto é pessoal.

MISSÃO: IMPOSSÍVEL desagradou a muitos fãs da série de televisão dos anos 1960/70, por ter colocado o chefe da IMF justamente como o traidor e ter matado seu time logo no começo do filme. Porém, a julgar pela bilheteria e pelo sucesso longevo da franquia, levada com muito seriedade por Cruise, o grande público não se importou com isso. Ou então, não sabia. Além do mais, releituras de outras obras não precisam ser fiéis às originais. Ainda mais em se tratando de uma história que lida com traições.

+ TRÊS FILMES

O ÚLTIMO PESADELO (Curtains)

Eis um filme que merece ser avaliado de maneira muito peculiar. Afinal, não se pode negar que é uma bagunça, que o próprio diretor se recusou a colocar o nome nos créditos, que demorou anos para ser terminado e teve várias cenas refilmadas para tentar fazer sentido e ter uma duração de longa-metragem; enfim, talvez tudo isso contribua para que ele tenha alcançado o status de cult e ganhado o coração de muitos fãs de horror e slashers. Na verdade, um dos pontos positivos de O ÚLTIMO PESADELO (1983) é ser um slasher bem atípico: há sim muitas mortes e a figura de um assassino misterioso, que inclusive usa uma máscara assustadora, mas trata-se de uma obra que se apresenta explicitamente como uma luta entre as intenções do autor e do produtor. O diretor Robert Ciupka, no caso, queria fazer um filme mais sutil e psicológico, enquanto o produtor queria algo mais rasteiro e pronto para ser consumido como fast food e fazer sucesso nos cinemas. Acabou sendo lançado em poucas salas e sendo redescoberto na era do videocassete e das várias exibições na televisão. Acho que ter algumas cenas muito boas ajuda a guardar na memória afetiva, como a cena da boneca na estrada, que é horripilante. Ou a cena da moça de patins no gelo. Aliás, o elenco de atrizes se destaca, mesmo com toda a bagunça que nos deixa confusos sobre quem já morreu e quem continua viva dentro da casa do dramaturgo vivido por John Vernon, que é uma espécie de predador sexual e um sujeito pra lá de escroto. Já Samantha Eggar, ela surpreende bastante no início do filme, mas parece mal aproveitada no desenvolvimento. Ainda assim, sua presença é um ganho e tanto para a produção. Filme visto no box Slashers V.

MORTE AO VIVO (Tesis)

Este é um daqueles filmes que era bastante comentado na segunda metade da década de 1990, mas que, (talvez) por não ter sido exibido nos cinemas locais e eu não ter encontrado nas locadoras, acabei não vendo. O livrinho da Versátil sobre horror (o dos spin-offs) funcionou como um empurrãozinho para que eu finalmente o visse. Trata-se da estreia de Amenábar na direção de longas-metragens, com apenas 23 anos de idade. Ainda no ritmo da faculdade, o diretor faz um filme com atores jovens e estudantes e sobre um tema que é relativamente pouco explorado no cinema: o dos snuff movies. Em MORTE AO VIVO (1996), Ana Torrent é a estudante que pretende fazer uma tese sobre a violência no audiovisual e que acaba encontrando uma fita que descobre ser da morte real de uma moça que fora estudante da mesma universidade. Gosto bem mais da primeira metade do filme, enquanto prevalece o mistério, do que de seu final, mas a conclusão é muito divertida, por mais que se pareça com um filme americano. O jogo hitchcockiano sobre em quem se deve confiar se estende muito bem até o final, que é bem acertado. Adoro o trio de atores principais, especialmente Ana Torrent e Fele Martinez. Entre as cenas memoráveis, destaco as primeiras cenas da protagonista com Eduardo Noriega, o principal suspeito. Um começo exemplar para o diretor Alejandro Amenábar que faria em poucos anos uma obra-prima, OS OUTROS (2001). Filme visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Espanhol.

AUDIÇÃO (Ôdishon)

No início dos anos 2000, estava rolando um hype muito interessante em torno do cinema de Takashi Miike. Na lista de discussão Cannibal Holocaust, seus filmes eram muito citados, e eu cheguei a ver um punhado deles na época. No caso de AUDIÇÃO (1999), até comprei o DVD importado de uma loja de Hong Kong. E chegou a hora de rever o filme depois de 20 anos da primeira vez. Na segunda vez é possível aproveitar melhor as propostas de Miike em desenvolver um filme lento e muito interessado na questão do protagonista de encontrar uma esposa e de marcar encontros com uma das moças das audições. É só perto de uma hora de metragem que Miike vai revirando sua obra do avesso. Eu consigo ver AUDIÇÃO como uma espécie de materialização do medo que os homens sentem das mulheres. Isso é até comentado brevemente pelo filho do protagonista (tenho medo das mulheres, ele diz). O filme poderia muito bem ser um exploitation bem sem-vergonha, mas a opção por um tom mais sóbrio fez com que se tornasse a obra mais celebrada do prolífico diretor. É também um belo exemplar de como o narrador opta pela crueldade da vida (a vida que pode ser maravilhosa, nas palavras do protagonista), em vez do acordar para uma vida confortável. Filme visto no box Obras-Primas do Terror 5.