quarta-feira, setembro 29, 2021
MISSA DA MEIA-NOITE (Midnight Mass)
Fiquei apaixonado pelo trabalho de Mike Flanagan desde o momento que vi O ESPELHO (2013). Na época nem sabia que era um diretor com uma carreira já em encaminhamento, mas seus melhores trabalhos estariam ainda por vir. Desde O ESPELHO, cada novo filme ou série de Flanagan é uma nova alegria para mim, cresce mais o meu respeito pelo que ele vem desenvolvendo. Sobre MISSA DA MEIA-NOITE (2021), arriscaria dizer que é seu melhor trabalho, se ele não tivesse feito a obra-prima A MALDIÇÃO DA RESIDÊNCIA HILL (2018).
Acontece que em MISSA DA MEIA-NOITE, o diretor, roteirista, criador, editor se permite mais ousadias, tanto formais quanto temáticas. Flanagan afirmou em entrevistas que se trata de seu trabalho mais pessoal, que ele vinha pensando em materializar já há muitos anos. E depois de três trabalhos bem-sucedidos para a Netflix ele recebeu carta branca do serviço de streaming – ele fez um longa-metragem, JOGO PERIGOSO (2017), e uma segunda-minissérie, A MALDIÇÃO DA MANSÃO BLY (2020), em que ele dirigiu apenas um episódio, mas sendo o showrunner, a obra é principalmente sua. Então, com esses três sucessos e também apoio de boa parte da crítica de cinema e de televisão, Flanagan ganhou prestígio o suficiente para fazer uma obra audaciosa em muitos aspectos.
Uma das coisas que se destaca nessas minisséries de Flanagan é o seu grande carinho por seus personagens. É fácil se ver apaixonado por eles - em RESIDÊNCIA HILL isso é bem perceptível. E se antes já se percebia seu interesse por dramas familiares e por questionamentos acerca da morte, isso se expande nesta nova minissérie. A família agora é uma pequena população de uma ilhota afastada do continente, um espaço calmo e tranquilo, ainda que não isento de problemas e dramas de seus personagens. O lugar é tão pequeno que as pessoas não usam carros; elas caminham para ir para as casas umas das outras, e também para ir à igreja, que fica em uma área um pouco mais afastada das casas.
Aliás, sobre questões dramáticas, já começamos com a história do jovem Riley (Zach Gillford), que mata acidentalmente uma pessoa dirigindo alcoolizado e passa quatro anos preso. Ele, junto com Erin, a personagem de Kate Siegel (atriz linda e muito presente na obra do marido Flanagan), são os que mais se aproximam do olhar do espectador. Ambos são pessoas que tiveram a chance de viver em cidades grandes do continente, mas que, por força do destino, voltaram para seus locais de nascimento. Erin, inclusive, chega à ilha grávida. Ela e Riley foram namorados quando adolescentes.
Uma coisa que nos deixa muito intrigados na questão do horror da série é que, terminado o segundo episódio, de um total de sete, todos com o título de um livro (ou de uma série de livros) da Bíblia, ainda não sabemos do que a série trata (se é sobre fantasmas, demônios etc.). Só a partir do terceiro, “Livro III: Provérbios”, começam as revelações. E por isso o ideal é ver a série sabendo o mínimo possível. Há uma cena no início do segundo episódio que eu acho linda, com a câmera girando ao redor de vários personagens na praia, depois de um evento que acontece na virada de episódios.
Adoro o modo como o cineasta não se importa em estender os diálogos (às vezes monólogos), que funcionam como uma mistura de poesia e filosofia. Mesmo correndo o risco de deixar o espectador um pouco destruído. Mas depois percebemos que esses monólogos, esses delírios existenciais, são fundamentais para o espírito da minissérie. Especialmente o que discute sobre o que acontece com a gente após a morte.
Isso se acentua nos momentos finais da série e nos mostra o quanto, mais uma vez, a morte é um elemento de interesse e de fascínio do diretor. Há coisas que nos remetem a O SONO DA MORTE (2016), acerca da perda. E vemos que não foi à toa que Flanagan quis trazer uma nova adaptação para "A Volta do Parafuso" em A MALDIÇÃO DA MANSÃO BLY.
Entre os atores: destaque para a que mais se aproxima de uma vilã, a personagem de Samantha Sloan, ardilosa e muito inteligente no modo como usa seus conhecimentos das escrituras para conseguir o que quer; e o ator que faz o padre misterioso, Hamish Linklater. Também destaco os momentos que Flanagan nos faz chorar. Há um que é impressionante: o perdão de uma personagem ao homem que lhe fez mal.
Grande momento do terror no cinema e na televisão esse que estamos vivendo. E muito bom ter um diretor como Flanagan fazendo cinema e tevê autorais para as massas, disponível para quem quiser ver. Não vai agradar a todos, mas o que, afinal, agrada?
+ DOIS FILMES
NO QUARTO ESCURO DE SATÃ (Il Tuo Vizio È una Stanza Chiusa e Solo Io Ne Ho la Chiave)
Olha aí James Wan me dando vontade de ver mais gialli. Este aqui está entre os cinco filmes do gênero que Martino dirigiu no começo dos anos 1970. Não é melhor do que TORSO (1973), nem do que TODAS AS CORES DA ESCURIDÃO (1972), mas achei mais interessante e bem orquestrado do que A CAUDA DO ESCORPIÃO (1971). Trata-se de uma adaptação livre do conto "O Gato Preto", de Poe, mas a parte do conto é menos de um terço do filme, que apresenta personagens vis e detestáveis de uma maneira ou de outra. Há o escritor fracassado (Luigi Pistilli) que maltrata a esposa (Anita Strinberg) e que é suspeito de brutais assassinatos que estão ocorrendo no vilarejo. E há a sobrinha jovem (Edwige Fenech), que chega com meia hora de filme e já procura seduzir a todos. Um dos grandes méritos de NO QUARTO ESCURO DE SATÃ (1972) é nos deixar interessados do início ao fim. A trilha sonora, com cravos e cordas também é uma beleza. Filme presente no box Giallo Vol. 3.
THE PROJECTIONIST
Dos documentários feitos por Abel Ferrara nos últimos anos, THE PROJECTIONIST (2019) talvez seja um dos mais preguiçosos. O que é uma pena, pois a própria ideia dele parece ter nascido da paixão. No caso, da paixão pelo cinema, mesmo que seja pelo negócio em torno do cinema. O personagem do filme é um homem que foi proprietário de várias salas de cinema de rua na década de 1970, entre cinemas pornôs e cinemas de arte. O negócio vai mudando ao longo dos anos, mas ele segue resistindo em cinema de rua, até porque Nova York é uma cidade que torna isso um pouco mais viável. Tive a impressão de que Ferrara insere cenas de filmes talvez porque percebe que o personagem não é bom o bastante para sustentar o filme sozinho. Então, ele enxerta até cenas de filmes mais underground de vez em quando. O interessante é o quanto o filme nos apresenta uma história do cinema como negócio ao longo de mais de 40 anos.
sexta-feira, setembro 24, 2021
CRY MACHO – O CAMINHO PARA A REDENÇÃO (Cry Macho)
A questão do peso da idade no cinema de Clint Eastwood, seu temor, ao mesmo tempo que também seu senso de humor em relação a sua chegada, aparece em seus filmes desde os anos 1980, com BRONCO BILLY (1980). E na época do lançamento desse filme ele estava apenas com 50 anos de idade, ou seja, naquela época, chegar a tal idade já era mesmo um atestado de velhice. Mal sabia ele que teria a chance de acompanhar seu corpo envelhecer ainda mais, e que seus filmes abordariam o tema do crepúsculo da vida de maneira ainda mais intensa.
Aconteceria novamente em OS IMPERDOÁVEIS (1992), em COWBOYS DO ESPAÇO (2000), em DÍVIDA DE SANGUE (2002), em MENINA DE OURO (2004), em GRAN TORINO (2008) e em A MULA (2018). Nesse anterior, principalmente, o impacto da decadência física do maior símbolo da masculinidade da década de 1970 se apresenta de maneira impiedosa. E no novo trabalho, CRY MACHO – O CAMINHO PARA A REDENÇÃO (2021), esse efeito se intensifica, já que o que temos à nossa frente é um senhor de 91 anos claramente frágil desempenhando, de vez em quando, algumas cenas de ação, mesmo que com a ajuda de dublês e da montagem.
O que tem incomodado a muitos em CRY MACHO é o roteiro, sua simplicidade e suas falhas. Mas há também outra maneira de ver as situações absurdas que a trama traz: através do viés da fantasia. Ou seja, depois de maltratar seus personagens em filmes tão duros quanto MENINA DE OURO e GRAN TORINO, Eastwood presenteia a si mesmo com um filme leve e de final feliz (ou um pouco agridoce). E é curioso como situações felizes e finais felizes são vistos com estranheza, quase como situações surreais.
Quando Mike, o personagem de Eastwood, encontra um abrigo paradisíaco na casa de uma viúva e está ao lado de um garoto que o vê como a figura paterna que nunca tivera até então, o velho caubói encontra naquele momento a paz e a segurança que finalmente merece, depois de ter perdido a esposa e o filho em um acidente e de ter maltratado seu corpo e sua alma com o álcool e as drogas por um período considerável de sua vida. Agora ele está ali sendo visto quase como um santo capaz de curar animais pelas pessoas do vilarejo, sendo adorado e muito bem cuidado por uma mulher carinhosa, comendo tortillas e ainda podendo ensinar a arte de cavalgar ao garoto que o acompanha. É como se, neste filme, Eastwood quisesse fazer uma espécie de versão negativa (ou positiva?) de seus melodramas mais sombrios. Mesmo que sentíssemos no ar algo muito parecido com um sonho, algo não apenas pouco palpável, mas também difícil de digerir, se visto por uma chave realista ou de verossimilhança.
CRY MACHO é uma espécie de filme-irmão de A MULA. Mais uma vez temos um homem idoso em uma missão. Assim, o diretor deixa um pouco de lado suas crônicas sobre heróis americanos ultimamente frequentes e volta a seu interesse de retratar a dor de eventos passados que ainda latejam na alma presente. Aqui, porém, ele prefere fazer isso de uma maneira mais suave, que nos faz sorrir com uma agradável paz de espírito em muitos momentos.
A história da amizade entre um homem mais velho e com um ótimo senso de humor que passa a representar uma figura paterna para um garoto já havia sido retratada de maneira dolorosa na obra-prima UM MUNDO PERFEITO (1993), e retorna aqui, com Clint no papel de um velho caubói que tem a missão de resgatar o filho de um amigo no México. Na verdade, o resgate seria mais um sequestro, já que ele levaria o menino sem a "bênção" de sua mãe. Ao contrário, muito da divertida aventura viria dessa fuga da polícia e dos capangas da mãe do menino. E parte dessa aventura seria mostrada em chave cômica, como nas vezes em que o galo do garoto, de nome Macho, é fundamental para a resolução de conflitos.
CRY MACHO pode parecer um pouco fora de moda, tangenciando o brega em alguns momentos, mas é o filme de alguém que adora o gênero western e um de seus maiores ícones (a própria imagem de Clint com aquele chapéu de caubói deixa claro e é uma imagem poderosa), e também de alguém que está chegando ao centenário de sua vida. É um privilégio poder testemunhar o trabalho constante deste grande realizador.
+ DOIS FILMES
MATE OU MORRA (Boss Level)
Filme que tem Mel Gibson, Naomi Watts e loop temporal eu não ia deixar passar, mesmo já tendo cara de ser do tipo mais bagaceira. E de fato é. Porém, uma vez que a gente espera o pior, até que MATE OU MORRA (2021), de Joe Carnahan, é um entretenimento razoável. É interessante notar como esse tipo de variação de FEITIÇO DO TEMPO (mais um, pois é), ao menos não se preocupa muito em explicar. É tudo muito rápido e o protagonista (Frank Grillo) já está vivendo o mesmo dia por cerca de uma centena de vezes. Como se trata de um filme que procura dar mais ênfase à ação, quando ele para um pouco para ser mais sensível (nas cenas com o filho, por exemplo), ele se mostra ainda mais falho. Como é também um filme que exalta os games, assim como também é NO LIMITE DO AMANHÃ, com Tom Cruise, outro que usa a mesma ideia do filme de Harold Ramis, então a falta de valor na vida ganha pouca importância. Mas creio que isso sequer passou pela cabeça de seus criadores. Quanto a Frank Grillo, ele vai ter que fazer bastante filme ainda pra conseguir o mínimo de carisma necessário para virar um bom herói de ação.
LOS LOBOS
É fácil se colocar no lugar dos três personagens de LOS LOBOS (2019), de Samuel Kishi. Da jovem mãe que procura um lugar simples e que possa pagar o aluguel ao se instalar ilegalmente nos Estados Unidos, ainda sem dominar o inglês. E dos dois meninos, que se veem obrigados a ficar trancados dentro do pequeno apartamento, sem ter muito o que fazer, até que a mãe retorne do trabalho, exausta, para lhes dar atenção. Talvez lá pelo meio do filme esse cansaço da personagem adulta nos contamine um pouco e o que parecia um filme que tinha muito para ser muito impactante (é fácil se lembrar de PROJETO FLÓRIDA) se perde um pouco. Ainda assim, gosto de como ele termina, gosto dos desempenhos das crianças e da atriz principal. Ponto para Fátima Toledo, a preparadora de elenco de CIDADE DE DEUS e de TROPA DE ELITE, e que muito provavelmente foi responsável pelo sucesso do pequeno elenco.
terça-feira, setembro 21, 2021
AMADA AMANTE
Nos últimos dias minha energia tem andado em baixa na mesma medida que o trabalho tem aumentado. Em situação de desvantagem como essa, é natural que o blog tenha ficado sem atualização por tanto tempo. Por isso, ao contrário das postagens sobre Brian De Palma, que costumam render muitos parágrafos e estudos, hoje gostaria de ser um pouco mais objetivo. Não que o filme em questão não mereça uma atenção maior. É o caso de merecer sim.
AMADA AMANTE (1978) é o quarto longa-metragem dirigido por Cláudio Cunha, e o primeiro que contou com a parceria com sua musa Simone Carvalho, que aqui só tinha 18 anos (ou talvez até menos), no papel de uma jovem carioca que toma a iniciativa quando se interessa pelo rapaz recém-chegado do interior e ainda um pouco ingênuo com aquele novo mundo que o cerca.
Mas o meu impulso para ver o filme neste momento foi como forma de homenagear Luis Gustavo, que aparece como um dos personagens principais deste filme-coral. Gustavo faleceu no último domingo, 19, e por mais que seja uma pena ele não ter feito muito cinema, não dá para não ficar grato com seu trabalho na televisão, especialmente no humor.
Em AMADA AMANTE ele é Tuca, que assim como Miriam, a jovem personagem de Carvalho, está muito habituado ao ambiente de mais malandragem do Rio de Janeiro. Malandragem, no bom sentido. Por mais que pareça a princípio um sujeito que possa ser mal intencionado, ele se mostra bem interessado em um relacionamento mais sério com a jovem Fátima (Sandra Bréa), a mais velha da família de interioranos. Na verdade, no começo achei difícil um pouco comprar a atriz para o papel, mas ela é tão boa que logo esqueci esse detalhe.
Mas o meu impulso para ver o filme neste momento foi como forma de homenagear Luis Gustavo, que aparece como um dos personagens principais deste filme-coral. Gustavo faleceu no último domingo, 19, e por mais que seja uma pena ele não ter feito muito cinema, não dá para não ficar grato com seu trabalho na televisão, especialmente no humor.
Em AMADA AMANTE ele é Tuca, que assim como Miriam, a jovem personagem de Carvalho, está muito habituado ao ambiente de mais malandragem do Rio de Janeiro. Malandragem, no bom sentido. Por mais que pareça a princípio um sujeito que possa ser mal intencionado, ele se mostra bem interessado em um relacionamento mais sério com a jovem Fátima (Sandra Bréa), a mais velha da família de interioranos. Na verdade, no começo achei difícil um pouco comprar a atriz para o papel, mas ela é tão boa que logo esqueci esse detalhe.
O título (“Amada Amante”) tem mais a ver com ser o primeiro a aproveitar da popularidade da canção homônima de Roberto Carlos do que com o enredo ou o tom do filme em si, que está mais para a comédia. Na verdade, houve uma batalha pelo título da canção, tal a popularidade de Roberto naquele fim de década. Bruno Barreto estava pronto para dar o mesmo nome a seu filme (que depois ganharia o título de AMOR BANDIDO), e até usaria a canção do Rei em momentos de seu trabalho, e por isso ficou “p da vida” com Cunha quando soube que ele havia comprado primeiro os direitos de uso.
Mas o que importa mesmo é a leveza e a dinâmica do filme, que traz como primeiros nomes do elenco os de Sandra Bréa e de Luiz Gustavo, mas que também traz, além da já citada Simone Carvalho, um elenco respeitável. O filme funciona tanto como uma crítica ao falso moralismo, quanto como um entretenimento mais adulto e picante sobre as relações que uma família recém-chegada do interior começa a ter ao chegar na Cidade Maravilhosa.
Em AMADA AMANTE, quase todos os personagens ganham parceiros amorosos, por assim dizer. Augusto, o pai de família, vivido por Rogério Fróes, que vem com a esposa e os três jovens filhos para a cidade grande para começar um trabalho, sofre as tentações da carne ao ser seduzido pela secretária Aparecida, vivida por Ana Maria Kreisler, que no mesmo ano estaria na obra-prima A FORÇA DOS SENTIDOS, de Jean Garrett, desempenhando uma das melhores cenas de sexo da história do cinema brasileiro. No filme de Cunha ela é um pouco menos valorizada nesse sentido, mas não dá pra reclamar, já que temos uma história bastante equilibrada na condução de seus personagens. O roteirista, aliás, é Benedito Ruy Barbosa, mais conhecido por seus trabalhos em telenovelas.
AMADA AMANTE seria o primeiro de uma trilogia de filmes que Cunha faria no Rio de Janeiro (seu cinema é o da Boca do Lixo paulistana), por isso é uma visão de quem vem de fora, e por isso mesmo de certo encantamento. Os outros dois filmes foram SÁBADO ALUCINANTE (1979) e PROFISSÃO MULHER (1983).
+ DOIS FILMES
A NUVEM ROSA
Mais do que o impressionante fato de ser um filme escrito e filmado antes da pandemia e parecer uma premonição, A NUVEM ROSA (2021), de Iuli Gerbase, é um baita drama perturbador e de certa forma familiar a um momento de nossas vidas. Na história, gás tóxico de cor rosa surge e passa a matar as pessoas que não estão protegidas em suas casas, com as janelas fechadas. A trama se concentra em um casal e eventualmente temos também notícias de amigos e familiares com quem eles se comunicam via internet. O filme teve uma ótima repercussão no Festival de Sundance deste ano. Com certeza merece ser mais conhecido e divulgado.
RODANTES
Considero RODANTES (2019), de Leandro Lara, um dos filmes brasileiros mais intensos lançados no circuito neste ano. O problema talvez esteja no fato de faltar equilíbrio entre as três histórias (que não exatamente se cruzam, mas se tangenciam). A história da personagem de Caroline Abras eclipsa as outras duas (a do migrante do Haiti e a do rapaz que arranja emprego em um restaurante). Ela é uma jovem mulher que tem uma inquietação tão forte que precisa estar o tempo todo se deslocando, não importando se vai parar nos lugares mais inóspitos do Brasil profundo, trabalhando como prostituta ou doméstica eventual. Sua história é tão boa que poderiam ter podado as demais e criado um único filme só com ela. Mas gosto da proposta de RODANTES e de como ele nos leva para um tempo-espaço que parece o fim do mundo, como quando a personagem passeia por um lugar rodeado pelo caos de uma chacina. Há também muitos simbolismos (o fogo, o sangue, a água) que ajudam a tornar a experiência bem interessante, assim como o uso de flashbacks e flashforwards que contribuem para essa sensação de desnorteamento.
sábado, setembro 11, 2021
VESTIDA PARA MATAR (Dressed to Kill)
11 de setembro é lembrado como o dia do ataque às Torres Gêmeas. Mas é também o dia do aniversário do mestre Brian De Palma, que hoje está fazendo 81 anos. Embora a última década não tenha sido muito feliz para ele, com apenas dois filmes produzidos e que não foram nem sequer exibidos em nosso circuito de cinemas, para os anos 2020 ele já tem um em pré-produção (estrelado por Wagner Moura) e um anunciado. Já é motivo de alegria. Coincidência ou não, hoje escrevo sobre VESTIDA PARA MATAR (1980), um de seus filmes mais celebrados e um dos que mais bebem da fonte de Alfred Hitchcock, desta vez fazendo uma homenagem bem especial e explícita a PSICOSE.
Foi um dos primeiros filmes de Brian De Palma que vi na televisão, na aurora de minha cinefilia. Na época exibiam bastante este, DUBLÊ DE CORPO (1984) e OS INTOCÁVEIS (1987). Então, não sei qual dos três vi primeiro. Mas a minha memória dele estava um tanto nebulosa. É curioso isso, costumou acontecer durante muito tempo com PSICOSE também, o filme aqui homenageado: depois da morte da suposta protagonista, me esqueço do que acontece em seguida, como se morresse junto com a vítima. Com as revisões, esse problema tem diminuído.
VESTIDA PARA MATAR começa com uma cena bastante ousada: Kate, a persongem de Angie Dickinson, se masturba no chuveiro, enquanto olha para o marido tirando a barba em frente ao espelho – a cena logo faz lembrar a de Carrie no chuveiro em CARRIE, A ESTRANHA (1976), inclusive com o mesmo compositor, Pino Donaggio, trazendo uma aura de prazer e calma temporária para as personagens. Mas, logo em seguida, essa sensação boa de Kate se mostra um pesadelo (ou seria um sonho nascido de suas fantasias?): um estranho surge na cabine do chuveiro e a pega por trás, tapando sua boca, tocando seu sexo e impedindo que o marido a veja, talvez por causa do vapor que impede a visão. Quando acorda do sonho, ela acorda também para o sexo burocrático e rápido com o marido, que mais adiante vamos ver que é algo que a deixa insatisfeita, conforme ela conta a seu psicanalista, o Dr. Robert Elliott (Michael Caine).
É importante perceber que uma cena como essa, que traz, ainda que de maneira pouco explícita, a possibilidade de que Kate estava fantasiando um estupro, seria complicada de ser filmada nos dias de hoje. Mesmo na época do lançamento houve bastante rebuliço em diversas frentes, como o Women Against Violence Against Women, que organizou grupos para protestar contra o filme. Aliás, hoje certamente o roteiro teria que ser refeito, por conta também da abordagem das pessoas transexuais. Mas é importante que entendamos que isso é um produto de sua época e que serve como estudo em diversas áreas (sociologia, psicologia, sexologia, história etc.).
Durante a sessão de terapia, e de ela chegar a perguntar ao próprio médico se ele teria coragem de transar com ela – vemos que Kate está de fato muito carente -, ele recusa, dizendo ser um homem casado, e que não seria capaz de destruir seu casamento por uma transa. Seguimos então com Kate visitando um museu. Ela se senta em um banco de maneira muito semelhante à Madeleine em UM CORPO QUE CAI, de Hitchcock. Aliás, todo o jogo de gato e rato com um homem que ela conhece e se sente atraída no museu também tem um quê forte do clássico de Hitch. E De Palma manipula a câmera de maneira frenética pelo museu.
Posteriormente, com o sexo que já começa no banco de trás do carro, e vai até o apartamento do estranho, ela é atacada na famosa cena do elevador por uma loira misteriosa com uma navalha. Trata-se claramente de uma homenagem à cena do chuveiro de PSICOSE. E a comparação não para por aí, claro, conforme veremos quando o filme se aproxima de sua conclusão.
A morte de Kate parece muito ligada a um sentimento de culpa, a julgar pelos seus pensamentos envolvendo o marido e o filho, e também pelo documento que ela encontra na gaveta do estranho, um resultado de um exame que informa claramente que ele está com uma doença venérea, o que a deixa muito perturbada, como se aquilo já fosse o castigo pelo seu pecado. A loira assassina, a essa altura todo mundo já sabe, é um homem travestido de mulher com óculos escuros e um casaco muito parecido com o de Kate. E isso é bastante representativo do quanto esse personagem está muito próximo de uma materialização da autopunição. E é mais uma vez De Palma lidando com os duplos.
Durante e após a cena do elevador, surge a próxima protagonista, Liz, vivida por Nancy Allen, que, pela segunda vez, faz o papel de uma jovem e doce mulher “especializada”, por assim dizer, em sexo. Lembremos que em TERAPIA DE DOIDOS (1979), Allen era uma ninfomaníaca. Em VESTIDA PARA MATAR, ela “evolui” para uma garota de programa. Neste filme ela repete a parceria com Keith Gordon, mais uma vez vivendo um avatar de um jovem Brian De Palma, chamado Peter.
Nancy está lindíssima no papel de Liz, que é suspeita pelo assassinato de Kate, e depois dá uma de detetive – ela é encorajada pelo próprio delegado a investigar por conta própria no consultório do psiquiatra. Ela faz isso com a ajuda de Peter, que fica do lado de fora na mesma posição de voyeur “do bem” que representou no longa anterior do diretor. E Liz usa sua melhor arma, a sedução, como forma de entreter o médico. E que baita cena sensual vemos a seguir, meus amigos! Talvez seja uma das cenas mais eróticas de um filme do De Palma, por mais que seja uma cena muito mais de provocação do que de nudez. É após o ato audacioso de Liz que a personagem travesti esquizofrênica ataca novamente.
Uma pena que o filme não tenha sido bem recebido pelos críticos americanos na época de seu lançamento. A maioria só conseguiu vê-lo como uma cópia vulgar de PSICOSE, sem prestar atenção ou perceber a profundidade dos dramas de seus personagens (as lutas interiores de Liz, Kate, Peter e Elliott), que talvez venham muito mais da vida e das neuroses de próprio De Palma do que de uma vontade de, simplesmente, fazer um remake mais sangrento e atualizado para tempos de slashers do clássico de Hitchcock.
+ DOIS FILMES
TÉCNICA DE UM DELATOR (Le Doulos)
O filme que escolhi para homenagear Jean-Paul Belmondo foi também minha estreia no cinema de Jean-Pierre Melville, muito provavelmente o maior cineasta do gênero policial do cinema francês. E foi bom ver o quanto os franceses se alimentaram do noir americano, com seus personagens amorais e um tipo de iluminação belamente contrastante, mas adotando um ritmo mais lento, o que acaba por acentuar e enfatizar os momentos de violência mais brutal. A primeira vez que vemos um assassinato em TÉCNICA DE UM DELATOR (1962) é de fato assustador. Em seguida, há aquela cena com Belmondo e uma mulher que é impressionante. Por vezes fiquei um tanto perdido na trama complexa e cheia de personagens, mas o diretor parece se divertir com isso, com as tramas de traição entre polícia, ladrão, suposto informante etc. E Belmondo está ótimo, embora, durante a maior parte do tempo o protagonista do filme seja Serge Reggiani.
HOMENS INDOMÁVEIS (Silver Lode)
Olhando a lista dos 1.000 filmes essenciais de Jonathan Rosebaum, estava em busca de um grande western que ainda não tivesse visto e que fosse fácil de achar no meu acervo. E eis que vejo este maravilhoso filme de Allan Dwan, HOMENS INDOMÁVEIS (1954), um de seus mais cultuados trabalhos, e que também funciona como uma das melhores obras sobre o mccarthismo. Mas o mais importante é como ele funciona como um suspense eletrizante cuja trama se passa em tempo real, ainda que isso não seja citado. Acompanhamos o drama de Dan Ballard (John Payne), um homem que tem seu casamento interrompido por um bandido disfarçado de agente federal (Dan Duryea). Curiosamente, o nome do personagem de Duryea é McCarty. Durante a maior parte do tempo, Dan precisa provar sua inocência, enquanto sua situação vai se complicando cada vez mais, já que a maior parte da cidade passa a vê-lo como um criminoso traidor. Destaque para um plano-sequência que mostra Dan atravessando quatro quarteirões, tentando se esquivar dos bandidos, da polícia e da própria população enlouquecida. A direção de fotografia é do lendário John Alton. Filme presente no box Cinema Faroeste Vol. 5.
sexta-feira, setembro 10, 2021
MALIGNO (Malignant)
Uma das coisas mais legais de uma entrevista que James Wan deu ao site Bloody Disgusting foi a comparação que ele fez de MALIGNO (2021) com suas visitas às seções de filmes de terror das videolocadoras em fins dos anos 1980 e início dos 90. Essas seções ficavam em um local mais escondidinho do espaço, por causa das capas nem sempre bonitinhas, e ele fazia questão de procurar aqueles filmes um pouco mais desconhecidos e que traziam capas intrigantes e chamativas; e ele alugava sem saber nada a respeito. MALIGNO é, para o diretor, como um daqueles filmes que ele pegava no fundo das prateleiras.
A sensação de ver o filme é de certa forma parecida, pois vamos descobrindo sobre o que se trata aos poucos. É uma obra enigmática. O trailer, felizmente, não entrega muita coisa. O filme começa como uma obra visualmente (e belamente) estranha, que parece trazer mais uma vez os clichês de casa assombrada que Wan tão bem sabe dominar, vide seus ótimos trabalhos em SOBRENATURAL (2010), INVOCAÇÃO DO MAL (2013) e suas respectivas continuações. Porém, há algo de muito mais estranho no novo filme, como se predominasse o interesse pela beleza das imagens em detrimento da construção narrativa e da intenção de assustar.
Tanto que o segundo ato parece seguir descolado de trama, lembrando alguns filmes cultuados do Lucio Fulci ou do Dario Argento. E há o tom over (de atuações, inclusive) que faz tudo parecer um objeto muito estranho, que, para muitos, acostumados com um tipo de naturalismo mais vigente nas produções atuais, pode ser encarado como uma falha, um problema. E essa estranheza já começa do prólogo, que dá o tom, inclusive já apresentando os close-ups de forte expressividade.
Mas no terceiro ato Wan nos surpreende e nos prova mais uma vez que é o um dos mestres do novo horror americano, ao lado de Mike Flanagan, Jordan Peele, Ari Aster e Robert Eggers. Mas, enquanto Wan parecia ser o que mais estava disposto a se situar dentro de um tipo de narrativa mais clássica, principalmente em seus filmes de casa assombrada, os outros seguiam por caminhos mais modernos. Eis que, em MALIGNO, Wan faz algo que foge completamente do que se esperava até então.
Falando sobre a oportunidade de ter feito um filme como esse, ele diz: “eu não sei quando eu terei a chance de fazer algo tão louco e tão ultrajante quanto isso novamente, então eu peguei essa oportunidade”. E essa chance surgiu com o sucesso tanto dos filmes de terror, quanto da boa recepção de AQUAMAN (2018), que ganhará uma sequência, já em fase de produção. Ou seja, se para cada blockbuster desses ele ganhasse a liberdade de fazer um ou dois filmes tão originais quanto MALIGNO, seria um sonho. Até porque já, faz um tempo, o gênero terror é um dos mais rentáveis e atrativos nos cinemas.
Além de trazer influências fortes do horror italiano e do giallo, lembramos também do tipo de body horror muito mais comum nos filmes do gênero das décadas de 1970 e 80. Lembrei-me de THE BROOD - OS FILHOS DO MEDO, de David Cronenberg; de IRMÃS DIABÓLICAS, de Brian De Palma; de TENEBRE, de Dario Argento. Aliás, juntar esses três cineastas e pescar o que há de comum nessas e em outras obras e pensar em MALIGNO é uma forma de ver o quanto aquele tipo de cinema mais visceral, mais gory e também muito forte do ponto de vista espiritual pode render uma nova obra tão original, tão bonita e com um senso de humor tão próprio. É difícil não assistir à cena da delegacia e não dar aquele sorriso de orelha a orelha.
Na trama, Annabelle Wallis, a atriz de ANNABELLE (2014), é uma jovem mulher que está grávida de seu namorado agressivo. Numa das primeiras cenas do filme ficamos bastante desconfortáveis com o momento de violência doméstica. Aliás, é possível que essa temática seja uma das chaves para entender um dos temas, mas acredito que existem outras. Então, depois do ocorrido, com o namorado dormindo no sofá e ela dormindo na cama, algo estranho ocorre, uma entidade que só aparece como uma silhueta no escuro, os ataca à noite. É também o momento em que a protagonista experimenta a sensação de ver a morte acontecendo do ponto de vista do assassino. Ou seja, um elemento muito recorrente nos gialli.
No mais, o ideal é não contar muito da trama para não estragar as surpresas . Por mais que o enredo seja menos importante do que a forma do filme, ele é também essencial. E é, junto com outros elementos, o que torna MALIGNO um dos filmes mais interessantes, bonitos e surpreendentes do ano.
+ DOIS FILMES
MANIAC COP - O EXTERMINADOR (Maniac Cop)
A notícia de que John Hyams, diretor de SOZINHA (2020), seria um dos responsáveis pelo remake ou reimaginação de MANIAC COP - O EXTERMINADOR (1988) trouxe um interesse para que eu aproveitasse o box Slashers V para ver o filme original, escrito por Larry Cohen e dirigido por William Lustig. E é uma delícia de filme B, que foge bastante da tradicional matança de pessoas jovens ou adolescentes nos slashers tradicionais. Seria mais uma junção de slasher com filme policial, como foi a ideia que Cohen teve numa conversa bem informal com Lustig. E a ideia nem é tão absurda assim. Ao contrário, há muitas pessoas que têm medo da polícia nos Estados Unidos, principalmente negros ou latinos. Gosto de como o filme não se importa muito com a interpretação dos atores, mas como, mesmo assim, eles funcionam muito bem nos papéis e no resultado final. Principalmente Tom Atkins, mas também Bruce Campbell e Laurene Landon. Não fiquei tão interessado em ver as continuações, mas valeu demais conferir este pequeno clássico.
MIA
Antes, quando eu via filmes sobre relacionamentos sexuais baseados em violência (s&m etc), eu não ficava pensando no que levava as pessoas a fazerem tais atos; para mim, elas apenas estariam curtindo suas fantasias. Embora a atração por este curta tenha se devido inicialmente a esse mesmo motivo, os trabalhos realizados hoje em dia já trazem em seu próprio enredo algo que problematiza esse tipo de relação. No caso de MIA (2017), curta-metragem de Oriol Colomar, a personagem que gosta de ser objeto sexual e de dominação de seu namorado, perto do final o filme procura falar um pouco de questões de traumas de seu passado. De todo modo, o filme não chega a ser tão violento quanto poderia ser; na verdade, é bem sensual e intrigante. Até queria que fosse um longa. A atriz é ótima!
terça-feira, setembro 07, 2021
TERAPIA DE DOIDOS (Home Movies)
Assim como aconteceu comigo nesses anos todos de cinefilia, sem me interessar muito pelas comédias de Brian De Palma, o público não ficou muito animado com o lançamento de TERAPIA DE DOIDOS (1979), após um momento em que o cineasta já havia ficado famoso pelos gêneros terror e suspense. De fato, é um filme um pouco estranho, mas bastante familiar se pensarmos em suas primeiras comédias dos anos 1960, como QUEM ANDA CANTANDO NOSSAS MULHERES (1968) e FESTA DE CASAMENTO (1969). Na verdade, esta nova comédia representa um momento em que De Palma precisava esfriar a cabeça da frustração das filmagens e dos resultados de A FÚRIA (1978).
Assim, ele resolve voltar às origens, fazendo uma produção mais barata, do seu próprio bolso, e com a ajuda dos amigos Steven Spielberg e George Lucas. Voltar às origens também significa, no caso de TERAPIA DE DOIDOS, voltar às origens familiares, já que é aqui que encontramos a maior quantidade de elementos autobiográficos já vistos na obra do cineasta. Tanto que o filme se tornou uma obra de referência quando alguns jornalistas fazem perguntas sobre a vida pessoal do diretor. Ele diz: "veja TERAPIA DE DOIDOS, está tudo lá".
E de fato é impressionante o quanto o diretor, mais do que nunca se desnuda. No entanto, como o registro usado foi o da farsa, sente-se um distanciamento maior entre memória e ficção, além também de um pouco de acidez ao tratar de um dos temas que mais se manifestam em seus trabalhos, a manipulação – basta lembrar dos personagens Swan, em O FANTASMA DO PARAÍSO (1974), e Childress, em A FÚRIA. Assim, ele não poupa nem a própria mãe, que depois descobriria ser uma pessoa que apelava bastante para a chantagem emocional. Até a suposta tentativa de suicídio dela é posta em xeque, já que, no filme, a mãe apenas simula ter tomado várias pílulas, e acaba tendo que fazer uma lavagem estomacal, de todo modo.
Assim, estão presentes no filme o adultério do pai, a chantagem da mãe, a maluquice do irmão “gênio”, o flagra utilizando câmera, a dor de ser considerado um filho menos importante pelos pais e mesmo assim se esforçar para ser visto como melhor do que o irmão. Além do mais, ele lida com suas neuroses: seu sentimento de culpa ao desejar a namorada do irmão James (Gerrit Graham) e também de, com frequência, ser também, de certa forma, manipulador, ao tentar tirar Kristina (Nancy Allen), do irmão, apresentado como um sujeito um tanto assexuado, ou mesmo impotente. Ele tenta tirar Kristina do vício na carne, tornando-a vegetariana, e nos prazeres do sexo, sendo que ele mesmo não fazia sexo com ela e a proibia de voltar à vida mais livre que levava.
E o curioso é que o próprio Keith Gordon, o intérprete de Denis, o jovem alter-ego de De Palma, disse ter sentido uma paixonite por Nancy Allen na época das filmagens, mas que sentia um pouco de culpa pelo fato de ela ser a namorada do diretor. Isso é curioso pois Gordon ainda era muito garoto para ela. Mas quem nunca, hein? Gordon, posteriormente, se tornaria diretor também e diz que deve muito a De Palma. Hoje, lembro e gosto de seu trabalho na direção em AMOR MAIOR QUE A VIDA.
De Palma também gosta de exercitar outras comparações que provavelmente o ajudaram a superar certos traumas, como fazer um paralelo entre ele e o pai. Logo no começo, Denis está dando uns amassos em uma garota no sofá da sala e é flagrado pela mãe, que fica horrorizada, mas depois que o pai entra em casa, a reclamação dela é com os dois, já que ela mesma havia acabado de flagrar o marido com uma enfermeira (ele era médico). Além do mais, por diversas vezes, tanto ele quanto o pai tentam, de alguma maneira, se aproximar com segundas intenções de Kristina, uma garota tão doce e gentil quanto sensualmente natural.
Uma coisa que acho que não funciona muito bem no filme é a participação de Kirk Douglas, como uma espécie de guru de Denis, em sua evolução de voyeur para cineasta. Douglas faz o papel do Maestro e sua presença serve para dar ao filme um toque de metalinguagem. O fato é que uma coisa não exclui a outra e a qualidade voyeurística do cinema de De Palma nunca deixou de se fazer presente, de uma forma ou de outra. Uma coisa que o Maestro diz a Denis é que “voyeurs não participam de suas próprias vidas. Eles são basicamente figurantes, não personagens principais.”
Quando o filme se aproxima do fim, com um tom um tanto amargo, ao mostrar as frustrações de Denis e sua solidão, há um final definitivo que é claramente artificial, que foi sugerido por amigos, já que o final triste não combinaria muito com o tom do filme. Esse final feliz, porém, acaba sendo ainda mais deslocado, fica parecendo um sonho de Denis, ao ter Kristina de volta à vida e em seus braços. No fim das contas, exatamente por não ser facilmente comprado, esse final funciona para nos lembrar de que a realidade é muito mais cruel do que aquele final feliz montado.
+ DOIS FILMES
SHIVA BABY
Uma estreia muito feliz a de Emma Seligman neste SHIVA BABY (2020), que parte de uma situação cheia de surpresas dentro de um espaço familiar onde geralmente as pessoas devem manter uma aparência aceitável perante uma sociedade tradicional, em um tom bem humorado, para ir se encaminhando para algo um pouco mais dramático e até tomando emprestado algo de terror psicológico, com um uso de trilha sonora que beneficia a situação perturbadora da protagonista. Mas, no final, depois de tantas situações que o filme nos brinda, o tom de bom humor acredito que é o que predomina. O que é aquela cena da van? Maravilhosa! A história é divertida já do ponto de partida: uma estudante de faculdade se encontra com os pais para uma reunião pós funeral de um conhecido da família. Lá ela acaba encontrando alguém que não esperava, seu sugar daddy, além de sua paquera ou quase ex-namorada dos tempos de escola. O fato de a ação se passar quase o tempo todo dentro de uma casa relativamente pequena para tantas pessoas passa um ar claustrofóbico interessante. Sem falar que a diretora se mostra muito habilidosa em trafegar por tanta gente em espaços apertados.
TRAMA DIABÓLICA (Homicidal)
PSICOSE é um filme tão maravilhoso que até os que tentam encontrar uma espécie de fórmula nele como guia, como este TRAMA DIABÓLICA (1961), acabam se beneficiando de alguma maneira. Sem falar que William Castle era um mestre na arte de criar algo diferente para atrair a plateia. Neste aqui, ele chega a desafiar o público a ficar na sala de cinema em um momento-chave de suspense da narrativa. Não deixa de ser um exagero para a cena em si, por mais que ela seja mesmo muito boa, mas ela se torna memorável por causa dessa brincadeira de Castle. As semelhanças com PSICOSE também se apresentam na escolha de certos ângulos (o carro de Marion Crane; a escada da Mansão Bates etc). A trama já começa muito envolvente, com uma loira fazendo um convite a um empregado de hotel. O resto da trama é tão cheia de situações imprevisíveis que é melhor não contar.
domingo, setembro 05, 2021
O ÚLTIMO ÊXTASE
É muito curioso ver O ÚLTIMO ÊXTASE (1973) e procurar entendê-lo dentro da mitologia de Marcelo, o alter-ego de Walter Hugo Khouri. Mas antes é preciso lembrar que esse personagem ainda estava em formação. Para se ter uma ideia, ele surgiu pela primeira vez como um simpático jovem de vinte e poucos anos em AS AMOROSAS (1966) e esta foi sua segunda aparição, como um adolescente de 18 anos. Em seguida ele aparece morto em O DESEJO (1975), como uma espécie de fantasma. É como se o cineasta, mesmo que inconscientemente, tivesse que matá-lo para trazê-lo de volta como o vampiro insaciável e amargo.
Khouri havia saído do bergmaniano AS DEUSAS (1972), filme tão herdeiro de PERSONA, que parece também inalcançável ou intangível. Em O ÚLTIMO ÊXTASE, começa-se a aprofundar o personagem Marcelo (vivido pelo filho Wilfred Khouri), que encara a figura de um homem de meia idade (Luigi Picchi) que muito nos faz lembrar o Marcelo que já estamos acostumados a ver nos filmes posteriores, estrelados por atores mais maduros.
A intenção de Khouri mais uma vez é tratar menos do desejo e mais da angústia. Esse sentimento está presente desde o começo. Estamos vendo dois casais de jovens belos e na flor da idade acampando, se beijando, tomando banho nus no rio, mas é como se uma nuvem negra estivesse pairando no ar sempre. E é o protagonista que traz esse mal estar; ele é uma pessoa difícil de ser compreendida, por mais que a câmera nos aproxime de seu olhar. A câmera, que utiliza o zoom com frequência, parece desejar compreender a alma do personagem. Mas há também uma curiosa sensação de que a câmera observa às escondidas os personagens. Isso se explícita no momento em que eles sentem a presença de um animal selvagem, na floresta.
Lilian Lemmertz, grande musa do cineasta, está mais uma vez presente e representa um misto de figura materna e objeto de desejo. Ela surge após uma forte chuva que derruba a barraca onde dormem os quatro jovens e convida-os para tomar o café-da-manhã perto do luxuoso trêiler onde ela e o marido (Picchi) se instalaram. Todos os jovens ficam animados com a companhia dos novos vizinhos, exceto Marcelo. A bela loirinha Marta (Dorothée Marie Bouvyer) fica logo com os olhos brilhando com o luxo, ela que estava reclamando da falta de grana do namorado Jorge (Ewerton de Castro). Ele, por sua vez, fica interessado na mulher mais madura (Lemmertz). E Marcelo fica enciumado com o quanto sua namorada Lucy (Ângela Valerio) demonstra alegria com a companhia dos demais. Esse ciúme se apresenta como uma possessividade doentia do personagem, um tipo de insegurança que não estávamos acostumados a associar ao personagem mais famoso de Khouri.
Mas claro que é possível estabelecer uma conexão entre a insegurança do jovem e o futuro do personagem, à construção de uma busca de prazer insaciável com muitas mulheres e a um casamento fracassado. Quanto à relação incestuosa que ele teria com a filha em EU (1987), talvez isso esteja presente nas entrelinhas do que ele conta da primeira vez que acampara naquele mesmo lugar, quando dormiu deitado entre o pai e a mãe. Por mais que esse tipo de informação não diga muita coisa, o olhar sombrio de Marcelo ao falar disso com seriedade pode ajudar a dizê-lo.
De uma forma ou de outra, o importante é que essa dificuldade de encontrar certezas dentro do universo khouriano funciona como um convite para que possamos, sempre, com prazer revisitar suas obras. O sentimento de angústia é contagioso, eu sei, mas há algo de identificação que sempre me atrai a seus filmes.
Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.
+ DOIS FILMES
A CADELA (Liza / La Cagna)
O cartaz de A CADELA (1972) e um pouco de seu conceito têm um quê de exploitation, mas quem procura vê-lo esperando algo do tipo vai ter um bocado de decepção. Outros atrativos são a direção de Marco Ferreri e a presença de um dos casais mais legais da história do cinema, Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni. Na história, ele é um cartunista que prefere adotar uma vida reclusa em uma ilha deserta, tendo uma esposa e uma filha em Paris. Ela é uma mulher de passado desconhecido que vem parar na ilha e se apaixona por ele. A questão de ela querer substituir o cachorro vem de ela ter sido responsável pela morte do bichinho. Mas daí não há muita coisa que anime amantes de s&m, não. É tudo muito sutil. E também um bocado aborrecido. Curioso o momento que o personagem de Mastroianni viaja para Paris e o filme parece se transformar em outro. Principalmente na breve cena com Michel Piccoli.
RAÇA MALDITA (The Killing Kind)
Talvez PSICOSE seja a mais influente obra do gênero horror de todos os tempos. Neste filme de Curtis Harrington também temos uma figura materna forte e um rapaz com problemas sexuais que acaba se tornando um psicopata. Mas na década de 1970 não havia mais tanta necessidade de dar muitas explicações sobre as questões psicológicas dos personagens, tudo era mais facilmente compreendido pela nova sociedade. RAÇA MALDITA (1973) começa com o jovem John Savage sendo levado a estuprar, junto com seus amigos, uma jovem. Ele não consegue, mas mesmo assim é preso por dois anos. Quando volta para casa, seus instintos de vingança, de frustração sexual e sua relação estranha com a mãe vão acumulando situações tensas e mortes. A direção de fotografia é de Mario Tosi, que anos depois trabalharia com De Palma em CARRIE, A ESTRANHA. O uso de tons suaves de luz e cor comparecem neste filme também. Filme presente no box Obras-Primas do Terror 15.
sábado, setembro 04, 2021
SHANG-CHI E A LENDA DOS DEZ ANÉIS (Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings)
Em meu texto sobre O ESQUADRÃO SUICIDA, comentei sobre as diferenças de abordagem entre a Marvel/Disney e a DC/Warner. Não vou me alongar novamente nesse assunto, mas vou comentar mais uma vez sobre a necessidade de a Marvel ter mais carinho por cada filme produzido, e não por um projeto a longo prazo, tratando os títulos menores como uma mera formalidade, como algo que possa satisfazer apenas os fãs interessados na criação/ampliação de uma cronologia dentro do MCU.
Claro que é louvável se pensar no futuro e ter um grande projeto à frente. Claro que é louvável ter a coragem de fazer filmes milionários com super-heróis, super-heroínas e equipes pouco conhecidos do grande público – afinal, quem imaginaria que teríamos filmes dos Guardiões da Galáxia ou dos Eternos? E são filmes que custam muito dinheiro sempre.
SHANG-CHI E A LENDA DOS DEZ ANÉIS (2021), dirigido pelo inexpressivo Destin Daniel Cretton, traz o herói que eu conheci na infância como o Mestre do Kung Fu no mix Heróis da TV. Na minha memória turva, suas histórias não tinham tantos elementos de fantasia quanto o filme preferiu incluir. O personagem, aliás, veio ao mundo em um momento de grande popularidade dos filmes de artes marciais em todo o mundo na década de 1970, estendendo/se para os anos 80. Eu até me lembro que havia uma sessão de filmes que passava depois do Fantástico chamada Sessão Faixa Preta, só com produções de kung fu feitas em Hong Kong. Essa sessão durou nos anos 1983-84 e ficaram lembradas pelo esticamento das imagens da janela scope dos filmes. Um horror, mas achava estranho e interessante.
Shang-Chi, o personagem chinês com as feições de Bruce Lee e que até entraria em uma ou mais formações dos Vingadores, deixou de ser tão popular nos anos 2000 ou até antes, mas já está voltando à ativa nos quadrinhos por conta do retorno aos holofotes provocado pelo provável sucesso de bilheteria do filme.
Sobre SHANG-CHI, ele empolga bastante no primeiro ato, com o protagonista (Simu Liu) trabalhando como manobrista de carros em um hotel junto com sua divertida amiga Katy (Awkwafina). Os dois são tão amigos que os pais de Katy não sabem por que não assumem logo um namoro. A melhor cena do filme acontece nesse primeiro ato, quando um sujeito quer roubar o pingente usado por Shang-Chi, que por sua vez é obrigado a revelar suas incríveis habilidades nas artes marciais. Especialmente quando entram em cena mais homens e até um outro com uma enorme lâmina no lugar do braço capaz de cortar o ônibus ao meio. Trata-se, sem dúvida, da melhor cena do filme, com um belo cuidado na coreografia.
Uma pena que as demais cenas de ação não sejam boas. As duas seguintes se passam à noite e são muito escuras. Quando Shang-Chi recebe um cartão postal da irmã, sabe que precisa voltar à China para vê-la, e sabe também que aqueles homens que o atacaram foram enviados por seu pai. E eis algo muito bom no filme, que é o fato de que seu pai, o verdadeiro Mandarim, e não aquele ridículo maluco vivido por Ben Kingsley em HOMEM DE FERRO 3, é interpretado pela lenda-viva Tony Leung. Por mais que o ator não aparente estar à vontade no papel, sua presença em cena ajuda a dar a SHANG-CHI E A LENDA DOS DEZ ANÉIS um ar de dignidade.
Além do mais, o flashback que vemos de seu encontro com a mãe de Shang-Chi (a bela Fala Chen) traz uma beleza plástica nas cenas que remetem àqueles belos filmes de artes marciais dirigidos por Zhang Yimou no início dos anos 2000, como O CLÃ DAS ADAGAS VOADORAS e HERÓI. Mas só um pouco, já que há o tal poder dos dez anéis usado pelo personagem de Leung é só o começo para um filme que cada vez mais se deixará levar pela fantasia.
A tal ponto que todo o terceiro ato parece um carnaval colorido de brigas de monstro com dragão e lutas sem sangue (de vez em quando rola um nariz sangrando). E há o excesso de CGI e uma trama meio estranha sobre o pai de Shang-Chi ouvir a voz da esposa, morta em um ataque inimigo muitos anos atrás. No fim das contas, pai e filho se tornam inimigos em uma grande batalha na região mágica escondida. Esse universo mágico que mais provoca bocejos e um convite ao sono é também tratado com desleixo na história. E Awkwafina segue até o fim por ser carismática e divertida, e talvez por ser o elo de ligação com o espectador dentro de sua normalidade. Além de equilibrar o pouco encanto do protagonista.
+ DOIS FILMES
CAVALO
Como não sou íntimo nem da dança nem de religiões afro, já era de se esperar que minha relação com CAVALO (2020), de Rafhael Barbosa e Werner Salles, fosse de certo distanciamento, ainda que tenha ficado bastante impressionado com a beleza plástica e a sensibilidade dos realizadores em trazer imagens arrebatadoras. Gosto demais da cena do homem sendo seguido pelo vento forte e pelas folhas das árvores e aquelas com a mulher nua no escuro, tendo seu reflexo visto na água. Lembrei bastante de SOB A PELE, de Jonathan Glazer - não sei se houve intenção de homenagear ou buscar inspiração nesse filme. Quanto às cenas de religião de matriz africana, elas me fizeram pensar no quanto são tão mais próximas da terra, sem tanta pretensão de vislumbrar o paraíso pós-vida terrena ou o nirvana. Isso se manifesta, por exemplo, no momento em que uma das professoras de dança fala aos alunos dessa característica da coreografia, parecida com uma árvore, enraizada. Há muito o que se guardar das imagens e das falas que o filme trás, embora eu tenha ficado com a impressão de que ele pudesse ser um pouco mais curto.
O EMPREGADO E O PATRÃO (El Empleado y el Patrón)
Drama envolvente e que ainda tem como curiosidade o fato de se passar na fronteira entre o Uruguai e o Brasil. Até podemos ver uma pessoa falando aquele português fronteiriço. O que me deixou um pouco confuso foi tentar compreender a proposta do diretor Manuel Nieto Zas, já que é muito mais fácil se identificar e simpatizar com o patrão (Nahuel Pérez Biscayart) do que com o empregado (Cristian Borges), um sujeito tão "avoado" que, pela falta de atenção, comete acidentes terríveis. Superficialmente até fica parecendo um "anti-ARÁBIA". A força do filme está num tipo de tensão sutil entre as duas famílias. A família rica também tem uma preocupação relacionada à criança, que poderia sofrer algum tipo de síndrome; já o problema do filho da família pobre se apresentará de outra natureza. É muito curiosa a cena da corrida de cavalos (que mais parece uma feira do que uma corrida) e também o tipo de relacionamento que se estabelece entre os dois homens - destaque para a cena no bordel. O EMPREGADO E O PATRÃO (2021) foi uma presença bem discreta do Brasil em Cannes (até por ser uma coprodução), mas em tempos de vacas magras, está valendo.
quinta-feira, setembro 02, 2021
SOZINHA (Alone)
Acho difícil falar sobre obras mais centradas na ação. Por isso admiro muito os especialistas em críticas de filmes de artes marciais ou de ação ocidental. No caso de SOZINHA (2020), primeiro filme que vejo de John Hyams, há alguns elementos que podem sim ser objeto de reflexão por parte do espectador. Poderíamos dizer que é um estudo sobre o mal, mas talvez isso esteja errado, já que não há tanto aprofundamento assim. Ou poderíamos dizer que é um filme sobre a capacidade de alguém de enfrentar seus próprios demônios e encará-los como um herói. No caso, como uma heroína. (A propósito, este é um filme que deve ser visto sabendo o mínimo possível; portanto, recomendo que não leia o texto, se não viu o filme ainda.)
Percebe-se que o maior interesse de John Hyams, diretor conhecido por filmes de ação do segundo escalão, como SOLDADO UNIVERSAL 3 – REGENERAÇÃO (2009) e SOLDADO UNIVERSAL 4 – JUÍZO FINAL (2012), obras consideradas como ótimas por críticos que muito considero, o maior interesse de Hyams seria a ação especificamente. Lidar com o gênero e extrair dele o melhor. E em SOZINHA ele consegue nos deixar com as mãos segurando nos braços da poltrona como que numa montanha-russa de emoções, de tensão e de desespero.
Afinal, o fato de a protagonista ser uma mulher sozinha em uma viagem de carro, pegando a estrada em estado de luto ainda (ela perdera o marido), e sendo atacada por um maluco, isso é sim assustador. Eu, como sou muito medroso de pegar estrada (prefiro muito mais o caos do trânsito na cidade grande), já fiquei com a adrenalina a mil na cena da ultrapassagem. Jessica (Jules Willcox) tenta fazer uma ultrapassagem perigosa, já que o carro da frente não está ajudando. Obviamente, lembramo-nos logo de ENCURRALADO, o clássico thriller de Steven Spielberg. Mas este é só o primeiro ato.
No segundo ato o filme muda de estrutura, se torna ainda mais dramático, uma vez que todas as dúvidas que tínhamos sobre o stalker (Marc Menchaca) deixam de ser dúvidas e nos vemos diante de uma pessoa que sente prazer pelo que faz, e que Jessica não teria sido sua primeira vítima. Há até um momento em SOZINHA que eu achei que fosse se encaminhar para algo ainda mais cruel para a heroína, que é quando ele pede a ela para tirar a roupa. Mas a pressão psicológica que ele faz à mulher talvez seja tão pesada quanto uma cena de estupro em si.
O terceiro ato, melhor do que o segundo, se concentra na floresta. E o filme vira um jogo de gato e rato bem cruel. Há um cuidado visual do diretor e a natureza funciona tanto como uma ajuda para a heroína quanto como um elemento de obstáculo, como quando ela fere o pé na fuga. O filme ganha contornos de obra de vingança perto do final, quando Jessica se apodera de uma coragem que foi conseguida com muito esforço. E o final nos brinda com uma cena linda, suja, sangrenta, mas de certa forma redentora. Um dos filmes mais empolgantes do ano, mesmo sem ser exatamente original. Mas, hoje em dia, o que é original?
+ DOIS FILMES
CAMINHOS DA MEMÓRIA (Reminiscence)
Há um bom filme no meio da bagunça e de todos os problemas que resultaram neste neo-noir/sci-fi. A questão da memória, que é tão fascinante, bem que poderia ter sido melhor explorada em CAMINHOS DA MEMÓRIA (2021), se feita com mais sensibilidade e talento; inclusive, há uma cena que já imagino que teria sido o grande momento dessa questão da memória em diálogo com o presente. A história se passa em um futuro não muito distante em que as águas tomaram de conta de Miami e a cidade virou quase uma Veneza, só que mais decadente. Hugh Jackman e Thandiwe Newton trabalham em uma empresa que oferece os serviços de revisitar momentos caros do passado dos clientes. A vida do protagonista muda quando ele encontra e se apaixona por uma cliente (Rebecca Ferguson). Um dos problemas centrais é que o filme não nos faz ficar apaixonados pela personagem junto com o herói; além do mais, os hiatos também não ajudam. Ferguson talvez não tenha sido a melhor escolha para uma femme fatale, mas seria errado atribuir o problema a ela, e não à realizadora estreante Lisa Joy. Ou talvez a outras circunstâncias. Às vezes problemas acontecem no meio do processo.
SLALOM - ATÉ O LIMITE (Slalom)
A maior força de SLALOM - ATÉ O LIMITE (2020), de Charlène Favier, está na presença de cena da jovem protagonista, a adolescente vivida por Noée Abita. Ela faz o papel de uma atleta de esqui que vai galgando resultados muito bons com o apoio cada vez mais próximo de seu treinador, vivido por Jérémie Renier (ator principal de O AMANTE DUPLO, de François Ozon). As cenas da competição são muito boas, mas a intenção de focar na fragilidade da garota ganha intensidade quando ela, uma menina de 15 anos, se torna intimamente mais próxima do treinador, um homem casado e na faixa dos 40. Eis um filme que nos faz pensar no quanto as primeiras relações sexuais da juventude podem ser traumáticas e gerar confusão na cabeça das jovens, principalmente quando ainda em tão tenra idade. A diretora traz segurança e sensibilidade em lidar com um tema tão espinhoso, mas tão importante de ser debatido.